A contemporaneidade da Convivência com o Semiárido
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“… todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje…
Temos de saber o que fomos, para saber o que seremos”
Paulo Freire
Pensei em iniciar este artigo de várias formas, na verdade ele foi começado algumas vezes até definir iniciá-lo lembrando de algumas coisas que passamos, nas últimas duas décadas, afirmando. O Semiárido não é uma região pobre por natureza e muito menos está pobre por motivo da falta de chuvas ou mesmo pela sua má distribuição.
Existe uma estrutura de pensamento, que foi criada e fortalecida historicamente levando a sociedade brasileira a pensar que o problema da região é a falta de água e não a sua democratização, da mesma forma foi concebido o estigma de que o grande inimigo dos povos do Semiárido é o clima em que vivem e não a concentração da terra, da renda e riqueza produzida e existente nessa região. Levando todos, de dentro e de fora do Semiárido, a acharem que esse clima deve ser combatido, pois as possibilidades endógenas de geração de desenvolvimento para esta região são ínfimas nesse clima e com tão grande população.
O Semiárido brasileiro se estende por uma área que abrange a maior parte dos Estados da região Nordeste (86,48%), a região setentrional do Estado de Minas Gerais (11,01%) e mesmo com questionamentos técnicos e científicos se amplia ao norte do Espírito Santo (2,51%). Possui 1.133 municípios e ocupa uma área de 974.752 Km2. É o maior e mais populoso do mundo. Com mais de 22,6 milhões de habitantes, representando 11,8% da população brasileira, sendo 44% desta residente na área rural, a maior porcentagem do país.
Essa região, também, concentra mais da metade (58%) da população pobre do país e segundo o UNICEF, destes, quase nove milhões são crianças e adolescentes. Não estamos aqui falando de pobreza de renda apenas, pois essas transferências de renda, por meio do bolsa família, aposentadorias rurais, ou da recente bolsa seca, podem remediar. Aqui dizemos do conceito concebido em seis décadas lutas e debates realizados pelas organizações da sociedade civil, pesquisadores e reafirmado pelas Nações Unidas, que pode ser sintetizado numa relação historicamente determinada entre grupos sociais, na qual um segmento significativo da população está privado dos meios que viabilizem atingir níveis adequados de bem estar social. Reed & Sheng, (1997).
Segundo essa perspectiva, a pobreza é a privação das condições materiais para um nível de satisfação minimamente aceitável das necessidades humanas, incluindo não apenas alimentação, mas também a necessidade de serviços de saúde, educação e outros essenciais como saneamento, água potável, moradia, trabalho digno, segurança, lazer. Para a sociedade civil do Semiárido representada pela ASA (Articulação dos Semi-árido) e para pesquisadores como Roberto Marinho na sua tese de doutorado1, superar essa situação na região é estabelecer como instrumento, ferramenta, estratégia e modos de vida a convivência com o Semiárido.
Para isto é fundamental perceber que do ponto de vista físico-climático, o Semiárido brasileiro se caracteriza por médias térmicas elevadas (acima de 26ºC) e duas estações bem distintas: uma seca na qual chove muito pouco ou nada, e uma úmida quando ocorrem precipitações irregulares que vão de um mínimo de 300 mm a um máximo de 800 mm, o maior índice de chuvas de regiões semiáridas do planeta. A má distribuição e imprevisibilidade da chuva no tempo e no espaço é o grande “problema da região”. Porém, só existe SECA quando, de fato, não chove em um período de um ano.
Por outro lado, as secas são fenômenos naturais periódicos relacionados ao macroclima do continente e do planeta, que vêm se agravando, assim como as nevascas dos EUA e Europa, os tufões e furacões no Caribe ou mesmo as chuvas no sudeste brasileiro. Todos esses exemplos têm batido recordes e os noticiários e agências de pesquisa publicam cotidianamente: “são os maiores das últimas décadas”. Em se tratando das secas, os ciclos históricos da sociedade nordestina, mineira e brasileira estão relacionados diretamente a elas, a exemplo de revoltas, o estabelecimento de políticas, a criação de instituições e grandes movimentações de população que vieram a redesenhar a estrutura geopolítica da região e mesmo do Brasil.
