“O que posso fazer é cuidar do meu pedaço de chão”
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“Minha relação com o solo é como se fosse algo mais forte… uma missão. A relação é de filho e mãe. A mãe-terra que é mãe de tudo e de todos; a terra que nos alimenta e nos dá tudo. O que posso fazer é cuidar do meu pedaço de chão, mesmo que seja pequeno. Eu não posso mudar o mundo, mas posso mudar o meu espaço”. O sentimento de pertencimento e de cuidado que o agricultor agroflorestal, Tone Cristiano, tem para com a terra é o que alimenta as esperanças no país que mais desmata e extingue espécies ameaçadas e que possui 50 milhões de hectares de terras degradadas, subutilizadas ou abandonadas pelo agronegócio, segundo informações do Observatório do Clima.
Não bastasse, os dados sobre os índices recordes de desmatamento, o Brasil amarga as consequências das medidas antiambientalistas do atual governo. No dia 11 de fevereiro deste ano, no 42º dia de mandato de Jair Bolsonaro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publicou a autorização de 57 novos produtos elaborados com agrotóxicos, 12 deles com substâncias altamente tóxicas. Na matéria da Agência Pública, os tóxicos citados são o Imazetapir e o Hexazinona, que tiveram a comercialização reprovada na União Europeia por serem considerados muito tóxicos; bem como o glifosato. Estas substâncias são danosos à saúde humana e ao meio ambiente. Um dos problemas mais comuns é a contaminação do solo, de lençóis freáticos e de rios e lagos.
Esta foi apenas uma das tantas decisões perversas tomadas nestes 100 primeiros dias de governo, que comprometem os solos, as águas e a biodiversidade brasileira. Na gestão do Ministro Ricardo Salles, a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas foi extinta, houve a exoneração coletiva de 21 dos 27 superintendentes regionais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama); além do congelamento da aplicação de R$ 1 bilhão, oriundo de multas aplicadas pelo Ibama, que seriam utilizados em 34 projetos de recuperação das bacias do Rio São Francisco e do Rio Parnaíba.
Todas estas medidas corroboram para que haja um processo acelerado de degradação do solo que passa a não ter reposição de matéria orgânica e perde seu caráter produtivo como afirma a Doutora em Cultura de Solos e Nutrição Vegetal, Ana Primavesi, em seu artigo Agroecologia e manejo do solo, publicado em setembro de 2008 na revista Agriculturas. “Com a redução dos teores de matéria orgânica do solo, a maior parte da vida microbiana não sobrevive, pois fica sem alimento. Sem a ação da matéria orgânica e dos microrganismos, o solo desagrega, compacta e endurece. Assim, sua capacidade de produção fica cada vez mais dependente do pacote químico da agricultura convencional”, afirma Primavesi.
É essa agricultura chamada convencional, com seus sistemas baseados na produção em larga escala seja de vegetais ou de animais, que é uma das principais vilãs no processo de empobrecimento dos solos. E é para este modelo que estão destinados 245 milhões de hectares de terras brasileiras, enquanto que as áreas de preservação não ultrapassam os 216 milhões de hectares.
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“Hoje tem muita pouca floresta e está sendo cada vez mais degrada, sendo queimadas e derrubadas para construção de imóveis. Hoje as indústrias estão muito focadas no dinheiro e só querem saber de colher e não quer saber do futuro o que vai ter para colher de novo porque se fosse auto sustentável, o que se plantou lá atrás poderia estar grande pra colher novamente. O problema não é derrubar, é derrubar e não plantar. Sempre que você corta tem que plantar em dobro. Corta uma, planta duas”, aconselha o jovem agricultor agroflorestal, Pedro Lermen, que aos 15 anos trabalha este processo de consciência ambiental dentro e fora do Sistema Agroflorestal (SAF) de sua família que está situado na Serra dos Paus Dóias, no município de Exu (PE).
Já Tone Cristiano, que mantém um SAF junto com a família no município pernambucano de Bom Jardim, explicita que a devastação do meio ambiente tem relação com a forma como as pessoas utilizam os recursos naturais. “Eu sempre escutei que a praga que existe na terra é o ser humano. Quem está matando a terra somos nós. O modelo capitalista que só visa a exploração e acha que os recursos naturais são infinitos e que nunca vai acabar. Há também uma completa omissão dos órgãos públicos e agentes de fiscalização e isso tem acabado com o solo. O triste é ver que além das grandes empresas, existem pequenos agricultores destruindo o meio ambiente porque acham que só vão conseguir ter um modelo de agricultura bom se ver o seu sistema parecendo com aqueles que ele vê nos programas rurais que passa na grande mídia”, denuncia.
