Nos últimos 20 anos, todos os presidenciáveis reconheceram a importância da convivência com o Semiárido. Menos, Bolsonaro

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Para o Semiárido, o candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro, propõe transferir tecnologias de Israel (Jornal do Commercio, 04.10.2018). Com esta agenda, Bolsonaro mostra-se completamente alienado da proposta de convivência com o Semiárido, em pauta há quase 20 anos e que vem promovendo profundas transformações sociais na região a partir da atuação ativa da sociedade civil e do Governo Federal. A região semiárida no Brasil ocupa um quinto do território nacional e abriga mais de 26 milhões de brasileiros e brasileiras. 

“A gente acredita que qualquer governo que se estabeleça nesse país tem por obrigação manter a construção deste projeto político de convivência com Semiárido”, assegura Cristina Nascimento, uma das coordenadoras do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido, que representa a Articulação Semiárido no estado.

Olhar para as propostas dos candidatos que afetam a vida no Semiárido, é olhar para muitos aspectos, como as seguranças hídrica e alimentar e a gestão das águas. Para tanto, convidamos representantes da sociedade civil que atuam em redes e conselhos nestas áreas para analisar os programas de governo de Bolsonaro e Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT).

Os depoimentos são permeados também por fortes preocupações com a possibilidade do Brasil ter um presidente completamente avesso ao diálogo com os diversos segmentos da sociedade, o que demonstra sua forte tendência ao autoritarismo e ao facismo.

“O Semiárido é uma pauta política. Nós não podemos nos omitir. Por isso que estamos neste ato [Semiárido pela Democracia, no próximo sábado (20), em Petrolina (PE)]. Por isto que nós vamos para a rua para dizer que o Semiárido quer a democracia. Porque só existe a convivência com o Semiárido se o Estado brasileiro for um Estado democrático, onde haja a participação de todos, onde a sociedade civil possa propor, onde a gente tenha diálogo.”

Com a palavra, Cristina Nascimento, Elisabetta Recine, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e Ângelo Lima, especialista em gestão de recursos hídricos e Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas, uma rede de instituições públicas, privadas e da sociedade civil que se dedicam a fortalecer a gestão das águas no Brasil.

Charge da edição especial do Jornal Brasil de Fato sobre o 2º turno. Para ler a edição, clique aqui

 

Asacom: O que esperar de cada candidato a partir de suas propostas e declarações sobre os temas convivência com o Semiárido, Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e água?

Cristina Nascimento:
Nós vivemos um momento muito delicado no nosso país. Delicado porque os projetos que se apresentam hoje na disputa de segundo turno são distintos, contraditórios e a gente sabe que em um deles a gente se enxerga e no outro, a gente não se enxerga. E quando digo a gente eu digo o Semiárido. O Semiárido está na proposta daquele que prima pela democracia, está na proposta daquele que tem a agricultura familiar como centralidade da ação.

O Semiárido se enxerga aonde tem a proposta da agroecologia. O Semiárido se enxerga onde tem a proposta do Semiárido como lugar estratégico de vida. E hoje, só enxergamos essas ações no programa de Haddad que está disputando essa presidência.

E isso pra nós é delicado porque o Semiárido, nos últimos 20 anos, tem sido pautado independente do partido, independente da cor da bandeira, independente das opções de candidatos. Nós não tivemos na história deste país, nos últimos 20 anos, qualquer candidatura que não reconhecesse a importância da ação da convivência com o Semiárido.

Infelizmente, esse é o momento em que a gente não enxerga este debate em um dos lados que estão postos. E é por isso que para nós da Articulação do Semiárido, para nós homens e mulheres, jovens, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, a juventude, nós precisamos reafirmar que nós temos um caminho trilhado e é um caminho que não podemos abrir mão. Porque nós construímos esta pauta do Semiárido em cima de ações concretas.

Foram mais de um milhão de famílias que tiveram água descentralizada ao lado da sua casa, através das cisternas. E nós sabemos que uma ação desta envergadura só é possível com a ação direta do estado brasileiro.

Nós não podemos abrir mão desta pauta. E nós esperamos que o candidato que eleito for tenha esta posição de estabelecer o diálogo. E, infelizmente, não há essa construção nas duas candidaturas, do diálogo. Pelo contrário. Há uma negação do diálogo e da participação da sociedade civil por um dos lados.

