Em alta velocidade

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Estamos passando por uma defasagem muito grande de reflexões e análises mais profundas sobre o momento atual da sociedade Brasileira. Estive procurando e fazendo algumas leituras e me deparei com dois polos: reflexões extremadas sobre a copa do mundo ou análises essencialmente superficiais e eleitoreiras sobre a definição de candidatos e candidatas para as eleições, quase que gerais, de outubro deste ano.

Na minha adolescência, quando do começo da militância fazendo os primeiros cursos de formação política, me lembro de ter aprendido que analisar conjuntura é fazer perguntas, olhar com uma lupa, fazer radiografia. Tudo isso para estruturar respostas, organizar as ações, ir em frente sem errar novamente ou mesmo minimizar os erros futuros. Pensando nisso, creio ser difícil fazer uma análise de conjuntura sem que reflitamos que o Brasil é um país com dimensões continentais, um território profundamente complexo no que tange a sua conformação social e política. Com uma democracia jovem e ainda teimando em não deixar aflorar todas as cicatrizes adquiridas neste caminho recente.

Fazendo uma rápida analogia do Brasil com uma viagem, podemos dizer que estamos num momento de transição de estradas, ou seja, temos a informação da estrada por onde passamos, do tempo que gastamos, da velocidade e do combustível necessário para chegar onde estamos. Parece-nos que agora estamos num momento de refletir, analisar e quem sabe até definir melhor como faremos o restante da viagem.

Seguindo com a analogia, penso que para conseguirmos fazer uma reflexão o mais próximo possível de errar menos no caminho a ser seguido pelo o Brasil, enquanto um estado que realmente possibilite direitos de presente e futuro para todos e todas, seja necessário analisar por três pilares que se traduzem em responder algumas questões: quais os objetivos do estado? Desenvolvimento para quem? Democracia e direitos para quem?

Ao olhar nos estudos de ciências políticas, entre outras afirmações e reflexões podemos apontar que o estado brasileiro é fruto de uma mescla de duas possibilidades de origem histórica: sendo uma primeira por desejo de dominação e uma segunda por motivos econômicos. É importante analisar este fato, pois ele orienta e dá estrutura ao que foi o processo histórico de formação do que temos de democracia no Brasil hoje. Ou seja, nosso estado é fruto de fatores ligados às correlações de forças e os embates existentes entre os agrupamentos sociais que foram dando a organização e a cara desta sociedade. Estes embates foram forjados por definições culturais e sociais, no entanto todas elas têm sim um marco econômico muito poderoso.

Desta forma, é correto afirmar que somos um estado capitalista fortemente marcado pelo processo histórico de estruturação de sua economia, onde o latifúndio, a exploração do trabalho (escravo ou análogo) e a exportação de produtos primários, foram e continuam sendo a sua base. Outra face estrutural deste estado é marcada pelo patriarcado aristocrático e pelo patrimonialismo que deu origem a uma burguesia preconceituosa que se utilizando de um fisiologismo domina o “modus operandi” de fazer a política. O que após a década de 1990 ficou ainda, mas explicito com a total contaminação pelo pensamento neoliberal do século XXI.

Pensar o estado é fundamental, olhando para além desta nefasta e “pequena política”, aquela que se resume às eleições como pilar da democracia, é estratégico refletir, se aprofundar no que alguns autores e intelectuais chamam de estado amplo, ou seja, olhar com atenção ao que diz respeito ao conjunto das instituições que administram política e juridicamente este território. Estamos falando também dos entes que compõem, da mesma forma, este estado amplo, e que por não estarem e nem fazerem parte das instituições de administração deste, buscam ou deveriam buscar influenciar para que o “organismo vivo” Estado venha voltar seu desenvolvimento mais para um lado ou para outro. Aqui nos referimos ao mercado ou poder econômico de um lado e da sociedade civil e toda sua gama diversa de organizações do outro.

No Brasil depois de passarmos por períodos de democracia interrompidos por momentos fortes de ditaduras, estamos na atualmente vivenciando o período mais longo de democracia pós-início da república no Brasil. Temos sim, um estado democrático e moderno. Porém, não atualizado e sem mudanças, no que tange às suas estruturas mais basilares. Vivemos ainda, na mesma base político-econômica, já que até hoje temos nossa economia voltada à exportação de produtos primários, sejam eles extraídos do subsolo, ou produzidos em latifúndios, sendo ambos causadores de profundos prejuízos ao território, ao meio ambiente e aos povos que nele vivem.

Seguimos também vivenciando uma mesma estrutura política, dominada pelo fisiologismo e pelo capital econômico que determina, através dos processos eleitorais fraudulentos e pouco participativos, para onde e como o estado enquanto estrutura a serviço da democracia deve se voltar. Outro fator que na análise da estrutura do estado brasileiro nos solicita bastante atenção é quanto às instituições, que como afirmamos acima, administra e dinamiza o território. Uma vez que nós ainda convivemos com instituições extremamente atrasadas, dominadas por oligarquias que determinaram a vida e a morte de centenas de milhares de pessoas, assim como, o horizonte a ser seguido pela sociedade brasileira através dos séculos.

