Um dia de visita às experiências de convivência das famílias agricultoras de Sergipe

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O segundo dia (7) do IV Encontro de Agricultores e Agricultoras Experimentadoras do Semiárido, em Aracaju (SE) foi dedicado às visitas de campo. Os 350 participantes do evento, entre camponeses/as e técnicos das organizações da ASA, se espalharam pelo Alto Sertão, Sertão Ocidental, Médio Sertão e região sul rumo a 24 experiências familiares e coletivas de convivência com o Semiárido sergipano.

Essas visitas possibilitam um intenso intercâmbio de experiências entre as famílias agricultoras, favorecendo a construção coletiva do conhecimento. A atividade, que faz parte da metodologia adotada pela ASA nas suas ações, é um dos pontos altos do encontro. As descobertas e os aprendizados colhidos pelos participantes das visitas serão aprofundados nesta quarta-feira (8) nas oficinas sobre temas relacionados com a convivência com o Semiárido como a gestão da água, a conservação e multiplicação da biodiversidade, a exemplo das sementes crioulas, o manejo sustentável dos biomas Caatinga e Cerrado, a auto-organização das mulheres e da juventude, entre outros.

“O conhecimento para a convivência com o Semiárido vêm dos agricultores e agricultoras. A partir de uma necessidade e dificuldade, eles criam a partir dos materiais que têm ao seu alcance. É uma oportunidade de inventar. Essa é a revolução que queremos que aconteça na casa de cada família agricultora da região”, afirmou Adriana Sá, técnica da organização Arcas que atua na Bahia, na conversa de despedida do intercâmbio realizado na propriedade de seu Zé Nobre e dona Josefina, no município de Nossa Senhora da Glória, no Alto Sertão sergipano.

A seguir, apresentamos o resumo de alguns intercâmbios:

 

Dona Faraildes no centro da roda de conversa debaixo da mangueira | Foto: Itamar Peregrino

Povoado Ladeirinhas – Sementes crioulas e quintal produtivo

“Que bom está e viver em grupo, trabalhar em grupo, em grupo tudo é bem melhor”, dona Faraildes dá as boas vindas e começa seu relato de vida falando das sementes crioulas que guardava desde o ano de 1977. Mas só há pouco tempo descobriu que tipo de semente era essa, a semente crioula, e se reconheceu como guardiã das Sementes da Liberdade.

Depois dos visitantes conhecerem as experiências do espaço das sementes e de seus cultivos, todos voltam à sombra da mangueira e a prosa segue sobre as lutas vividas por dona Faraildes, que reconhece a dificuldade e também as conquistas pessoais e comunitárias. “Só conseguimos, se a gente descruzar os braços, no tempo que comecei na luta era o tempo da ditadura militar, muita perseguição, fazíamos tudo no escondido. Hoje é um pouco diferente, não se reunimos mais escondidos, mas é uma ditadura de quadrilha de ladrão, apoiado até pela justiça, então temos que ir para luta, para rua.”

Assentamento São Francisco – Banco de Sementes Comunitário
“Qual é a semente que você deseja plantar?”, o questionamento gerou reflexões na roda de conversa realizada na visita ao assentamento São Francisco, em Cristinápolis, cidade localizada no extremo Sul do Estado de Sergipe, a cerca de 120 km de Aracaju. Participantes do encontro vindos de cinco estados – Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia e Minas Gerais – com diferentes histórias de vida, buscam objetivos semelhantes: semear amor, alegria, soberania alimentar e também ter uma produção agroecológica diversificada. Lá, eles foram conhecer a experiência do banco de sementes comunitário com duas toneladas de material genético armazenado. O banco é resultado da luta do Movimento Camponês Popular (MCP).

