Crise hídrica e produção de alimentos no Brasil

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O debate sobre a crise hídrica vinculado mais fortemente, de forma estereotipada, à região semiárida, hoje é uma questão nacional. O tema ganhou destaque nas discussões e nos meios de comunicação de todo o País desde que chegou à região Sudeste. Durante os dias 23 e 24 de setembro, a discussão também ganhou espaço durante o Evento Temático Água e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, em São Paulo (SP).

Uma das atividades preparatórias para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que acontecerá em novembro, em Brasília – DF. Durante o Encontro Temático, Luciano Silveira Marçal, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), refletiu sobre a relação da crise hídrica e seu impacto na produção de alimentos no Brasil. Alertou sobre as causas dessa grande crise e trouxe para o debate a reflexão de vários estudiosos brasileiros sobre a influencia da ação humana no quadro climático brasileiro. Em conversa com Catarina de Angola, da Assessoria de Comunicação da ASA, ele partilhou as reflexões feitas no encontro. Confira abaixo:

Crise hídrica
Já é sentido em todo o País as evidências concretas da crise hídrica. Nunca a crise hídrica incidiu com tanta força no conjunto da população do Brasil, haja vista a evidência que esse tema ganhou na região Sudeste. Também a gente tem visto casos recorrentes de seca no Sul do Brasil e momentos de estiagem prolongada na própria Amazônia, que mostra que os fenômenos de interrupção dos ciclos hidrológicos parecem cada vez mais frequentes. Eu acho que uma das perguntas que se faz hoje é sobre quais são as reais causas geradoras dessas crises. Muitos especialistas têm buscado explicação nos fenômenos climáticos globais, muitos inclusive são céticos em afirmar qualquer alteração climática associada à ação humana. Tendem a apresentar o problema hídrico como uma questão dos ciclos naturais planetários. Mas as evidências que identificamos hoje nos mostram o contrário. A ação humana tem se revelado como determinante para a mudança dos padrões climáticos. Temos mudança climática global, mas há fenômenos que vem ocorrendo mais no nível dos territórios do País que precisam ser assinalados. E desse ponto de vista, identifiquei quatro importantes estudiosos que têm apontado alterações climáticas que se explicam pela interação humana mais direta.

Rios Voadores
O primeiro deles é o Antonio Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele vem estudando a importância da floresta Amazônica na configuração do clima e dos impactos do desmatamento. Ele estuda um fenômeno há pouco desvenda, chamado Rios Voadores, que não se conhecia até então. Esses rios são decorrentes, sobretudo, da umidade que vem dos oceanos e que entra pelo Norte do Brasil, na floresta Amazônica e precipita, porque a água vem do oceano e precipita na floresta Amazônica. E essa água que é precipitada na Amazônia é bombeada pela floresta e a umidade que vem da floresta ascende na forma de vapor. Uma parte dessa umidade precipita na própria floresta, mas a outra umidade bate na cadeia de montanhas dos Andes e corre como um grande rio em direção ao Sul do Brasil. Esse vapor que se desloca para o Sul é maior que o próp volume que escoa pela Bacia do Rio Amazonas, então é um volume imenso de água, que é responsável por boa parte das chuvas que irrigam a região Sul. Só pra a gente ter uma ideia, até então não se entendia porque essa região do quadrilátero entre Cuiabá, São Paulo, os Andes e Buenos Aires era tão úmido. Então o Antonio Nobre fala que a floresta Amazônica é uma gigantesca usina de serviços ambientais. Esse é o principal alerta feito pelo Antonio Nobre. E que a sociedade caminha para o matadouro porque estamos destruindo as bases que garantem as condições de vida em boa parte do País. Evidentemente que a crise em São Paulo também decorre, e ele fala isso, do próprio desmatamento da Mata Atlântica. Ele chega a dizer que São Paulo pela área impermeabilizada imensa que tem sobre ela se assenta uma espécie de massa de ar quente que impede que as chuvas caiam. O microclima da área urbana também acaba sendo fator inibidor das chuvas. Então, vejamos como a ação humana também tem alterado.

