Projetos de lei que defendem a pseudoneutralidade nas escolas dividem opiniões e ameaçam a educação no país

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De um lado movimentos sociais e educadores/as populares se organizam para tentar barrar as investidas do Governo na aprovação do Projeto de Lei 193/2016 (Escola sem Partido) e Projetos de Lei estaduais e municipais sobre a ideologia de gênero. Os PLs proíbem, dentre outras coisas, a livre manifestação do pensamento e a reflexão sobre temas como gênero e sexualidade nas escolas. Do outro lado, representantes da extrema direita, conservadores e igrejas defendem a neutralidade de educadores/as e o impedimento do debate em salas de aula sobre temáticas que julgam polêmicas, em nome da moral e dos bons costumes.

Nos últimos anos, debates em torno dessas questões vêm sendo travados em todo o país. Atualmente, 15 dos 27 Estados brasileiros têm projetos como o “escola sem partido” tramitando em Assembleias Legislativas.  Informações de um mapa colaborativo lançado pelo movimento Professores Contra o Escola sem Partido revelam que os projetos em âmbito municipal já são propostos ou aprovados, em pelo menos, 66 municípios de 22 Estados. Ainda de acordo com o levantamento, as investidas de aprovação aos PLs já percorreu todos os estados que compõem a região Semiárida brasileira e foram pautas em nível estadual no Ceará, Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Bahia.

O objetivo do Escola sem Partido, segundo o site que recebe o mesmo nome e traz subsídios sobre a proposta é o de “informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não serem doutrinados por seus professores; informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar”. Para o professor de História do Campus Ouricuri do Instituto Federal Sertão Pernambucano, Andrey Borges Bernardes “o que está por trás do Projeto de Lei Escola sem Partido é um pensamento conservador que associa o pensamento crítico e a participação democrática à doutrinação e proselitismo. Ou ainda, a neutralidade tipicamente liberal e burguesa é apresentada como padrão de conduta e qualquer manifestação política crítica (em geral de esquerda) seria um afronto e deveria ser banido das escolas, na visão do PL”, explica.

Em consonância com a reflexão de Borges, a orientadora educacional do Movimento de Organização Comunitária (MOC), instituição que atua no Semiárido baiano, Ana Paula Duarte, salienta que este é um projeto inconstitucional porque fiscaliza e amordaça os/as professores/as, além disso, o PL ameaça a caminhada em defesa da educação contextualizada para a convivência com o Semiárido.

“Pra nós que defendemos uma educação contextualizada, a aprovação deste projeto representa o fim da educação contextualizada porque a metodologia, a concepção e ideologia da educação contextualizada é o contrário deste projeto, porque neste projeto o professor vai para sala de aula apenas para passar o conteúdo, sem problematizar. Esta é uma iniciativa conservadora de alienação das pessoas. O projeto escola sem partido tem um lado. Ele é um projeto hipócrita porque ele está pregando a não doutrinação, mas ele faz uma doutrinação porque é um projeto de extrema direita, quem apoia são as pessoas de extrema direita. Ele prega uma neutralidade, mas tem um lado”, denuncia.

Também chamada de Lei da Mordaça, o PL Escola sem Partido ameaça o espaço critico e reflexivo do ambiente escolar | Foto: Leandro Taques

Sobre as consequências da aprovação do Escola sem Partido, o educador Andrey Borges mostra-se preocupado, sobretudo pelo desestimulo que pode causar aos docentes. “As premissas do PL estão equivocadas, e sua implantação só inflamaria a bipolaridade já latente em nossa sociedade, ao criar um clima de policiamento sobre o que o professor fala ou não fala em sala de aula. Por fim, vale dizer que um professor não tem como abandonar sua subjetividade para entrar na sala de forma neutra e lecionar. Educação se trata não só de conhecimentos, mas de valores e atitudes. O professor irá, sem dúvida, educar através dos mesmos. Tal inibição por parte do PL seria mais um fator para intensificar o mal-estar docente que já assola boa parte dos profissionais da educação, o que acarreta sérias repercussões para a própria formação dos alunos”, ratifica.

Em dezembro de 2017, depois de publicado relatório recomendando a rejeição, o Senador Magno Malta (PR-ES), autor do projeto, pediu o arquivamento do PL do Senado 193/2016, que pretendia incluir o programa Escola sem Partido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Mas isso não significa o fim dos retrocessos, pois a medida ainda tramita em Estados e municípios brasileiros, e outros projetos com objetivos semelhantes de coibir qualquer debate e/ou reflexão que possam ferir os princípios da conservadora estrutura familiar brasileira, ainda estão na pauta, a exemplo do PL 1411/2015 de autoria do deputado Federal, Rogério Marinho (PSDB/RN) que tipifica o crime de Assédio Ideológico e modifica a Lei n°8.069, de 13 de julho de 1990.

