Comunicar para visibilizar práticas emancipadoras da condição de vida no campo

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A comunicação popular e comunitária esteve no centro do debate do Encontro Nacional de Comunicação da ASA, que aconteceu de 09 a 11 de setembro em Gravatá (PE). A Prof.ª Cicilia Peruzzo, especialista no tema, participou do evento e concedeu esta entrevista a Mariana Reis, da equipe da Asacom. Cicilia é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo e autora do livro Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania (Ed. Vozes).

Cicilia Peruzzo: “É preciso instituir canais de interatividade e espaço democrático de participação”. | Foto: Netto Santos

A comunicação nos movimentos populares pode ser considerada um contraponto ao que é veiculado nas grandes mídias?   
                                                                                                                                                                            Poderia ser considerada como contraponto em casos em que ela aborda um mesmo assunto, ou seja, quando este também é tratado pela grande mídia, situação em que os meios de comunicação dos movimentos populares dariam a sua versão dos acontecimentos. Dariam explicações, indicariam dados e fatos como forma de municiar a formação de opinião a partir da visão dos próprios movimentos. Pois, não raro, a grande mídia tende a interpretar realidades segundo critérios que não correspondem à realidade vivida localmente, por exemplo a do semiárido, quando se deturpam visões sobre o que acontece e por uma ótica desfavorável as organizações, movimentos populares ou aos próprios cidadãos/as. 

Mas, se tomada em seu conjunto, do meu ponto de vista, ela é mais do que um contraponto. É uma outra comunicação porque se constitui num todo em que processos, conteúdos e formas se configuram em contextos mais amplos de luta e mobilização social. Sua base está em outros emissores, outras fontes e em conteúdos tratados pela ótica dos movimentos sociais populares.

Que papel os movimentos sociais desempenharam e desempenham na história da comunicação popular no Brasil e na América Latina?

A comunicação popular, se entendida como comunicação de segmentos organizados das classes subalternas, é uma forma de expressão dos movimentos sociais populares e de suas organizações.  Desse modo, quem representa algo para os movimentos sociais populares é a comunicação e não o inverso, pois ela se insere no contexto de suas manifestações para ajudar nos processos de consciência – mobilização – organização – ação. É sua alma e seu espelho. A comunicação popular é parte de um processo em que os movimentos populares sentem a necessidade de comunicar como forma de mobilização de seus públicos, bem como de obter visibilidade social confiável para suas realizações, conquistas e propósitos.

Nos últimos anos, os movimentos sociais vêm passando por transformações. Entraram na pauta desses movimentos novas bandeiras de luta, como a agroecologia e o feminismo, por exemplo. Pode-se dizer que essas novas bandeiras influenciam na forma de comunicar as lutas?

Sim, dependendo do lugar de onde observamos os movimentos populares, articulações, coletivos, fóruns, associações, ONGs, sindicatos etc. que se inscrevem nas lutas como a agroecologia e a do movimento de mulheres têm sido muito importantes.  Existem lutas específicas em um e em outro desses universos, mas às vezes caminham juntas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que as organizações de pequenos agricultores familiares se mobilizam para negar o uso do agrotóxico e para desenvolver o conhecimento voltado a práticas alternativas de controle de pragas e de cultivo da terra sem destruí-la, surgem demandas das mulheres inseridas nas lutas, por igualdade em relação ao homem e por seus direitos de participação e independência.

A mulher quer participar da direção do sindicato, da associação de pequenos agricultores, da visita de intercâmbio, da gestão do fundo solidário e assim por diante. Nem sempre esses canais estão abertos, mas ela tem marcado papel de liderança. Quanto às bandeiras agroecológicas e das mulheres, apesar de não serem novas, são atuais e cada vez mais importantes, pois recolocam a relação de dignidade da pessoa com a terra, com a natureza, com o planeta, e da exigência de igualdade de direitos enquanto pessoa humana, inclusive, de poder ser protagonista de um tipo de desenvolvimento que garanta a equidade de acesso a suas benesses.

O que caracteriza a comunicação popular hoje, no espaço rural?

Nos setores organizados do meio rural, principalmente, aqueles voltados à agricultura familiar e a cooperativas, a comunicação popular e comunitária se caracteriza, por um lado, como mediação, como instrumento de educomunicação e/ou como facilitadora entre as práticas comunitárias mobilizadoras e a transformação das realidades, na perspectiva do interesse coletivo. Por outro lado, se presta também para dar visibilidade pública às finalidades, estratégias e práticas emancipadoras da condição de vida no campo, e a conquistar aliados e a boa vontade no conjunto da sociedade para as mudanças em curso.  

O Movimento Sem-Terra (MST) tem realizado, desde 2009, um curso de jornalismo da terra em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC). A graduação é voltada para filhos e filhas de assentados da reforma agrária e aborda conteúdos específicos das lutas do campo. Qual a importância de formar comunicadores/as populares?

Grande iniciativa porque mexe com o sistema tradicional de ensino do Brasil que, com raras exceções, está montado para formar pessoas para o mundo urbano, para o mundo competitivo, para servir ao capital e aderir ao consumo. Crianças e jovens que vão estudar nas cidades dificilmente voltam apara o campo justamente porque os atrativos do urbano superam qualquer outra possibilidade. Desse modo, mesmo a formação em Comunicação (jornalismo, publicidade, relações públicas), quando não pensada segundo a ótica da sociedade civil acaba por conduzir a visões pouco producentes para o trabalho em comunidades e em organizações populares. Portanto, iniciativas como a referida no enunciado na questão, são salutares por permitirem uma formação aderente à realidade das organizações da sociedade civil para além do grande mercado e das mídias convencionais.

A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) está completando 15 anos e agrega, hoje, cerca de três mil organizações, entre sindicatos, igrejas, ongs. Quais os desafios do comunicar, para uma rede dessa dimensão?

Trata-se de uma questão que seria mais bem respondida por esse conjunto de organizações… Sem dúvida são muitos os desafios dada a diversidade regional e das entidades articuladas na ASA. Mas, creio que o maior desafio seria estabelecer mecanismos capazes de canalizar a participação ativa desses atores todos e também daqueles que estes representam.  Então, a comunicação não seria apenas unidirecional ou emitida de um centro principal e dirigida aos seus membros, – porém, que essa parte também é necessária -, mas que instituísse canais de interatividade e para espaço democrático de participação.

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