“Esse encontro é produtivo, porque a troca de saberes enriquece o contexto da agricultura camponesa na luta pela terra, assistência técnica, qualidade de vida e alimentação saudável. Cada experiência que vem de outro estado pode ser aplicada na nossa realidade local e isso produz crescimento e transformação da sociedade”, explicou o integrante do MCP José Marcos dos Santos, que é um dos filhos de Maria dos Santos e José Zacarias. O casal foi o anfitrião do grupo visitante.

 

Na propriedade de Edleuza | Foto: Luciana Rios

Comunidade Monte Alegre – Quintal produtivo 

O quintal agroecológico de dona Edleuza Araújo, na comunidade de Monte Alegre, em Guararu, atraiu o interesse de vários participantes do encontro. O espaço não é grande, mas a diversidade de cultivos alimentares garante autonomia e segurança alimentar da família. No quintal, ela produz frutas, verduras, legumes, hortaliças e ervas medicinais a partir de práticas agroecológicas. Além de ter para consumir, ainda sobra para vender na comunidade. “Eu me modernizei. As pessoas me procuram e vendo agora pelo WhatsApp”, se orgulha a agricultora.

Antonia Antonieta da Silva, agricultora do Assentamento Tiracanga, em Canindé, Ceará, afirma que o que mais chamou sua atenção na experiência é o fato de Edleuza conseguir produzir e experimentar tantas coisas num lugar semiárido, com pouca água, e mostrar que tem uma riqueza maior que em muitos lugares de água abundante. “A persistência dela também foi algo que me marcou. Isso mostra que não é a terra que está nos dando, mas que estamos sabendo lidar e conviver com a terra”, completa. Para Francisco Bernardo Pereira, de Nova Olinda, Ceará, a propriedade da família de Edleuza é um “céu, uma riqueza, diante da dificuldade de manter isso tudo aqui no Sertão. Ela faz coisas que muitos homens não têm coragem de fazer”, pontua.

 

Povoado Sítio Óleo – Quintais produtivos

Um grupo de 10 mulheres e um homem foi conhecer a experiência protagonizada por uma experimentadora, Dona Josefa, em Poço Redondo. O tom da conversa foi marcado pelas trocas sobre a superação da situação de opressão sofrida pelas mulheres. “Muitas mulheres se prendem ao marido e deixam de fazer aquilo que é bom pra ela. Eu mesmo, muitas vezes deixei de fazer aquilo que eu sabia que ia da certo pra fazer a ideia do marido. Mas a pior coisa é a mulher só fazer aquilo que o marido quer”, disse dona Josefa no momento de boas vindas.

Na oportunidade, Vera, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) de Alagoas, comentou os depoimentos das mulheres na plenária acontecida no dia interior. Após várias trocas de inquietações e aprendizagem do “ser mulher”, o grupo circulou pela propriedade começando pela produção de hortaliças. Neste momento, a anfitriã apresentou suas técnicas de manejo de solo, produção e integração dos sistemas produtivos, com direito a receita natural de defensivo para espantar formigas com fezes de boi, água e açúcar. O grupo continuou circulando pela propriedade e, em cada lugar, eram trocados receitas, risos e vidas.

 

Guardião Pedro José e o boletim que conta a sua história de preservação das sementes crioulas | Foto: Paula Andreas

Povoado Lagoa da Volta – Guardião de sementes

Localizado no município de Porto Velho, esse povoado se destaca pela organização das mulheres, hortas orgânicas e casas de semente. O grupo visitante foi recebido pela Associação de Mulheres Resgatando Sua História, que compartilhou sua experiência organizativa e conquistas alcançadas a partir do empoderamento político. Em seguida, o grupo se dividiu para conhecer diversas experiências que favorecem a convivência com o Semiárido no povoado. Uma delas é a do agricultor e guardião de sementes crioulas, Pedro José, que compartilhou sua prática de resgate, conservação e preservação do material genético da comunidade.