Extinção do Cerrado brasileiro
O segundo estudioso é o Altair Sales, professor da PUC de Goiás [Pontifícia Universidade Católica], e vem estudando há muitos anos o Cerrado, que é o ambiente mais antigo do Planeta. O Cerrado brasileiro tem aproximadamente 65 milhões de anos e é um bioma que já se amadureceu, dificilmente depois de destruído ele se regenera. A capacidade do Cerrado se regenerar é muito pequena e é conhecido como o Berço das Águas no Brasil. Das 12 Bacias Hidrográficas brasileiras, oito são alimentadas pelo Cerrado, inclusive a Bacia do Rio São Francisco. 94% das nascentes do Rio São Francisco vêm do Cerrado. O desmatamento do Cerrado provoca alterações profundas na capacidade dele se abastecer com as águas das chuvas. É uma vegetação que tem uma característica peculiar, dois terços da estrutura arbórea da sua vegetação são debaixo da terra, são raízes. Só um terço é fora. E é exatamente essa estrutura arbórea voltada pra dentro do solo que garante que essa água infiltre adequadamente e alimente os grandes aquíferos. Os maiores aquíferos do país são alimentados pelo Cerrado também, inclusive o Urucuia, um dos principais aquíferos que abastece o Rio São Francisco. As condições de recarga estão comprometidas. Porque as chuvas não são mais retidas nos solos e armazenadas no próprio solo e nos aquíferos. A água que vem da Amazônia, que já está vindo menos, boa parte se perde pela evaporação, pelo escoamento superficial e as taxas de infiltração caem. Associado a isso, você tem com os monocultivos um aumento tremendo com as irrigações via poços, perfuração de poços, tem uma super exploração dos aquíferos, das reservas que estão no subsolo de água para garantir os projetos de irrigação de soja, cana, café, etc. Então, temos uma pressão sobre a água que infiltra e uma grande parte dela ainda é bombeada para atender esses projetos de irrigação. E aí ele [Altair Sales] faz um alerta dramático. Afirma que o Cerrado já está instinto.

A extinção inexorável do Rio São Francisco
O terceiro estudioso é o José Alves Siqueira que é o pesquisador da Univasf [Universidade Federal do Vale do São Francisco] e que a ele foi encomendado um estudo pelo Ministério da Integração para avaliar os impactos que a transposição do Rio São Francisco geraria no conjunto da Bacia e ele fez um estudo amplo, inclusive mapeando vegetação, etc.. Um livro com a contribuição de muitos outros pesquisadores e o que chama atenção no livro [Flora das Caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação] é que o primeiro artigo tem o título “A extinção inexorável do Rio São Francisco”, que é mais do que um alerta, é uma afirmação sobre o grau de comprometimento que o Rio já vem sofrendo. De fato, se você observar o que vem acontecendo no Rio São Francisco nos últimos tempos, a situação é grave. Lembro que participei de um debate intenso quando se discutia se o projeto da transposição seria ou não realizado, em 2006, e a gente fez muitos debates, inclusive com o governo. E os técnicos do próprio Estado, hidrólogos, falavam que a vazão firme regularizada, ou seja, a vazão de base do Rio São Francisco, que é a mínima de saída da reserva do Sobradinho era de 1.800 metros cúbicos por segundo (m³/s). O projeto era dimensionado para usar 127 m³/s, só que a outorga concedida é de 26 m³/s, com prioridade de uso humano. E a gente sabe que o projeto da transposição está sendo montado com interesses econômicos para, sobretudo, grandes projetos de irrigação. Ele terá uma demanda muito maior de água. O fato concreto é que hoje, menos de 10 anos depois desse debate, o volume de águas que sai da barragem de Sobradinho é de 900 m³/s, a metade do anunciado como mínimo. E agora a gente ouviu [durante Evento Temático em SP) o Félix Domingues, da ANA [Agência Nacional de Águas], falar que isso é o que está saindo, mas o que está entrando na Bacia hoje, para recarga da barragem de Sobradinho são 450 m³/s. Ou seja, a conta não fecha. Essa é uma tendência e essa situação é mais do que dramática. Inclusive, a própria Agência Nacional de Águas estudando esse fenômeno afirma que para eles isso é um ponto fora curva, porque eles trabalham com a ideia de que essas secas são ciclos, só que esse ciclo que está ocorrendo agora não existe na história, eles voltam 100 anos e em nenhum momento dos 100 anos eles têm um episódio semelhante a esse. Ou seja, o que está acontecendo agora no Rio São Francisco é muito mais profundo do que qualquer dado nos últimos 100 anos.

Ciclos das Águas
O quarto estudioso é o nosso companheiro Robert Malvezzi, o Gogó [da Comissão Pastoral da Terra]. Ele é quem vem buscando olhar de forma integrada esses diferentes acontecimentos. Porque esses estudiosos cada qual tem colocado o seu fenômeno a partir do olhar no seu campo de observação. Um é Amazônia, o outro é o Cerrado, o outro o Rio São Francisco. E o Gogó alerta para esses fenômenos de forma articulada e ele sinaliza que está ocorrendo uma ruptura dos ciclos das águas no País, decorrentes da conjunção dessas transformações que são provocadas, sobretudo, todas elas pela ação humana.

