Reúso de água cinza aumenta segurança hídrica, favorece produção animal e preserva o meio ambiente
Na área de agrofloresta da agricultora familiar Evanice Pereira, localizada na comunidade de Gameleira, no município de Itapetim, região do Semiárido pernambucano, a palma que alimenta os animais está sempre cheinha, ou seja, viçosa, e verdinha o ano todo. Isso é possível graças ao reúso da água cinza, ou seja, a água descartada pelo chuveiro, a pia de lavar pratos e o tanque de lavar roupas. Com uma estrutura simples formada por uma caixa de gordura, um filtro natural e uma caixa coletora, a água, antes, era desperdiçada, agora, irriga não apenas as espécies forrageiras, mas também algumas frutíferas.
A agricultora conta que, com o sistema de reaproveitamento de água, agora é possível irrigar as plantas no final do ano, época do ano em que os efeitos da estiagem afetam mais as famílias da região . “Diminui o nosso trabalho! Só não pode usar nas hortaliças, mas as plantas maiores a gente pode utilizar em todas, dá super certo! A palma, mesmo, passa o ano todo verdinha, cheinha, porque no final fica muito murcha, no final do ano. E aqui a palma é boa o ano todo por causa da água reutilizada”, explica Nice.
O caminho das águas – As águas utilizadas na lavagem dos pratos e roupas e no banho cumprem um caminho de três etapas até concluírem o processo de tratamento e ficarem aptas ao reuso.
Inicialmente, elas passam por uma etapa de decantação na caixa de gordura. Logo após, seguem para o filtro, estrutura composta por camadas formadas por palhada, carvão, areia, brita e pedra, responsáveis por refinar o processo de decantação iniciado na etapa anterior.
Por fim, as águas alcançam o tanque, local onde a água é armazenada e serve ao abastecimento de um sistema de irrigação por gotejamento. A assessora técnica do Centro Sabiá, Rivaneide Almeida, explica que o uso deste sistema favorece especialmente a produção de alimentos para a criação animal.
“Nos períodos de estiagem, as famílias não tinham como alimentar os animais, por isso, precisavam vendê-los a preços irrisórios. Com esse sistema, elas têm água para manter a produção alimentar dos animais. A palma, por exemplo, mais que dobrou a produção com o reúso das águas cinzas. E esse sistema de gotejo é bom porque garante o solo úmido por muito mais tempo, economizando água”, explica Rivaneide.
Cada família produz em média seis mil litros de água cinza por mês. Antes esta quantidade de água em vez de ter utilidade, era lançada nos rios e solos, poluindo o meio ambiente. Ainda segundo Rivaneide, a tecnologia contribui com o combate a problemas ambientais sérios, a exemplo das mudanças climáticas. “No Semiárido, as mudanças climáticas causam o aumento da fome, por exemplo. O reúso das águas cinzas faz enfrentamento às consequências das mudanças climáticas”, finaliza.
Usar, conservar e preservar – Reutilizar as águas cinzas é apenas uma das estratégias da convivência com o Semiárido adotadas por Nice. Esta estratégia se baseia em uma nova relação com o meio ambiente, na qual usar e, ao mesmo tempo, conservar e preservar os recursos naturais é mais valioso do que apenas explorar. Ao contrário do que se possa imaginar, as mudanças não começaram na roça, mas, sim, na vida política.
Em 2009, contando com o apoio da organização não-governamental Casa da Mulher do Nordeste, a comunidade participou de capacitações sobre gênero, direito cidadão, organização popular e convivência com o Semiárido. As capacitações resultaram na criação da Associação de Mulheres da Comunidade de Gameleira, um espaço criado para organizar e fortalecer as mulheres agricultoras da localidade.
Com a personalidade jurídica e contando com a parceria do Centro Sabiá, outra organização não governamental, o grupo acessou a chamada “Ater para Mulheres” e contou com o recurso para a produção de mudas nativas, produzidas a partir de espécies coletadas diretamente da Caatinga.
“A gente passou a produzir muitas mudas, aí o Sabiá comprou. Com esse dinheiro, melhorou mais a renda da gente, fizemos um Fundo Rotativo na Associação pra quando precisasse levar um filho ao médico. A gente se juntou e botou um dinheiro pra ajudar a nós, mulheres, para não depender tanto dos dinheiros dos maridos”, revela Nice.
A transição agroecológica – Além de comercializar as mudas, as mulheres, após conhecerem a importância da agroecologia também por meio da parceria estabelecida com o Centro Sabiá, fizeram o reflorestamento de uma área de Caatinga localizada às margens de um rio, no Sítio Prazeres, área rural de Itapetim. A agricultora conta que, até hoje, o grupo segue realizando o trabalho. “A gente pega a semente, aqui, no mato, e planta”, completa Nice.
Para chegar a esta produção, a agricultora diz que teve que esquecer muitas práticas de cultivo que adotava desde os sete anos, a exemplo da chamada broca, técnica de retirada e queimada das plantas e raízes de uma área. Os pais de Nice a ensinaram que esta prática melhora o plantio. Por meio da agroecologia, conta a agricultora, foi possível descobrir que a broca, na verdade, contribui com a degradação do solo. Este aprendizado contou com o reforço de tecnologias de segurança hídrica, acessadas pela agricultora, a exemplo do tanque de pedra e da cisterna de 16 mil litros.
Com a conquista do fogão agroecológico, uma tecnologia que reduz o consumo de lenha e é menos poluente, deu-se início a um processo de conservação e recomposição da Caatinga. “A gente pega só a lenha seca, que final de ano morre algumas árvores, e as árvores que morre, dá pra gente utilizar tranquilo, não precisa tá tirando as árvores verdes”, explica. A agricultora também passou a produzir o seu próprio adubo e defensivo natural, descobrindo que é possível cultivar sem agrotóxicos e insumos químicos.
Fartura e economia – Todo esse aparato trouxe fartura de alimentos à família. A produção, hoje, conta com quatro tipos de feijão, frutas tais como carambola, pitanga, umbuguela, e legumes, tais como couve, espinafre e tomate cereja, que, antes, “a gente não dava muito valor, era desperdiçado”, relembra a agricultora.
Antes, a plantação era realizada apenas nos períodos de chuva e se limitava à fava e a um tipo de feijão apenas. O conhecimento sobre o manejo das sementes crioulas mudou a forma de cultivar os alimentos. Nice se orgulha da sua produção, conduzida com o apoio do seu pai, alguns irmãos e os filhos mais velhos.
“Como a nossa família é grande e a gente trabalha tudo junto, a gente trabalha para o consumo mesmo. Mas só que a gente vê que, mesmo para o consumo, a gente vê o tanto que a gente economiza. Teve uma vez que a gente fez uma Caderneta Agroecológica e a gente botou o que doava, o que consumia e quando era no final do ano dava bem uns dez mil reais a mais só de lucro, só do que você não comprou as coisas. É muito interessante”, relata com admiração.