Conviver com o Semiárido exige também garantir políticas de atenção às mulheres com Lúpus
“Viver com lúpus no Semiárido é um desafio, ser mulher com lúpus no Semiárido é um desafio duplo”, constata a psicóloga Fabiana Bezerra, que reside em Juazeiro (BA) e aos 15 anos ficou sabendo que precisaria mudar sua vida para conseguir seguir sua trajetória ao tempo em que trataria a doença.
Lúpus é uma doença crônica, autoimune, de origem desconhecida, que pode afetar articulações, pele, rins, células sanguíneas, cérebro, coração e pulmões, além do campo emocional, sobretudo quando a/o diagnosticada/o não possui informação suficiente para lidar com os problemas causados e suas sequelas. É uma falha no sistema imunológico e acomete, em sua maioria, mulheres, mas pode afetar também os homens.
No entanto, é possível conviver com essa patologia, desde que um tratamento à base de medicamentos, autocuidado e acompanhamentos médicos periódicos seja adotado. A informação é o primeiro passo para lidar com o diagnóstico e reivindicar a garantia de acesso ao tratamento, especialmente por parte da população que faz uso do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desafios da Saúde Pública
Quando se fala em qualidade de vida, um aspecto central é a saúde. Ninguém sente-se totalmente feliz quando está acometido de algum problema que afete sua saúde física ou emocional. E foi a ausência de políticas efetivas para garantir o direito à saúde às mulheres que levou organizações e movimentos sociais a conquistarem datas específicas para reforçar a defesa de direitos essenciais. Uma destas datas é 28 de maio, instituído em 1984 como Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher.
No Brasil, em 2004, foi aprovada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes, documento que, dentre outros objetivos, previa: “promover a melhoria das condições de vida e saúde das mulheres brasileiras, mediante a garantia de direitos legalmente constituídos e ampliação do acesso aos meios e serviços de promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde em todo território brasileiro”.
De lá para cá, porém, muitas foram as esperas nos Postos de Saúde, nas UPA’s (Unidades de Pronto Atendimento) e Policlínicas ou até mesmo a falta dessas casas de saúde em muitas regiões, especialmente quando se trata das comunidades rurais. Um problema que também é crucial no SUS, sobretudo no campo e nas periferias das cidades, é a demora que a população enfrenta quando se trata dos serviços de prevenção e promoção da saúde, conforme relata a enfermeira especialista em Saúde da Família do Campo, Myllena Santos, que tem experiência em trabalhar com comunidades quilombolas e indígenas.
Ela explica que hoje as mulheres contam com a Política de Atenção Básica, que envolve a oferta de consultas, exames, planejamento familiar, dentre outros, e a Rede de Atenção à Saúde, que deve garantir serviços de urgências e para onde alguns casos são encaminhados após passarem por atendimento nos postos de saúde, por exemplo. Porém, “tem sido bem difícil o trabalho no SUS pensando na saúde das mulheres, mas acho que a gente tem muito potencial para avançar, avançar na democracia, avançar no direito à saúde (…) estar à favor da saúde das mulheres”, aponta Myllena ao constatar que “no cenário que a gente está vivendo politicamente, [há] um retrocesso da ordem de direitos mesmo”.
Se as mulheres brasileiras que dependem do SUS enfrentam este contexto para se cuidarem, as mulheres que precisam conviver com algum diagnóstico de doenças com ou sem cura sofrem mais ainda, como é o caso das que precisam conviver com Lúpus.
Conviver com Lúpus no Semiárido
A ausência de informação sobre o tratamento e a própria desinformação afetam significativamente as mulheres diagnosticadas, o que leva inclusive muitas à depressão. Hozana Maria da Conceição, que há 08 anos descobriu que possui a doença, hoje compreende que é possível tratar e ajuda outras mulheres a fazerem isso, mas de início “o que ficou na mente foi ‘sem cura’”, lembra a trabalhadora que reside em Petrolina (PE).
O medo das mudanças que a doença provoca na vida das pessoas é o que assusta, inicialmente, quem recebe o diagnóstico, pois, por ser uma doença autoimune, é preciso ter cuidados preventivos, fazer uso de medicações, conhecer e exigir direitos, enfim, demanda uma série de elementos, o que impacta na mudança de rotina das pessoas. Para quem vive no Semiárido brasileiro, onde o sol predomina na maior parte do ano, é indispensável evitar a exposição solar ou usar medidas de proteção como uso de roupas apropriadas, acessórios e protetor para pele.
“A gente tá inserida dentro de um contexto territorial onde existem altos níveis de irradiação solar que são totalmente incompatíveis com a vida das pessoas com lúpus”, explica Fabiana ao citar um dos grandes desafios que as mulheres do Semiárido enfrentam. Foi essa incompatibilidade que levou Joelma Batista de Souza Lopes a alterar sua rotina de trabalho após ser diagnosticada em 2017.