Agronegócio e Perímetros Irrigados
As causas principais geradoras desse quadro, se observarmos, estão marcadamente associadas ao modo de ocupação e uso da terra no País, em particular pelas formas que o agronegócio avançou sobre esses territórios. Ou seja, a ocupação associada às grandes propriedades monocultoras, são lógicas econômicas que atuaram numa lógica de simplificação das paisagens. O corte das paisagens de forma a anular completamente as paisagens originais e de afastamento do ambiente produtivo das características ecológicas dos ecossistemas naturais. Cada vez mais esses sistemas são artificializados e simplificados. E de promoção de uma agricultura sem agricultor, sem agricultora, o que tem levado, e a gente está assistindo diariamente, a expulsão permanente de populações, povos tradicionais, agricultura familiar em nome de uma chamada agricultura moderna, que anuncia o Brasil como grande celeiro da humanidade, mas na verdade está promovendo ameaças profundas à própria segurança alimentar pela lógica de ocupação e uso desse espaço. Isso se dá na Amazônia, no Cerrado… Se a gente observar as tendências são de expansão dessa lógica. Recentemente a ministra da agricultura Kátia Abreu anunciou um novo projeto chamado Matopiba, que é um projeto de expansão da fronteira agrícola, que envolve as áreas de Cerrado, do Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia, e justamente na área de Cerrado que ainda está menos afetada pelo desenvolvimento do agronegócio. Ou seja, não bastasse a degradação do que já se fez, porque pelo menos 50% do Cerrado está totalmente transformado e o resto, a parte ainda conservada original ela não chega a 20%. E a mira do Matopiba é de liquidar o pouco que ainda existe dessa região do bioma. Temos de um lado uma tendência de expandir essa forma de ocupação, que está destruindo as próprias condições de regeneração da agricultura. Há mais ou menos dois anos o governo federal anunciou o Mais Irrigação, que é um projeto para expandir as áreas irrigadas. O projeto envolve ações de irrigação para cobrir uma área de mais de 500 mil hectares e muita revitalização dos perímetros, porque os perímetros só se viabilizam com subsídio, porque são sistemas caros e artificializados. Nesse projeto mesmo os perímetros mais consolidados vão receber dinheiro, porque só sobrevivem mediante subsídio do Estado. Perímetros que produzem alimentos que são na verdade para exportação, eles não produzem alimentos para o Brasil. É bom lembrar que hoje muitos dos perímetros irrigados estão vivendo uma crise profunda. Crise essa decorrente, sobretudo, de um padrão de desenvolvimento agrário e agrícola insustentável e que continua sendo a base dos projetos hegemônicos de desenvolvimento para o rural brasileiro.

Centralidade da Agricultura Familiar e Povos e Comunidades Tradicionais

70% dos alimentos consumidos pela população brasileira vêm da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais. | Foto: Ana Lira/Acervo Asacom

Aí você diz: se essa agricultura é o celeiro do mundo, produz alimentos, etc. será que é ela que é responsável pelo abastecimento de alimentos da população brasileira? A resposta é não! Esses grandes projetos do agronegócio são em sua maioria produção para exportação. São na verdade commodities. A gente exporta água, porque o custo da água [volume alto gasto no agronegócio] é um subsídio que prestamos para os outros países, porque a gente paga caro para exportar esses grãos para o exterior. E já é sabido que 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira vêm da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais. Eu acho que aí que a gente encontra os caminhos de enfrentamento da crise que a gente vive. Ou seja, enfrentar o problema da crise hídrica do País passa necessariamente pelo enfrentamento, ou seja, por mudanças profundas na estrutura agrária e no modelo agrícola de produção. Sem isso a gente não avança, e isso vale não só para o mundo rural, mas para o mundo urbano também. Porque as grandes cidades hoje são aglomerados populacionais que concentram muita gente em pouco espaço e isso em grande medida de um modelo de desenvolvimento que expulsou as famílias das áreas rurais, de uma agricultura sem agricultores e sem agricultoras. Então, é preciso reverter esse quadro. E a reversão desse quadro é fundamental, porque é a agricultura familiar de base camponesa que ao longo da sua história soube desenvolver sistemas de produção agrícola que se constituíssem em harmonia com a natureza, com as paisagens locais, com a conservação da água, do solo e dos ambientes, pela própria natureza das formas de produzir, pela própria vocação dela na produção de alimentos. São dessas agriculturas e dos povos e comunidades tradicionais onde a gente encontra espaços de conservação e de valorização da água e de padrões capazes de reverter esse quadro.

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