O agricultor José Júlio do Ceará ficou muito satisfeito com o intercâmbio. Além da troca de saberes sobre as sementes, ele reencontrou uma planta da sua região que já não via há muitos anos. “A experiência dele [Pedro José] é muito bonita, ele conseguiu guardar sementes do avô dele, isso é muito importante. E eu vou levando pra casa essa cebola, que conhecia quando era criança e nunca mais tinha visto. Agora eu vou plantar de novo no meu quintal”, comenta Seu Júlio.



Comunidade Sítio Alto – Comunidade quilombola
Em Simão Dias, os visitantes foram recepcionados com samba de roda pelos quilombolas da comunidade Sítio Alto. Mulheres, crianças e homens participam das rodas e cantigas que são passadas de geração em geração desde o tempo da escravidão. Por muitos anos, a comunidade foi discriminada e vista como um lugar de miséria. A vida começou a melhorar após a fundação da associação em 1995, quando se reconheceram como quilombolas, mesmo que oficialmente esse título só tenha chegado anos depois.

“As cisternas da ASA libertaram o povo de Sítio Alto. Não foi uma mudança de vida pela metade e sim por inteiro”, relata dona Josefa Santos de Jesus, líder da comunidade, referindo-se à independência de políticos que prometiam água em troca de votos. Para a agricultora Valquíria, de Pernambuco, a força dos jovens foi o que mais chamou a sua atenção na experiência. “Hoje eu estou numa felicidade tão grande que eu não tenho como comparar. Eu acho que estou além do horizonte. Eu nunca me imaginava numa comunidade tão interessante e vou levar pra minha comunidade a história de superação de vocês.”


Povoado Augustinho – Gestão de água

Zé Nobre (boné vermelho) mostra o tomate de um dos muitos canteiros econômicos que construiu | Foto: Verônica Pragana / Arquivo: Asacom

No município de Nossa Senhora da Glória, no Alto Sertão de Sergipe, o agricultor Zé Nobre criou diversas tecnologias para captar e armazenar água. São tantas invenções originais que deixou o grupo de visitantes de queixo caído com a criatividade do anfitrião. No passeio pela propriedade, o cientista popular apresentou tecnologias de captação de água bastante originais e canteiros econômicos de vários jeitos, com irrigação por gotejamento e sangradouro com torneira. Uma das tecnologias é o terreiro aéreo, que junta até água da neblina e conduz para o calçadão da cisterna de 52 mil litros ou diretamente para a cisterna.

O tempo todo, em cada parte da propriedade, seu Zé Nobre comentava algo das suas plantações ou espécies nativas e servia como referência para os visitantes. Passando por um pé de jurubeba, uma agricultora perguntou:
– A medicinal é a branca ou azul?
– É a branca, respondeu ele.
– E a jurubeba serve pra quê?
– Pra curar inflamação.
– É da raiz ou da folha?
– Dos dois. Se você pegar até a semente e chupar, cura inflamação de estômago.

 

Comunidade Jacaré – Juventude rural

Nessa comunidade do município de Tobias Barreto, seu Pedro Meneses desenvolve sua experiência de guardião de sementes e de turismo rural no Recanto da Serra, um espaço de riquezas culturais e belezas naturais. Após serem recebidos com alegria e cordel pelo anfitrião, os/as agricultores/as conheceram o Museu D. Maria, que possui objetos dos tropeiros e fizeram uma trilha percorrida por quem percorreu a região há muitos anos.

Para a agricultora alagoana de 18 anos, Isrraela, “o espaço em si inspira cultura, inspira preservação. Quando eu cheguei aqui, me deparei com o cenário e não pensei que fosse tão rico de cultura, de preservação, de saber e viver a história. E isso a gente vai pegar e levar pras outras comunidades e multiplicar os saberes, porque o importante não é só a gente colher, mas também repassar, porque se você guardar ninguém mais vai ver.”

* Colaboração de Dani Bento, Gleiceani Nogueira, Luciana Rios, Luna Layse, Paula Andreas e Rosângela Vilela 

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