Talvez responder a inquietação que se traduz em algumas grandes questões, pode nos ajudar a desvendar o paradoxo colossal que faz com que o Brasil seja ao mesmo tempo a 6º economia do mundo, quando se utiliza o critério do PIB[2] e a 84º quando se utiliza o critério do IDH[3]. Ou seja, desenvolvimento para quem? Estado para quem? E democracia para quem? Voltam a figurar como informações fundamentais e estratégicas para orientar nosso olhar.

As respostas para estas questões não podem vir isoladas e muito menos relacionadas apenas com dados e índices estatísticos sobre quem ganha um real acima ou a baixo do índice determinado pelas Nações Unidas. Elas devem sim, ser alicerçadas no fundamento histórico de como o estado brasileiro foi se conformando, as opções tomadas, especialmente nas duas últimas décadas e também relacionadas com o grande potencial que este país tem que é seu povo, seus recursos naturais e o posicionamento estratégico tanto do ponto de vista geopolítico, como também sociocultural para com o mundo do norte e especialmente do sul.

O Brasil alçou-se ao Neodesenvolvimentismo em pouco mais de uma década. Este se balizando por uma estrutura que busca ampliar as forças produtivas do capital e em ao mesmo tempo tornar o País um estado que consegue hoje ser investidor, financiador e social. Que mescla ampliar a produção e a infraestrutura através do programa de aceleração do crescimento nas suas várias versões (PAC[4] I, II, III) com programas de transferências de renda que buscam com seus resultados “erradicar a pobreza”. No entanto, mantem-se a grande contradição que alimenta o fosso que coloca o Brasil ao mesmo tempo nas primeiras colocações seja em economia ou em desigualdades socioeconômicas. É possível desenvolver sem incluir, sem concentrar renda e riqueza? Da mesma forma, é possível erradicar a pobreza sem ações estruturais, onde os pobres façam parte da economia produtiva e não da economia social? Todas essas questões não são pacíficas, não são decisões isoladas e nem individuais, muito menos possíveis de serem tomadas sem que se reverta às idéias dominantes que alimentam a alienação de que a única forma de inclusão é através do consumo, que as intenções democráticas podem ser defendidas com ações antidemocráticas onde o estado democrático de direito deve ser defendido com a criminalização da luta social e da pobreza. Ficando ao mesmo tempo passivo para a ofensiva do Capital sob o estado que chega, inclusive, a controlar de forma determinante o poder político;

Em última análise a questão poderia se resumir, sem minimizar, em como se deve olhar e enfrentar a pobreza e o desenvolvimento. Existe aí uma confusão orientada, como diria Gramsci. Ao nos introduzir no conceito de aceitação do domínio burguês, para ele que afirma que ao induzir ou promover que os dominados aceitem uma concepção de mundo que pertence aos dominadores, leva estes a vivenciar ou mesmo a defender este como verdadeiro e intransponível. Esta confusão pode ser facilmente observada no campo das esquerdas e mesmo da sociedade civil, que diferente da busca de hegemonia, adapta-se ao que o estado burguês dominado por pensamentos neoliberais lhes apresenta como “o possível”.

Fernand Braudel ao refletir sobre a centralidade do estado, nos afirma que, “O capitalismo só triunfa quando se identifica com o estado, quando é o estado”, ou seja, o domínio do capital internacional e da burguesia nacional sob o estado brasileiro, não é apenas de “rapto” ela busca afirmar voltando à teoria Gramisciliana, que eles são o próprio estado ou que têm hegemonia sobre ele, inclusive restando para a sociedade civil, apenas defendê-lo. Obvio que esta reflexão nos ajuda, pois ela pode servir da forma inversa, como nos ensina Florestan Fernandes “Para realizá-las, [transformações], o povo precisa, antes de qualquer coisa, conquistar o poder.” Para ele, a sociedade civil, o povo ou os trabalhadores devem assumir o poder, neste caso se sentir poder, ou seja, a ideia de combater o estado, nos parece totalmente aniquilada, tanto pelos ensinamentos destes pensadores, como pelos mais de 12 anos de experiência de “governo popular”, começamos a experimentar o que é se sentir estado e ver como ele se comporta e principalmente do que ele é capaz.

Parece-nos que a transição de uma estrada para outra sem diminuir a velocidade pode sim ser possível. Para isso, creio ser necessário superar a confusão que nos foi induzida e tentar olhar bem fundo, para que possamos clarear a nossa interpretação e aprofundar na afirmação de nossa “identidade”. É fundamental que o conhecimento do ambiente seja colocado como desafio a ser superado, para que a identificação do opositor e a construção das estratégias de busca da hegemonia, sejam nossos caminhos para vivenciar a vitória definitiva do estado democrático de direito do povo brasileiro.

[1] Faz parte da Coordenação Nacional da Cáritas Brasileira e é Mestre em política e desenvolvimento pela UFBA.

[2] PIB – Produto Interno Bruto, relativo a todas as riquezas produzidas no País.

[3] IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.

[4] PAC – Programa de Aceleração do Crescimento.

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