No Observatório do Clima, a animação “será que o Brasil encolheu?” mostra de forma didática que o país “tem espaço de sobra para proteger o clima, conservar a diversidade e as comunidades, e ainda se tornar o maior produtor de alimentos, fibras e bioenergia do mundo. Basta ampliarmos as técnicas de produtividade em todo país para expandir a atual produção de alimentos sem nenhum desmatamento. Pra isso, precisamos apenas usar nosso território com inteligência”.
Umas destas formas é o cultivo agroecológico que vem sendo adotado por milhares de famílias camponesas e tem contribuído com a garantia de produção de alimentos saudáveis e com a conservação da vida no planeta. É o que Primavesi enfatiza em um dos trechos do seu artigo: “na Agroecologia, o agricultor deixa de perguntar ‘O que faço?’ e passa a questionar ‘Por que ocorre?’. Simplesmente ao reorientar o tipo de pergunta diante de um problema técnico em seus cultivos, ele muda a sua atitude em relação à forma de praticar a agricultura. Em vez de receber receitas técnicas prontas, passa a observar, pensar e experimentar. Com o tempo ele começa a produzir melhor que a agricultura convencional e ganha autoconfiança. E é assim que ele se dá conta de que é produtor de alimentos junto com a natureza que Deus criou, que respeita as leis eternas e que acredita em si mesmo”.
A agricultora Aparecida da Siva, conhecida por Cida, que mora no sítio Lagoa da Volta, no município de Porto da Folha, Semiárido sergipano, explica o significado da agroecologia para a sua vida. “Eu vim aprender a cuidar da mãe-terra há uns 20 anos, antes eu usava queimada. Depois que eu fui aprendendo a agroecologia e fui cuidando melhor, não usei mais queimada. É muito importante ser agroecológico porque agroecologia é um todo e quando você vai pegando sabor, experimentando e vendo como é… você não vai querer mais fazer queimada, nem esses produtos químicos e você vê que a mãe fica viva, saudável. É o mesmo que você tá cuidando de uma pessoa com anemia, aí vai dar remédio pra ela. Então, a gente cuida da terra dando a ela mesma o que ela produz”.
Olhar para estes povos, compreender a importância do seu papel e valorizar o seu trabalho é um primeiro passo para garantir que a relação entre natureza e seres humanos seja harmoniosa. “Ser agricultor é trabalhar com a arte da vida. Um agricultor acorda todos os dias com a responsabilidade de alimentar as outras pessoas. É uma responsabilidade enorme, não tem dimensão. Ser agricultor é ter essa missão de entender que se você não plantar alguém não vai comer”, finaliza Tone.
É no cotidiano das práticas agroecológicas adotadas dentro do Sistema Agroflorestal da família Lermen, e de outras milhares de famílias agricultoras que se vê na prática como o respeito aos ciclos da natureza e a produção com respeito ao meio ambiente tem gerado dignidade, saúde e renda no campo, além de ser fundamental para a vitalidade do solo. A agricultora agroflorestal, Silvanete Lermen, mãe de Pedro, fala como a agroecologia colabora para a saúde do solo e manutenção da vida.
“Trabalhar a agroecologia traz todos os elementos, terra, solo e água, de forma bem mais completa como um corpo só. Nós enquanto família entendemos a terra como mais que todos estes elementos, ela também é gente, ela também é povo. Trabalhar a questão da terra é perceber que fazemos parte de um único corpo e que se ela adoece, a gente também adoece, o que ela sente nós também vamos sentir. Se ela ficar anêmica, nós também vamos ficar anêmicos é dali de onde vem o alimento, é dali de onde vem a água; é dali de onde vem o sustento do nosso corpo. E se ela está bem, também estaremos bem. Quando passamos a olhar a terra com este olhar, entendemos que é um trabalho não só de um indivíduo, mas ela passa a ser um trabalho de diversos sujeitos que precisam ter a mesma compreensão, o mesmo pensamento e prática”, afirma Silvanete.
Ela complementa: “Aqui em casa nós percebemos a necessidade do envolvimento não só do homem não só da mulher, não só do pai ou da mãe, mas de todos que compõem a família e também das pessoas que vem visitar o nosso aconchego para estarmos na mesma conexão. É preciso compreender o que é uma semente por exemplo, e o que ela representará no nosso futuro. É como olhar para Débora, nossa filha mais nova, e como eu vejo ela no futuro. É um projeto! E eu projeto a minha família da melhor forma possível. Então tu olhar a semente é a mesma coisa. Quando eu desenvolvo este olhar de cuidado com a Débora e passo a praticar isso no meu dia a dia com a terra ela vai sentir e fazer a mesma coisa”, exemplifica.