Nesse momento para nós, é importante que os candidatos declarem seu apoio à ideia da convivência com o Semiárido. E, sobretudo, garantam a construção e a reafirmação de políticas que deram certo e que têm mudado a vida dos homens e mulheres do Semiárido brasileiro.

Ângelo Lima: Em relação às propostas do candidato Haddad, pode-se esperar uma política consistente sobre gestão das águas. Desde o primeiro turno, é o único programa que cita a necessidade do fortalecimento dos Comitês de Bacia Hidrográfica e fala em garantir a oferta de água para todos e todas, com qualidade e regularidade, em sintonia com as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) de Água e Saneamento da Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, fala em ampliar a infraestrutura e oferta de água e em também desenvolver uma política de reuso e reciclagem da água e de promoção da eficiência hídrica. A proposta de Haddad fala em gestão sustentável dos recursos hídricos, revitalização de bacias e despoluição de rios, proteção dos aquíferos e dos lençóis freáticos.

Com relação ao Saneamento, o governo Haddad irá retomar o apoio a estados e municípios para dar consequência à Política de Saneamento Ambiental Integrado que avance no objetivo de universalização da cobertura de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto sanitário e na disposição e tratamento de resíduos sólidos. Para as cidades outro ponto importante quando se fala em saneamento é a questão da drenagem urbana.

Fora isso, há outros pontos presentes no Programa do Haddad que têm impacto sobre os recursos hídricos, como as mudanças climáticas, direito à cidade, programa para resíduos e até a realização de uma Conferência da Terra para construir um novo pacto social pela transição ecológica com as seguintes linhas: Alinhar as Leis Orçamentárias (PPA, LDO e LOA) à estratégia de transição ecológica, para assegurar recursos para os programas e ações previstas neste Plano. Além disso, o Programa Haddad propõe a meta da taxa de Desmatamento Líquido Zero até 2022.

Já no Programa de Bolsonaro não é possível esperar nada em relação à gestão das águas, pois isso não é citado nenhuma vez nas propostas do candidato. Também não há referência aos ODS, nem ao direito humano à água. Os únicos momentos que têm citação sobre água e gestão são com assuntos relacionados a investimentos, como apoio às Hidrovias e às Pequenas Centrais Hidroelétricas.

Elisabetta Recine: Os programas de governo registrados no TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e as manifestações públicas a respeito das diferentes dimensões e aspectos que compõe a Soberania e a SAN são profundamente distintas e pode-se dizer que são opostas.

A sociedade civil analisou os programas de governo a partir de 20 palavras chaves que traduzem grande parte da diversidade da nossa agenda.

O programa do candidato Jair Bolsonaro é sintético e foi apresentado no formato de apresentação “power point”. Com base neste conteúdo, verificamos que apenas 2 dos 20 temas são mencionados de maneira compatível com a agenda: manutenção do Programa Bolsa Família e quanto ao combate à pobreza é mencionado, sem detalhamento, a necessidade de controle das contas públicas e políticas macroeconômicas.

Já o programa de Fernando Haddad apenas não menciona explicitamente o tema de controle do uso de sementes transgênicas e prevenção da obesidade.

 

Em Minas Gerais, agricultora amplia seu pomar com a água da chuva estocada nas tecnologias de convivência com o Semiárido | Foto: Léo Drumond/Asacom

Asacom: E o que esse conjunto de propostas pode promover na região semiárida?

Cristina Nascimento:
Nós vivemos numa região em que historicamente foi associada à fome como sinônimo. Nordeste, Semiárido é sinônimo de pobreza e de miséria. Até 2014, passamos aí 13 anos de construção de políticas. Foi possível a gente reafirmar – porque a gente já sabia – que a pobreza não é natural, não é consequência genuinamente da seca. Na verdade, a pobreza é consequência da incapacidade política ou da invisibilidade política dessa região para com os governos que se estabeleceram no nosso país.

E até 2014, vimos um outro Semiárido se construir, através de uma cisterna, que foi a porta de entrada, do Bolsa-Família, através dos programas de fortalecimento da agricultura familiar, através das ações de convivência que vão para além da cisterna, mas da produção de alimentos, das feiras agroecológicas, do PAA, do PNAE, da valorização do salário-mínimo. E tudo isto nos levou à construção de uma identidade de afirmação de um Semiárido de vida.

