Dia Internacional da Agricultura Familiar: Brasil retoma investimentos e deve implementar metas da FAO
![](https://enconasa.asabrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/02/Dia_da_AF_2023-scaled.jpg)
Agricultura familiar no Brasil emprega mais de 10 milhões de pessoas, quase 70% dos/das trabalhadores/as do setor agropecuário, conforme apontou o último Censo Agropecuário, divulgado em 2017. Os dados mundiais também chamam atenção quando se olha para a relação entre propriedade e tamanho da terra e índice de produção de alimentos.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 84% das propriedades da agricultura familiar existentes no mundo possuem até dois hectares. Nestas áreas se produz 33% dos alimentos consumidos no planeta, sendo utilizado para isso apenas 12% da área de cada propriedade.
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em 2017, a “Década da Agricultura Familiar”, visando colaborar com os países ao estimular melhorias nas políticas públicas, criação ou atualização de marcos regulatórios, leis e mais investimentos para o setor. A definição deste tema para o Decênio “é um reconhecimento muito importante da comunidade internacional do papel que a agricultura familiar tem pro mundo”, menciona Guilherme Brady, chefe da Unidade de Agricultura Familiar, Redes Parlamentares e Comunicação para o Desenvolvimento da FAO.
A decisão do órgão internacional surgiu justamente da preocupação com o paradoxo entre a relevância da agricultura familiar e a situação de fome ainda existente no mundo. A ONU entendeu que há um problema com o funcionamento dos sistemas alimentares, o que gera impactos ambientais, sociais e econômicos, sendo, portanto, necessário colocar em prática um plano de ação global contra a fome e a pobreza rural até 2028.
“A gente [o mundo] produz bastante alimentos, cada vez mais e com mais tecnologia, etc mas tem um número crescente de pessoas com fome”, problematiza Guilherme Brady. Ele cita que a situação se agravou com a pandemia da Covid-19, aumentando o número de problemas ligadas a alimentação, como subnutrição, obesidade, sobrepeso e doenças como diabetes, hipertensão e outras, algo que não está restrito aos países desenvolvidos ou classes mais baixas, mas se trata de um desafio para a população como um todo.
A FAO aponta ainda que o impacto ambiental relacionado à agricultura e alimentação é altíssimo. Estão relacionados a isto, quase 30% da emissão de gases nocivos aos ecossistemas. Há ainda ineficiência econômica no sistema produtivo, uma vez que apesar da produção de alimentos gerar riquezas, constata-se uma exclusão econômica quando se observa que 80% da pobreza no mundo está no campo.
Nestes primeiros anos da “Década da Agricultura Familiar”, a FAO, juntamente com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), tem trabalhado com mais de 50 países, dos quais 12 já aprovaram Planos Nacionais de Ação sobre Agricultura Familiar, além dos Planos regionais que englobam grupos de países, totalizando uma média de 40 contemplados em diferentes continentes.
Outros resultados são computados, como aproximadamente 190 leis, regulamentos ou políticas criadas ou apoiadas e uma média de cinco mil organizações não governamentais e federações de agricultores/as, instituições públicas e academias participando do processo.
Ciclos de desenvolvimento local
No Brasil, a agricultura familiar está presente em todos os biomas. De acordo com o Censo Agropecuário citado, a agricultura familiar é a base da economia de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes. Contudo, a narrativa de que o agronegócio é o grande responsável pelo desenvolvimento no campo tende a se sobressair na sociedade, uma vez que normalmente só se contabiliza apenas o aspecto produtivo.
Para a FAO, é preciso considerar os aspectos para além disso, como meio ambiente, saúde, nutrição das pessoas. “É importantíssimo avançar na compreensão, gerar evidência (…) de que investir na agricultura familiar gera ciclos de desenvolvimento locais, esses recursos são enraizados no território”, provoca Guilherme Briday.
No Semiárido do Brasil, existem diversos exemplos concretos disto. Um deles é protagonizado pela família da agricultora Maria Aparecida da Silva, da comunidade de Lagoa da Volta, no município de Porto da Folha, no alto sertão sergipano. A partir da aquisição de tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva e da assessoria da ASA, o esposo de Cida, como é conhecida, deixou de ser diarista e passou a acompanhá-la na produção de alimentos, o que garantia o sustento e renda exclusiva da família antes do casal conquistar a aposentadoria.
A participação em capacitações, intercâmbios e seu engajamento no associativismo e cooperativismo, faz Dona Cida sentir-se privilegiada com as mudanças que passou a vivenciar. “A convivência com o Semiárido foi o que fez muito agricultor viver e viver com dignidade no sertão”. Ela diz que se sente uma agricultora privilegiada e afirma que tem “muita diferença, hoje em dia tem mais qualidade de vida dos agricultores e agricultoras”, pois aprenderam bem as lições da convivência. Para ela, a ASA é “a faculdade do sertão” para as/os agricultores/as.
Já no estado vizinho, no Semiárido alagoano, o agricultor Florisval Alexandre Costa, embora tenha prazer em contar sua experiência no Sítio Santa Rosa, no município de Craíbas, denuncia as ameaças que hoje a produção de alimentos saudáveis sofre em sua região. “Estamos ilhados”, afirma o trabalhador ao mencionar que no entorno das propriedades hoje predomina a produção de fumo e milho em larga escala, impactando a produção de base familiar de alimentos como feijão, batata, macaxeira, abóbora, etc.
