“Questão energética leva ao debate sobre modelo de sociedade”, diz Scalambrini

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“Não existe energia limpa”, afirma Heitor Scalambrini.

Confira, a seguir, a entrevista que Gleiceani Nogueira, da Asacom, realizou esta semana com Heitor Scalambrini Costa, sobre energia eólica.

Heitor é professor associado da UFPE, graduado em Física pelo Instituto de Física Gleb Wattaghin da Unicamp, mestre em Energia Solar, pelo Departamento de Energia Nuclear da UFPE e doutor em Energética, pelo Commissariat à I’Energie Atomique – CEA, Centre d’Estudes de Cadarache et Laboratorie de Photoelectricité Faculte Saint- Jerôme/Aix-Marseille III, França. Também membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, da Articulação Antinuclear Brasileira e do Fórum Suape – Espaço Socioambiental.

A produção de energia eólica vem crescendo no Brasil. Entre 2006 e 2013, a energia do vento cresceu 829%. Essa fonte de energia é classificada por alguns como “limpa” porque não geraria poluição e não agrediria o meio ambiente. Você concorda com essa classificação?  
 
Do ponto de vista físico, não existe energia limpa. Ou seja, não existe uma fonte energética convertida em outra fonte que não emita gases, resíduos e que não impacte socialmente. Podemos classificar as fontes como “sujas”, no caso dos combustíveis fósseis, gás natural, carvão mineral e derivados de petróleo e minérios radioativos, e as fontes “menos sujas”, que são as energias renováveis solar, eólica, biomassa e hidráulica. Portanto, todo processo de conversão de energia impacta socialmente e ambientalmente.

Ao contrário do que vem sendo propagado pelas empresas do setor, a energia eólica tem provocado grandes impactos socioambientais como a instalação de parques eólicos em territórios tradicionais e sem a autorização das comunidades. Um exemplo acontece na comunidade quilombola Malhada, na região de Caetité, na Bahia. Como tem sido a fiscalização e a liberação de áreas para construção de parques eólicos?

O Brasil padece de um marco regulatório padrão para os parques eólicos em nosso território. Por mais falha que seja a legislação brasileira para o setor, nesta área, as normas ambientais são as mais abundantes. Falta, contudo, uma padronização para estabelecer critérios e garantir a mitigação dos impactos ambientais.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira das constituições brasileiras a abordar o meio ambiente, tendo-lhe sido dedicado um capítulo exclusivo. A proteção ambiental foi descentralizada, o que significa dizer que todos os entes federativos – a união, os estados, os municípios e o Distrito Federal – têm competência, dentro dos limites constitucionais, para tratar de matéria ambiental, não havendo subordinação de uns em relação aos outros. Por isso, não se pode obrigar que um estado aja ou atue como outro.

No entanto, essa independência federativa não pode resultar em situações tão díspares quanto as que se apresentam hoje. O que é preciso para obter a licença? Hoje em dia depende do estado que estiver recebendo esse parque eólico. Essa situação sai do campo da autonomia federativa para tornar-se um problema em que critérios são impeditivos de concessão em determinados estados e permissivos em outro.  Por certo, as características de cada local devem ser consideradas, e importam consideravelmente na análise que conduzirá à concessão ou não da licença. Mas o que se tem hoje é uma grande disparidade de exigências.

No exemplo de outras “modernidades” que foram criando e dominando os espaços urbanos, acompanhamos o alastramento de parques eólicos em todo mundo, diante da necessidade de aumento do fornecimento de energia, no atual modelo de sociedade, e da utilização de alternativa à eletricidade dos combustíveis fósseis. Um estudo do Conselho Mundial de Energia Eólica (GWEC), já amplamente divulgado, aponta que a energia eólica deverá atender 12% da demanda elétrica mundial em 2020, podendo chegar a 22% em 2030.

Na Bahia, em particular, as denúncias de entidades que atuam em áreas rurais, com populações vulneráveis, e também com a questão ambiental, apontam para o desmonte da legislação ambiental. Assim, favorecendo empreendimentos que desrespeitam a preservação ambiental e os direitos das populações nativas.

Segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2010-2019 da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a capacidade instalada de usinas eólicas no Brasil deve atingir pelo menos a marca de 5,3 GW até 2019. O que esse percentual representa para a geração de energia do Brasil?
 
Ainda muito pouco, pois em 2019 a potência total instalada para geração elétrica deve chegar próximo aos 135 GW. Portanto, se a capacidade instalada de usinas eólicas atingir os 5,3 GW, representará menos que 4% do total.

É bom registrar que estamos falando de grandes centrais eólicas, onde uma determinada área concentra dezenas, centenas de aerogeradores – essas máquinas que convertem a energia do vento em energia elétrica. Esse processo produz grande quantidade de energia elétrica que depois é transmitida até os centros consumidores.

Outro processo de geração eólica seria a descentralização na instalação dos aerogeradores. Seriam pequenas instalações – poucos geradores ocupando área restrita – gerariam energia para serem consumidas localmente em conjuntos de casas, pequenos negócios comerciais, pequenas industriais, etc. Neste modo de geração haveria menos impactos e a energia não precisaria ser transmitida, com menos perdas na fiação elétrica.

Como funciona o processo de contratação das empresas de energia eólica no Brasil? Quais os compromissos que elas assumem com as comunidades do entorno onde os parques são construídos? 

Com as mudanças do modelo elétrico brasileiro, iniciada em 1995 e reformada em 2004, passamos a um modelo mercantil. A energia então é considerada como mercadoria, e sofre todas as influências e regras do mercado.

A contratação de energia elétrica é feita através de leilões de energia onde prevalece ao preço menor da energia oferecida pelo empreendedor. Hoje a energia eólica é a segunda fonte de energia elétrica mais barata, perdendo apenas para a energia gerada nas hidroelétricas.

O que se verifica é o desrespeito total às leis existentes dos empreendedores, em relação às populações nativas que habitam os locais selecionados para receber o parque eólico, assim como em relação à preservação ambiental.

Então, uma fonte energética que durante o processo de conversão não emite gases e nem poluentes, e é muito interessante do ponto de vista da luta contra as mudanças climáticas, acaba se tornando altamente prejudicial socialmente e ambientalmente em função de como está sendo implantada em nosso país. Cabe, portanto, um alerta às autoridades para que se faça cumprir as leis.

Quem é beneficiado com a energia eólica gerada no País? Para onde ela vai e a que serve? 

Da forma em que está sendo gerada, em grandes blocos de energia, ela é injetada na rede elétrica que transmite e distribui a energia até o consumidor final, seja residencial, comercial, industrial…

No modelo atual de sociedade, capitalista, industrial e consumista, a energia é utilizada cada vez mais, sem que preocupações com seu uso otimizado e inteligente seja considerado. Nosso país segue este exemplo.

Os planejadores do setor elétrico/energético criam cenários em que o consumo de energia é crescente, dependendo do crescimento econômico do país. Para tal, utilizam como indicador o Produto Interno Bruto (PIB). Como geralmente partem da premissa que o PIB crescerá a taxas que acabam não acontecendo, acabam gerando expectativas no crescimento da demanda energética. E então criam a necessidade que mais e mais usinas sejam construídas, e pouco priorizam a eficiência energética.

Portanto, o modelo de desenvolvimento atual está baseado na oferta sempre crescente de insumos, e a energia é um deles. Mas se vivemos em um mundo finito, não se pode imaginar que o crescimento seja indefinidamente. Então discutir a questão energética nos leva necessariamente ao debate sobre o modelo de sociedade que vivemos.

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