Joelma vive da agricultura, onde precisava trabalhar várias horas por dia diretamente exposta no sol. Além das atividades domésticas, ela passou a se dedicar à criação de animais, pois a mão de obra se concentra nas primeiras horas da manhã e últimas da tarde, momentos de menor incidência solar. Natural de Pernambuco, Joelma hoje mora com o esposo no Vale do Salitre, município de Juazeiro, na Bahia, e agora planeja se envolver em uma horta comunitária orgânica que está sendo iniciada na comunidade de Alfavaca, pois é uma atividade que também exige maior dedicação apenas nesses horários.
Já Hozana, que trabalhava como doméstica na cidade, precisou sair do trabalho. Com o tempo, a família para qual ela trabalhava passou a não aceitar a necessidade dela sempre se ausentar para ir às consultas médicas e realização de exames, o que a faz afirmar que a falta de oportunidade é um desafio para quem convive com a doença. Justamente quando a pessoa mais precisa de renda para investir em sua saúde, não poder contar com isso ou até mesmo ter que abrir mão de um emprego é algo que afeta, inclusive, a saúde mental de muitas mulheres, segundo Hozana. Joelma também confirma que “é preciso ocupar a mente”, além da necessidade da autonomia financeira.
“Que as pessoas procurem ter mais empatia por nós, o preconceito tá levando muitas mulheres à depressão”, conta Hozana Conceição, que através do Grupo Borboletas do Vale, hoje, conhece e busca acessar seus direitos.
Do luto à luta
O Vale do São Francisco hoje conta com um grupo chamado “Borboletas do Vale”, que reúne mulheres com Lúpus, as quais se fortalecem no processo de troca de informação, luta por políticas públicas e ajuda mútua. O grupo, que se institucionalizou enquanto Associação de Amigos e Pessoas com Lúpus do Vale do São Francisco, tem crescido a cada dia, com forte presença nas redes e mídias sociais e sendo hoje referência para organizações públicas, sociais e imprensa regional.
Fabiana Bezerra, que foi a idealizadora desta iniciativa ainda enquanto estudante de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), está como Diretora de Assistência Social da referida associação. Hozana ocupa o cargo de Segunda Tesoureira e Joelma é simpatizante do grupo, ainda não é sócia, mas faz parte do grupo de Whatsapp e assim se beneficia com as informações que circulam lá, segundo a agricultora. A relação com a Borboleta está justificada no formato de manchas escuras que aparecem no rosto de boa parte das pessoas com Lúpus, uma vez que 80% destas possuem lesão na pele.
Das pessoas que possuem a doença, 30 a 40% apresentam maior sensibilidade aos raios ultravioletas, por isso é tão desafiador viver com Lúpus no Semiárido, pois exige cuidados rigorosos, os quais, inclusive, demandam recursos financeiros. Protetores para pele e roupas, por exemplo, não são itens baratos e estes são indispensáveis no dia a dia de quem convive com a doença nesta região.
Fabiana explica que, protetor solar, não é visto como cosmético e sim como medicamento, porém, este ainda não é fornecido pelo SUS, a exemplo de medicamentos de alto custo que hoje as mulheres podem apresentar laudo, se cadastrar nos órgãos de saúde e receber sem custo.
Na região de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), graças a mobilização das pacientes diagnosticadas, a Associação exigiu do poder público a implementação de políticas públicas específicas para esse público. Foram audiências, projetos de extensão universitária, mobilização nos meios de comunicação para hoje contar com mais reumatologistas atendendo, fornecimento de medicamentos mais caros, aprovação de leis e até a realização, em Juazeiro, da Semana Municipal de Atenção à Pessoa com Lúpus.
Fabiana, no entanto, destaca que ainda há algumas batalhas sendo travadas, a exemplo da defesa da distribuição de protetores solares, uma vez que muitas mulheres não possuem condições financeiras que lhes permitam priorizar esse produto nas compras mensais. Outra luta é pela garantia do passe livre no transporte público, pois já que é necessário evitar a exposição ao sol e muitas pacientes encontram-se em situação de vulnerabilização social, o acesso ao transporte torna-se questão de sobrevivência também.
“Todo cotidiano dessa mulher precisa sofrer uma adaptação (…), muitas acabam não tendo acesso à informação, não sabem que a irradiação solar pode custar-lhe a vida”, esclarece Fabiana que cita que este pode ser um fator de agravamento da doença em muitos casos. Para ela, se as mulheres já enfrentam uma série de obstáculos sociais, estes são maiores quando se trata das mulheres com Lúpus que se deparam ainda com as sequelas do adoecimento; abandono das profissões – no caso daquelas que dependem da exposição ao sol – ou seja, no momento que mais precisam experimentam o desemprego; além do preconceito que também acaba sendo um entrave à liberdade e à vida dessas mulheres.
Do luto à luta é uma das expressões usadas por Fabiana Bezerra em sua dissertação de mestrado que tem como tema: Construção de Identidade, Autoeducação e Mulheres com Lúpus no Semiárido, defendida em 2019 no Programa de Educação, Cultura e Territórios Semiáridos na Universidade do Estado da Bahia.