A mudança paradigmática proposta por Marinho é um resgate que vem sendo construído pela ASA e suas organizações há 20 ou 30 anos com a afirmação de que não podemos “combater e sim conviver” com a insuficiência e irregularidade na distribuição de chuvas, a temperatura elevada e a forte taxa de evaporação, os solos rasos e pedregosos com subsolo de cristalino que não armazenam a água da chuva.
Conviver é saber dessas características, sabendo que elas não tornam a região imprópria à vida e sim conforma o modo de nela viver. É preciso desenvolver modos de convivência adequados ao ambiente, adaptar-se a ele. Para isso, é fundamental o conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriada por ela, que representa soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida. PEDREIRA (et al, 2004).
No entanto, no emergir de mais um período de seca que vinha sendo anunciado desde 2003 volta à cena depois de mais de 20 anos de construção prática e teórica sobre a convivência com o Semiárido, o fantasma dos animais mortos, do êxodo, das cestas básicas e dos carros pipas. Essa situação desnudou que muito pouco dessa realidade foi mudada, e sobre ela e os motivos de estarmos vivendo esse “flash back” é que gostaríamos de refletir, relacionando-a com as afirmações anteriores sobre pobreza e sobre o Semiárido.
O Semiárido brasileiro é a região mais açudada do mundo, ou seja, existe água na região, assim como fora dos ciclos históricos de seca tem-se chuvas. Alguns, um pouco mais desinformados, poderiam nos questionar da veracidade dessa afirmação, pois bem: de onde vem a água que os carros pipas estão distribuindo? A verdade é que a água no Semiárido foi ao tempo de Antonio Conselheiro e de Pe. Ibiapina, e continuou sendo nos tempos de Margarida Alves e é, ainda hoje, concentrada. Isso quer dizer que os açudes e poços artesianos do Semiárido construídos pelos recursos do estado brasileiro, na sua grande maioria, “têm donos”. Atualmente, 67% das famílias rurais nos estados que compõem o Semiárido não possuem acesso a rede geral de abastecimento de água.
Essa realidade poderia ter sido completamente modificada se as ações propostas e desenvolvidas pela ASA ou aquelas propostas pela ANA, tivessem sido priorizadas e colocadas como políticas de estado e não como moeda de troca para a realização da transposição do São Francisco, mais uma obra, como tantas outras, no Semiárido que, além de estar recheada de corrupção, concentrou riqueza nas mãos de empreiteiras e políticos locais, destruiu sonhos e esperanças ligando o nada a lugar nenhum. Foram quase cinco bilhões enterrados em meio a Caatinga.
No Semiárido, por outro lado, existem entre 1% e 3% da população que vive em padrões de renda e riqueza comparados aos da região Sul, Centro-sul ou mesmo de países de maior IDH do mundo, mesmo sendo a região com menor taxa de industrialização do país e maior população rural. A questão está no histórico de ocupação e “desenvolvimento” dessa região. Os coronéis que depois se tornaram prefeitos, deputados, governadores e afirmam, com seus sobrenomes, serem os “donos” e representantes do Semiárido, sempre mantiveram, nessa região que concentra uma das maiores taxas de terras devolutas do Brasil, uma elevada taxa de concentração de terras, mesmo com um campesinato vivo e ativo ocupando terras, retomando territórios, a estrutura fundiária da região permanece inalterada.
Por fim, fica o desafio para aqueles e aquelas que fazem a vida do e no Semiárido pulsar, precisamos nos inspirar nos lutadores e lutadoras, sejam eles os conselheristas, os campesinos das ligas camponesas, os que pensaram o histórico seminário “O homem e a Seca” ou a todos que fizeram de uma momentânea mobilização a maior organização regional que é ASA. Temos o dever histórico de determinar que esse ciclo de seca nos impulsione para além de criar programas, estruturar organizações ou mesmo possibilitar a nossa missão evangélica de salvar vidas. Devemos ser as mãos dos semeadores e semeadoras, para fazer brotar do coração e das mentes o espectro da mudança.
* Mestre em Política e Desenvolvimento pela UFBA e coordenador nacional da Cáritas Brasileira.