A resistência que salvaguarda o direito humano à alimentação saudável

A ação dos agricultores e agricultoras familiares em selecionar e guardar as sementes para os próximos plantios é um ato que se contrapõe à produção das sementes transgênicas pela indústria
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Sementes: recurso de valor imensurável para as famílias agricultoras

Imagine os alimentos que você consome nas três refeições do dia. Para quem tem uma dieta balanceada em nutrientes, os alimentos são variados em sabor, cheiro e cor. Agora direcione sua atenção para os recursos necessários à origem de cada alimento da sua dieta: terra, água e sementes. Estas últimas têm um valor imensurável para os agricultores e agricultoras familiares porque significam liberdade e autonomia para o seu labor, simbolizam o saber acumulado por gerações no manejo da semente e são elo entre a família e a cultura alimentar da localidade.

No entanto, as sementes crioulas, adaptadas há anos e anos às condições climáticas e de solo da região em que são naturais, estão sob ameaça de desaparecer. Com isso, os alimentos que delas brotam e vão para a mesa do campo e da cidade também somem. A tendência, hoje em dia, é uma crescente dependência dos agricultores familiares às sementes de laboratório, produzidas por algumas indústrias alimentícias que assumem o poder de determinar o que a população vai comer, a partir de critérios que tornam o negócio mais rentável possível.

Apesar deste perigo rondar de perto os agricultores do Semiárido, neste espaço geográfico a tradição secular de selecionar e armazenar as sementes ainda constitui uma ação de resistência que tem salvaguardado a fonte da vida. É sobre esse assunto de suma importância para a sociedade contemporânea que trata a entrevista feita com Vanúbia Martins de Oliveira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Diocese de Campina Grande (PB), e integrante da Rede das Sementes da Paixão da Paraíba. A entrevista foi realizada durante o Festival de Sementes da Fartura, realizado em julho passado, no município de Pedro II, no Piauí. O evento foi organizado pelo Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido, coletivo que representa a ASA no estado.

Asacom – O que representam as sementes crioulas para as famílias agricultoras?

Vanúbia Martins de Oliveira, membro da CPT e Rede de Sementes da Paraiba

Vanúbia – As sementes crioulas ou da paixão, da resistência, da fartura, como são conhecidas em vários lugares do Semiárido, são a possibilidade de fazer agricultura no Semiárido. As sementes sempre foram consideradas a coisa mais importante dentro da agricultura familiar. Isso porque traduz a autonomia, a capacidade de produtividade. Tem um ditado muito antigo que as mulheres diziam: “Maldito dente que come a semente”. Quando chegavam os tempos de estiagem, iam comendo todo o alimento, mas as sementes precisavam ser preservadas. Em algumas famílias, era preferível passar fome que comer todas as sementes. Era amaldiçoado aquilo e você não teria fartura para o futuro. Essa era um forma de estocar, de guardar e de garantir as sementes para o próximo inverno, para as gerações futuras.

Essa ligação com as sementes é muito mais do que capacidade produtiva, é uma ligação cultural, do gostar, do bem querer com o tipo de alimento que ela produz, com o tipo de prazer que ela traz. Cada alimento está ligado a um gosto, uma cor, uma característica que as famílias gostam. E por isso que as famílias guardam a diversidade. Diversidade não só das espécies, mas dos saberes de adaptação delas em cada realidade e solo, adaptação às mudanças climáticas, do saber plantar, cuidar e colher na hora certa.

E a semente sempre foi a herança que os pais deram aos filhos durante muito tempo, um grande presente dado a um casal recém-casado era um saco de milho e um saco de feijão. No Nordeste, durante muitos anos, se conta essa história. É uma herança que traz todo conhecimento, história e cultura daquela família contida na semente.

Asacom – E que a ação de guardar a semente, de preservar esse patrimônio genético representa para a sociedade atual, para o futuro da humanidade?

Cores e vida: Guardiães das sementes exibem suas riquezas guardadas em potes plásticos

Vanúbia – A humanidade só teve futuro porque a gente descobriu que era possível plantar e colher. Assim como a gente teve, no tempo das cavernas, a capacidade de olhar e observar as mulheres do entorno, de jogar as sementes na terra e ver que elas produziam do mesmo jeito. Os agricultores foram fazendo esse serviço gratuito para a humanidade – adaptando, selecionando, melhorando, domesticando vários outros, tirando as toxinas de alguns, guardando as que tinham algumas características… isso sempre foi feito pelo agricultor familiar, pelos camponeses.

Hoje, nós temos uma erosão genética fantástica. E estamos caminhando para uma maior erosão. Os transgênicos trazem uma só forma de sementes para o todo planeta. E todo o planeta não come só soja, não come só milho, nós comemos uma diversidade de sabores. Essa erosão provoca uma desertificação do nosso paladar e uma perda da diversidade biológica do planeta, e desertifica também a terra. Os transgênicos são essa condição de uma única semente e que não funciona porque vai trazendo mais veneno, mais produtos químicos e mais desertos na terra.