No PL se entende como Assédio Ideológico “toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”. Neste contexto, as acadêmicas Rayane Oliveira e Érika Batalha refletem sobre os conceitos e justificativas do Projeto no artigo O mito da “ideologia de gênero” nas escolas: uma análise sociológica da tentativa conservadora de silenciar o pensamento crítico.

No trabalho científico, elas afirmam que no Projeto de Lei “há uma deturpação da escola como espaço aberto e livre, que estimula a discussão de temas diversos para a venda da ideia de que uma escola crítica de paradigmas de ordem sociais instituídas seria uma escola de doutrinação. Isso se deve a um verdadeiro pânico em torno da desconstrução de alguns paradigmas tomados como ideais, por exemplo, da religião cristã hegemônica, que estabelece consequentemente, o rompimento de hierarquias e privilégios”.

Para tentar se fortalecer, movimentos sociais, educadores/as, organizações não-governamentais e articulações têm se juntado para trocar informações e encontrar formas legais de barrar estes projetos localmente. Um bom exemplo é o Movimento Educação Democrática  criado pelo professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Penna. O grupo mantido numa rede social foi criado para reunir pessoas de todo Brasil e articular grupos na mobilização por uma educação democrática e pela escola pública, além disso, o movimento mantém o blog Professores contra o Escola sem Partido que reúne informações sobre os temas para a população.

Ideologia de Gênero

Aliado ao Escola sem Partido, conservadores e igrejas têm se organizado para convencer vereadores e deputados a defenderem projetos acerca da ideologia de gênero, baseados no projeto de lei N.º 1.859, de 2015, que acrescenta parágrafo único ao artigo 3º da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), o qual diz que “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual.”

Sobre o conteúdo da Lei, Andrey Borges salienta que “estes PLs sobre Ideologia de Gênero pretendem tratar a questão como sendo puramente biológica e não cultural e histórica. Em outras palavras, instala um pensamento heteronormativo, em que qualquer outra identidade de gênero é considerada antinatural, ou seja, perversidade, doença ou desvio moral ou de personalidade. É trágico ter que lutar contra este tipo de ideia em 2018. A escola é o único espaço em que os jovens poderiam discutir e refletir sobre esta identidade de maneira protegida e com aparato científico. Ao levar estes temas para dentro da sala de aula, temos a possibilidade de ter repercussões positivas na saúde e na segurança pública, além do aprofundamento de uma sociedade que se abra para a diversidade, a aceite e a acolha”, afirma.

Projeto de Lei apresentado no município de Ouricuri (PE) | Foto: arquivo Caatinga

Para a orientadora educacional, Ana Paula Duarte, a ideologia de gênero é uma falácia, é uma desonestidade intelectual. “A questão de gênero não é uma ideologia, e eles se aproveitam porque as pessoas não entendem o que é discutir relações sociais de gênero na escola numa sociedade que é o 5º país que mais mata mulheres no mundo. Por que discutir gênero não é no sentido de influenciar na sexualidade de A nem de B, a gente tá falando de discutir papeis sociais, de discutir igualdade e equidade num país que mata mulheres, que as mulheres são todos os dias estupradas. Se a gente não aproveita da educação como espaço de transformação social para discutir gênero a gente vai continuar sendo uma sociedade sexista, desigual, misógina, feminicida. A cultura do machismo vai permanecer!”, alerta.

O texto divide opiniões, mas tramita em alguns municípios e Estados, a exemplo de Pernambuco, onde tramitou e foi arquivado o Projeto de Lei ordinário nº 709/2016 que dispõe sobre a proibição de lecionamento de qualquer temática relacionada à ideologia de gênero no âmbito educacional do Estado. Ainda em Pernambuco, recentemente, na cidade de Ouricuri localizada no Sertão do Araripe, membros da sociedade civil organizada, IF Sertão, Grupos, Fóruns de Mulheres e de Jovens e a organização não governamental Caatinga (Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores/as e Instituições Não Governamentais Alternativas) se manifestaram contra o projeto de Lei 004/2018 de autoria do vereador Daniel Araújo (PSDB) sobre Ideologia de Gênero. Além de organizar uma comitiva para ir até a Câmara dos Vereadores solicitar uma audiência pública, o grupo ocupou espaços de mídia do município para sensibilizar a população sobre os riscos do Projeto.

A ação conjunta resultou na retirada do projeto da pauta do legislativo municipal. O professor Andrey Borges que participou do movimento explica que é preciso a comunidade ficar atenta à ofensiva destes projetos, e se informar para garantir que não haja aprovação sem que a população seja consultada. “Cada comunidade deve pensar a sua própria realidade, mas é necessário se debruçar sobre o tema com empenho para nos munir de argumentos, e é preciso formalizar e institucionalizar a luta política”, orientou.

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