Fundo de Pasto – uma história de resistência

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Areia Grande – Casa Nova – Bahia

Areia Grande é o atual nome de um antigo território de “fundo de pasto”. O nome foi dado na prática por 366 famílias de quatro comunidades das caatingas de Casa Nova, Bahia, ao norte do Lago de Sobradinho: Riacho Grande, Salinas, Jurema e Melancia. Eles habitam esta região desde os anos de 1850. Vivem tradicionalmente da agricultura de subsistência, criação de caprinos, ovinos e bovinos, para o que este território de uso comum é o mais importante, pois é onde os animais pastam coletivamente (fundo de pasto). As famílias também trabalham com a apicultura, aproveitando a florada da nativa caatinga. Esta atividade tem contribuindo com preservação da caatinga.

História da resistência – Desde os anos 1970, estas comunidades resistem a várias investidas do grande capital através de projetos de infraestrutura, como a barragem de Sobradinho e perímetros irrigados, e empresas como as de agrocombustíveis.

A primeira ameaça se deu com a construção da barragem de Sobradinho, construída na década de 1970, e a primeira resistência das famílias foi não aceitar a mudança para outra região. A intenção do governo era levar essas famílias para as agrovilas construídas no município de Bom Jesus da Lapa, distante 700 km. Apesar de todas as perdas, a maior parte das famílias fez a opção de permanecer na região.

Em 1979, a empresa carioca Agroindustrial Camaragibe, ajudada por políticos locais, “adquire” terras da comunidade de Riacho Grande. O empreendimento visava produzir álcool de mandioca. Com recurso do governo federal, foi estruturada uma usina de álcool. Nacionalmente, esse projeto ficou conhecido como “escândalo da mandioca”. Este foi um caso de desvio de recurso publico, os empresários forjavam perda da safra no momento em que iam quitar os empréstimos feitos junto ao Banco do Brasil.

A empresa entra na Justiça contra os posseiros, mas o pedido de reintegração de posse foi negado pelo juiz da Comarca de Casa Nova, que acaba sendo transferido. O Instituto de Terras da Bahia (INTERBA) mede e titula parte das terras do Riacho Grande, reconhecendo que aquelas terras são devolutas, ou seja, pertencem ao Estado.

O INTERBA foi extinto e no estado da Bahia foi criado órgão sucessor, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), que não chegou a conclui os trabalhos. A empresa se aproveita e se instala em grande parte das terras. Também o INCRA é acionado diversas vezes, sem resposta suficiente. Apesar da relativa vitória da comunidade de Riacho Grande, a Camaragibe põe-se em funcionamento, o que não impede que os posseiros continuem a soltar seus animais e produzir nas áreas. Nesse período, as famílias posseiras tiveram suas terras invadidas, ficando escasso o espaço para a atividade principal, que é a criação de animais no sistema extensivo – solto na caatinga. A comunidade resiste a todas as violências, no que serve de exemplo para toda a região.

Com o “escândalo da mandioca”, a empresa deixa o local e uma dívida milionária junto ao Banco do Brasil. Os posseiros recuperam o uso de toda a área – a Areia Grande. Nela, atualmente, eles têm 3 mil caixas para criação de abelha, o que gera 30 mil litros de mel por ano e 13 mil cabeças de caprinos e ovinos.
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O caso atual – Após 20 anos de aparente tranqüilidade, em março de 2008, efetivos da Polícia Militar, da Polícia Civil, da Polícia da Caatinga e um policial que se diz da Polícia Federal de Pernambuco, sob supervisão de um Oficial de Justiça, com truculência e abuso de autoridade, entram na área para expulsar os posseiros. Casas, chiqueiros, currais, roçados, cercas e até um centenário juazeiro são destruídos. Exigem a retirada das colméias e do criatório.

No inicio de 2008, o juiz de Casa Nova conferiu aos empresários da região a “propriedade” das terras de fundo de pasto que foram “compradas”, no final da década de 1970 pela empresa Camaragibe. A propriedade grilada pela Camaragibe foi ilegalmente transferida aos empresários, que ingressaram com uma ação de Imissão de Posse visando legitimar, através de decisão judicial, os falsos títulos adquiridos. Policiais e prepostos de supostos empresários interessados na área destruíram casas, chiqueiros, currais e roçados das famílias. A saída da policia da área não desanimou os prepostos de dois empresários, que se intitulam como “novos donos” da localidade. Guarnecidos por milícia armada, realizam a “faxina” da área, tentando apagar vestígios da posse e moradia.

Os moradores acampam no local para impedir a continuidade da destruição de suas benfeitorias. Nove capangas encapuzados, portando armas de grosso calibre, invadem o acampamento com tiros, ameaças de morte, agressões físicas a mulheres e crianças, usando-as como escudo. Chega um destacamento policial, que não reprime os jagunços.

Luto e vitórias – Em novembro de 2008, o Estado reconhece tanto a natureza pública das terras, quanto a legitimidade de sua ocupação tradicional, e inicia ação discriminatória administrativa das posses.

No dia 4 de fevereiro de 2009, é encontrado o corpo de um dos líderes dos posseiros, Zé de Antero, que nunca deixou a área, onde nela foi brutalmente assassinado. As comunidades não desanimam.

No dia 1º de julho de 2009, mais uma vitória com a anulação da sentença, pelo Tribunal de Justiça, da Imissão de Posse que ratificava o processo de grilagem de terras públicas.

Atualmente, sob vigilância constante, as comunidades vivem na Areia Grande. Continuam lutando pela discriminatória judicial e anulação definitiva dos títulos fraudulentos, regularização do território, recuperação das perdas materiais, investigação e punição dos culpados pela morte de Zé de Antero. Vivem repetindo o que Zé gostava de dizer: “Essa luta não para enquanto a justiça não triunfar”.