![](https://enconasa.asabrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/07/VenenoXOrganico_em_AL.jpeg)
Sua propriedade de três hectares, por exemplo, está sendo afetada com a pulverização feita por uma vizinha recente que desmatou e queimou toda a área para cultivar mandioca. O uso do herbicida mata-mato nesta propriedade foi um dos motivos das angústias mais recentes de Seu Florisvaldo. Para ele, o uso descontrolado de venenos, o crescimento do cultivo de transgênicos na região, assim como a mineração, dentre outros empreendimentos, externam a ausência do cuidado com o meio ambiente em benefício apenas dos benefícios econômicos.
Região beneficiada pelo Rio São Francisco, hoje há também a preocupação com a possibilidade de contaminação dos rios afluentes que deságuam devido os resíduos da mineração. Apesar de tanta desesperança, Seu Florisvaldo diz que “a gente não desiste, continua insistindo, brigando” e seguindo com práticas de convivência com o Semiárido, a exemplo da manutenção das áreas de cultivos orgânicos na propriedade, cultivo de mudas, replantio de espécies, etc, recebendo pessoas para conhecer a experiência, além da participação em coletivos que incentivam os sistemas agroflorestais e cultivo sustentável de alimentos.
Para Samuel Lima, que integra a coordenação estadual da ASA em Sergipe, a transição agroecológica é urgente para garantir a construção sustentável dos sistemas alimentares. Ele observa que a ASA vem acumulando bastante a partir de experiências de milhares de camponeses/as, a exemplo de Dona Cida e Seu Florisval, que desenvolveram suas práticas por meio do acesso às políticas públicas contextualizadas à região.
Integrante do Movimento de Pequenos/as Agricultores/as (MPA), Samuel destaca o anseio de que “a retomada dos programas e políticas de Convivência com o Semiárido é essencial pra que a gente possa fazer o enfrentamento às mudanças climáticas e que a gente possa superar a fome em nosso país”. Para ele, aspectos como produção, processamento, distribuição, devem embasar novas ações que venham a ser implementadas pelos governos no campo.
No próximo ano, todos estes contextos e apontamentos farão parte dos debates e atividades de campo durante o Encontro Nacional da ASA, evento que celebrará os 25 anos da Rede e que vai acontecer na região do Baixo São Francisco.
Plano Nacional de Agricultura Familiar Participativo
O reconhecimento internacional que aponta a agricultura familiar como capaz de contribuir para trazer soluções para o mau funcionamento dos sistemas alimentares, não foi considerado pelo governo brasileiro vigente nos primeiros anos do Decênio. No entanto, hoje, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) já deu início aos processos para elaboração do documento que norteará ações para o segmento, especialmente a partir do retorno do Brasil à Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar no Mercosul (Reaf), conforme informou a Secretária de Agricultura Familiar e Agroecologia do MDA, Patrícia Vasconcelos.
De acordo com a representante do Governo Federal, a construção será participativa, contando com contribuições da sociedade civil, com vistas a contemplar “toda diversidade dos povos dos campos, das águas e das florestas”. Patrícia destaca que o Plano deve ser também contextualizado a todas as regiões do país.
Estes planos são baseados nos pilares definidos pela ONU, que visam 1) criar ambiente político para fortalecer a agricultura familiar; 2) apoiar jovens e garantir sustentabilidade geracional à agricultura familiar; 3) Promover equidade de gênero e o papel das mulheres como lideranças rurais; 4) Fortalecer as organizações de agricultores/as e sua capacidade de gerar conhecimento e prestar serviços no meio rural e urbano; 5) Melhorar a inclusão socioeconômica, resiliência e bem estar dos/das agricultores/as; 6) Promover a sustentabilidade na agricultura familiar para conseguir manter sistemas alimentares resilientes às mudanças climáticas; 7) Fortalecer a multifuncionalidade da agricultura familiar para promover inovações sociais que contribuam com o desenvolvimento territorial e sistemas alimentares que salvaguardam a biodiversidade, o meio ambiente e a cultura.
De acordo com Patrícia Vasconcelos, o Brasil adotará mais alguns pilares como acesso à terra, segurança hídrica e recursos naturais. Ela informa que a previsão é que no início de 2024 possa apresentar “o nosso plano participativo de acordo com a realidade atual do Brasil”. A secretária de Agricultura Familiar e Agroecologia adianta ainda que os movimentos sociais do Semiárido terão possibilidade de participar efetivamente desta construção, inclusive para que as experiências de Convivência com o Semiárido possam ser referência.
Plano Safra
Apesar do lançamento da Década da Agricultura Familiar ter ocorrido no Governo Michel Temer, o Brasil seguiu sem avançar na implementação das metas até 2022. De acordo com Patrícia Vasconcelos, o Governo Jair Bolsonaro chegou a afirmar que havia construído o Plano Nacional, mas, na prática, lançou apenas o Plano Safra, “contendo só a política de crédito (…) e um Plano Safra que não era específico da agricultura familiar”.
No Governo Lula, junto com o anúncio da recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, veio a retomada do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto pelo ex presidente em 01 de janeiro de 2018.
![](https://enconasa.asabrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/07/Galinhas_-_Ana_Lira.jpg)
Em junho deste ano foi lançado o Plano Safra da Agricultura Familiar, contando com R$ 77 bilhões para o setor, segundo o MDA. Já foi lançado também o Plano Safra Nordeste, no último dia 18 julho, no Ceará. Os estados também devem lançar planos estaduais.
Dentre as novidades, há a redução da taxa de juros para quem produzir alimentos, especialmente para quem optar pela produção de alimentos saudáveis. As mulheres também terão uma linha de crédito específica e quilombolas e assentadas da reforma agrária terão direito a juros menores nas linhas de créditos disponíveis.