Então, o que a gente acredita que qualquer governo que se estabeleça nesse país, ele tem por obrigação manter essa construção desta identidade, deste projeto político de convivência. A gente reafirma mais uma vez: ‘Não existe promoção de qualidade de vida na nossa região se a gente não tiver a democracia reestabelecida em nosso país. Não existe um Semiárido sem termos ações de fortalecimento da agricultura familiar, por exemplo. A agricultura familiar é quem mais produz alimentos para a mesa do povo brasileiro.

Então, se a gente tem hoje dois projetos distintamente colocados, um que vai na perspectiva que nós acreditamos, que é o Haddad, o outro que vai na contramão de tudo o que nós construímos até agora, porque no programa do candidato não há nenhuma proposta para a agricultura familiar, pelo contrário, há a afirmação do agronegócio, do desmatamento, do crescimento econômico na perspectiva da negação dos povos e sujeitos sociais como a história da demarcação das terras indígenas, que ele já disse que nenhum palmo a mais de terra indígena demarcada.

Não consigo ver na nossa trajetória, o que nós construímos e acumulamos até hoje, a continuidade da nossa ação, se no estado em que a gente não tenha um governante que olhe para esta região com olhar de construção, de respeito e olhar, principalmente, de compromisso com a retificação da pobreza, com o fim das desigualdades sociais e, sobretudo, o reconhecimento do direito da participação popular, da participação da sociedade civil e também do reconhecimento dos povos e da diversidade do povo da nossa região.


Ângelo Lima:
É bastante perceptível que o Programa Haddad pode promover uma série de políticas públicas sobre o Semiárido, quando trata de segurança hídrica, universalização do saneamento, eficiência hídrica, mudança climática.

Além disso, o Programa Haddad trata especificamente do Semiárido, quando cita que as políticas implementadas no governo Lula com relação à segurança alimentar, de transferência de renda e de segurança hídrica, com a participação da sociedade civil no seu desenho e execução, que mudaram a região.

No próximo governo, serão fortalecidas as políticas de inclusão produtiva e superação da pobreza, as políticas de enfrentamento à seca, de combate à desertificação e de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas; políticas de convivência com o semiárido, em especial as práticas de manejo e conservação do solo, da vegetação nativa e das águas, que promovam a soberania alimentar, hídrica e energética, conservando paisagens e serviços ecossistêmicos, numa perspectiva agroecológica. Será ainda, retomado e ampliado, o projeto 1 milhão de cisternas, apoiando as iniciativas de autogestão e convivência com o semiárido.

Com relação ao Programa do Bolsonaro, é difícil saber se é possível esperar alguma coisa pois, conforme a resposta anterior, ele não tem política para a gestão das águas. E, no caso do Semiárido, a única questão [é a matriz energética] citada no Programa Bolsonaro e, neste caso ele não trata especificamente do Semiárido e sim do Nordeste, quando diz que “apesar de acreditarmos que o novo modelo será benéfico para o Brasil como um todo, consideramos que o Nordeste será uma das regiões mais beneficiadas. Com Sol, vento e mão de obra, o Nordeste pode se tornar a base de uma nova matriz energética limpa, renovável e democrática”.

Portanto, existem diferenças gritantes no Programa Haddad e Bolsonaro com relação à gestão das águas e a região Semiárida.

Importante lembrar que Bolsonaro fala em acabar com o licenciamento ambiental e fundir o Ministério do Meio Ambiente com a Agricultura, colocando um Ministro escolhido pelo setor do agronegócio.

O Brasil já tem rios em situação crítica com relação à qualidade da água e isto com a existência do licenciamento, imaginemos como os rios ficarão se não tiver licenciamento ambiental.

O programa Haddad fala em fortalecer o licenciamento ambiental e manter o Ministério do Meio Ambiente.

Elisabetta Recine: Em uma visão geral sobre as propostas não apenas relacionadas à agenda de SSAN mas à visão de mundo e país que se pode depreender de ambos os programas e manifestações é que realmente estamos diante de futuros profundamente distintos. Os desafios para fortalecer os processos de promoção de condições de vida no Semiárido já são complexas quando se compreende que estas ações compõe a realização de direitos fundamentais das comunidades e pessoas. A possibilidade de um governo que vê a pobreza como resultado de fracasso individual, que considera que as regras de mercado são iguais para todos/as e que tudo é uma questão de esforço e dedicação apontam para o aprofundamento de um cenário de desequilíbrio de forças e oportunidades. Neste contexto a ampliação da nossa capacidade de compreensão coletiva, diálogo, estabelecimento de redes, parcerias são ainda mais fundamentais.

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