Bancos de Sementes nascem e permanecem como parte importante da resistência da agricultura familiar pela agrobiodiversidade
“O trabalho de resistência no campo das sementes é algo maior do que conjunturas pontuais. É um trabalho de resistência diante de uma conjuntura histórica”, afirma o extensionista rural Pedro Henrique de Medeiros Balensifer, em entrevista.


É na percepção desse contexto desfavorável para as famílias que surgem os movimentos de resistência ao agronegócio industrial. Em entrevista à assessoria de comunicação da ASA, o extensionista rural Pedro Henrique de Medeiros Balensifer fala que o sentimento de perda “é muito claro em reuniões com agricultores quando você coloca [pergunta] pra eles ‘o que seus pais e avós plantavam de sementes que você não vê mais hoje?’. E eles colocam os nomes de muitas variedades que já não são mais encontradas em suas comunidades. Então isso gera um processo de resistência porque é muito forte o peso da tradição no meio dos agricultores familiares e camponeses. Eles trazem a memória familiar e afetiva muito grande com relação às sementes. Isso os motiva a preservá-las.” Esse processo de resistência reverberou, nas últimas duas décadas, no fortalecimento da guarda e do uso comunitário das sementes crioulas, na formação de redes territoriais e estaduais de sementes, na prática agroecológica, nas novas maneiras de fazer serviços de assistência técnica e extensão rural (Ater), nos novos marcos legais que valorizaram as sementes e na ação da sociedade civil em parceria com governos através da execução de políticas públicas.
Pedro – Nós temos observado que na década passada, nos anos 2000, e também na década atual, houve mudanças na percepção de várias instituições, tanto brasileiras, quanto internacionais. O governo brasileiro, nesse período, compreendeu, de forma diferente, essa questão das sementes locais, de sementes tradicionais e crioulas. Tanto é que a Lei de Sementes e Mudas [№ 10.711/2003], foi a terceira lei de sementes do Brasil, mas pela primeira vez houve o reconhecimento de sementes crioulas como sementes. Inclusive há alguns desdobramentos disso, como a possibilidade de que programas públicos de distribuição de sementes incorporassem as sementes crioulas, de que os programas de crédito rural, de crédito agrícola dos bancos governamentais, dentro do Pronaf, pudessem financiar lavouras também com sementes crioulas, não só com sementes comerciais. E aí, houve essas aberturas. E as instituições reconheceram essa parte da importância do trabalho de resgate, conservação e uso das sementes crioulas. A própria FAO, um organismo ligado à ONU, que vem há alguns anos dando um enfoque muito grande sobre a importância da agricultura familiar, da agricultura camponesa e da agroecologia. A agroecologia como uma ciência que se ampara também na prática e no movimento e essas formas de agricultura como de grande importância para essa questão das sementes como alimento, como forma de contribuir para a diminuição da fome no mundo. Saindo justamente do discurso que sempre foi adotado que era o de que o aumento da produtividade da agricultura poderia acabar com a fome no mundo. A FAO, que se amparou no passado nesse discurso da Revolução Verde, vem mostrando um novo olhar, uma nova abordagem. E instituições no Brasil também tiveram uma mudança de concepção em relação às sementes.
Pedro – Apesar dos avanços, pois a partir dos anos 2000 (2002, 2003…), a gente teve uma mudança na conjuntura política com os governos progressistas, houve vários processos em que outras forças políticas entraram no circuito e se apoderaram do poder no Brasil e isso automaticamente mudou as prioridades. A gente que antes tinha esse olhar sobre investimento em políticas públicas e ações para a agricultura familiar, perdemos enormemente isso. E a Ater, que é um serviço no âmbito, relacionado à agricultura familiar, perdeu bastante. A gente tem visto uma drástica redução de recursos para as entidades inclusive governamentais, mas também para as Ongs de agricultura familiar e agroecologia, que executam políticas públicas. Temos observado uma grande dificuldade na captação de recursos para projetos nessa finalidade. Então, os impactos já são visíveis. Infelizmente temos observado esse cenário. Cabe a cada um de nós resistir e, da maneira que for, não deixar de trabalhar, de se movimentar, não deixar de buscar a maneira de continuar, pois muito do nosso trabalho profissional também é um trabalho político, de militância, um trabalho de envolvimento com esses agricultores. É notório o desmantelamento dos serviços de Ater, dos recursos e dos programas para a agricultura familiar no Brasil.
Pedro – Para responder, é preciso olhar de algumas décadas até agora. O peso da indústria de sementes não é somente no atual período político brasileiro. Ela já vem pelo menos da década de 1970 pra cá. A indústria de sementes se beneficiou das leis de sementes. Foram leis nacionais, não só no Brasil, mas em muitos países, para se criar um sistema formal de sementes. Toda a ideia da modernização da agricultura passou pela semente no sentido de gerar sementes comerciais, que eram tidas como as certificadas, as sementes que tinham a inspeção, o controle, que eram melhoradas… Então isso promoveu um processo de marginalização histórico das sementes dos agricultores. E quem se beneficiou com o sistema formal de sementes, amparado em leis nacionais, foram as empresas sementeiras, muitas delas europeias, americanas… Beneficiaram-se pois os países criaram um sistema jurídico, regulamentado, de como fazer a produção e a comercialização de sementes. Isso acabou por reconhecer apenas as sementes comerciais como sementes. As sementes dos agricultores eram tratadas como grãos.
Pedro – O trabalho de resistência no campo das sementes é algo maior do que conjunturas pontuais. É um trabalho de resistência diante de uma conjuntura histórica. A gente percebe claramente os efeitos da Revolução Verde e aí por isso que falo histórico, porque foi um evento histórico, foi uma mudança histórica na agricultura mundial. Um dos grandes problemas que a Revolução Verde trouxe foi a erosão genética das variedades agrícolas. Esse é um dos pontos que a gente se detém mais porque há tanto relatórios da FAO quanto de estudiosos e pesquisadores que mostram que foram perdidas, no mundo, durante o século XX, cerca de 75% a 95% das variedades agrícolas. Então, a gente ainda tem as culturas agrícolas, mas o número de variedades, da diversidade que já existiu no planeta, era muito maior.
Pedro – Sim! Acredito que a existência das casas e bancos de sementes e das redes territoriais e estaduais de sementes são algo fundamental para conseguir a manutenção da agrobiodiversidade. Eu vejo como estratégias de aglutinação de agricultores e espaços de formação. Não são só espaços de multiplicação de sementes em si, mas de formação cidadã num momento em que esses agricultores são inseridos na reflexão de que estilo de agricultura nós queremos no mundo. Nós queremos uma agricultura empobrecida, com poucas variedades, manejada quimicamente em todos os seus processos? Ou nós queremos uma agricultura biodiversa, com consórcios policultivos, fazendo alimentos saudáveis?