O futuro da humanidade só será possível se mudarmos nossos hábitos. Está sendo apregoado por “n” categorias, não só dos camponeses, mas cientistas políticos, sociais, ambientais e ativistas, que se a Terra não retomar ao seu equilíbrio, a gente pode ter uma catástrofe maior no futuro.

São os camponeses que guardam uma variedade imensa de sementes que produzem a diversidade de alimentos que vão para a nossa mesa. Porque o agronegócio produz o biocombustível ou óleos. Se a gente tem cana, biocombustível, soja, biocombustível, milho, biocombustível ou ração, algodão, mamona, biocombustíveis. Nós não comemos biocombustível. É bom que a gente lembre disso. Quem está na cidade também come inhame, macaxeira, batata-doce, tapioca, feijão macassa, feijão carioca, milho, tudo isso é uma variedade que tem sido garantida pela agricultura familiar camponesa. São os homens e as mulheres que estão no campo que vem preservando, adaptando e readaptando as sementes às mudanças climáticas que nos temos hoje.

Os camponeses dizem que é possível continuar produzindo alimentos se a gente continuar produzindo e reproduzindo as sementes nos seus lugares. Não adianta que ela seja externa. Os exóticos também produzem desertos. A exemplo da algaroba plantada sem cuidado no Nordeste. Em alguns lugares, ela se tornou praga, não é mais benefício.

Asacom – E quais são os principais desafios que estão colocados no atual contexto das indústrias alimentícias…

Vanúbia – Desde que a gente colocou a indústria como a grande salvadora da humanidade e nós só tínhamos essa possibilidade de caminho pra des-envolver – se a gente entender desenvolver, se tirar o “des” a gente não envolve as pessoas, separa elas do envolvimento que ela tem com a terra, e a indústria fez isso com a gente – a gente chegou nos transgênicos.

A gente passou por alguns melhoramentos genéticos, passou pelo híbrido e chegamos nos transgênicos que têm uma capacidade imensa de contaminação de sementes outras que não são transgênicas. A gente imaginar comendo transgênico, o milho BT que é milho, mas ao mesmo tempo também é lagarta.
Quem está na cidade não tem ideia que tem pedacinhos de lagarta dentro daquele milho, que é o gene da lagarta que tá ali dentro, que o gene de outra substância que está dentro de outras comidas e que, se eu tiver alergia, eu posso comer uma coisa e acabar tendo uma reação alérgica. Posso comer feijão que é amendoim ou amendoim que é castanha do Pará. A gente tem feito essas brincadeiras que nem sempre são saudáveis.

Somando-se a isso vem a quantidade de venenos que têm que ser usados nessas sementes. E vem com uma teoria que vai reduzir [o veneno], mas temos visto o contrário. Tem uma pesquisa de um grupo de franceses que comprova que o transgênico consumido diariamente, em seis meses, provoca câncer. O que fizemos com isso? Nós que estamos na cidade, indo para o supermercado, olhamos o tezinho e continuamos comprando. Alimento transgênico. Não vamos mais à feira perguntar se aquele milho, aquele feijão vem de um agricultor. Estamos discutindo comida e não alimento.

Corremos um grande risco das sementes serem contaminadas pelos transgênicos. Isso acontecendo os agricultores perdem sua liberdade, sua capacidade de produzir, porque vão ter de pagar royalties às empresas, porque as sementes passam a ter dono. E a gente vai privatizar a vida. Já havíamos privatizado a saúde, a gente tá tentando terminar de privatizar a educação, a venda de alimentos e, a partir das sementes, tentamos privatizar a vida, que é essencial.

Sem alimento, a gente não se reproduz, sem reproduzir a humanidade desaparece. Assim como as sementes, se não tiver como reproduzir, elas desaparecem. Sem a possibilidade de autonomia dos países, dependentes de uma única indústria… O que será o futuro da humanidade com a vida dominada e trancada por três, quatro grandes empresas que nos dizem o que a gente tem para comer, como temos que nos vestir, até como nos sentimos? Esse é o grande perigo para nós da humanidade.

Isso é o fruto de uma lógica da ciência que se disse dona de tudo. Só existe vida depois que a ciência comprovar. Então as sementes guardadas e espalhadas pela natureza passam a ser objeto de pesquisa e não mais vida. A gente deixou de traduzir a natureza em vida e passa a ser coisas, meros objetos de pesquisa, eles podem ou não ter a importância a partir de meu interesse. E o interesse tem algumas cifras. Ele tem que custar caro, gerar recurso.

Por isso que existe uma propaganda enganosa de que o alimento agroecológico é mais caro. Ele não é, nem deve ser. Porque ele é produzido a partir da leitura da natureza e usando os insumos que tenho na propriedade, eu gasto menos. Essa onda de propaganda enganosa é para que, de novo, as pessoas mais abastadas consigam comer o alimento mais saudável e os que produzem não possam comer, tenham que vender porque são mais caros e precisem consumir alimentos contaminados, não saudáveis.

A gente tem que desconstruir essa ideia. As feiras agroecológicas estão por aí no Semiárido inteiro pra gente ir lá comprar direto do produtor e estimular outros agricultores a produzirem agroecologicamente porque é mais barato e muito mais saudável.

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