A Maguinu e a memória do combate à seca no Semiárido alagoano
Aqui trato de uma palavra recorrente com a qual tenho me deparado durante anos, tanto nas formações em Gerenciamento de Recursos Hídricos-GRH, para as instituições da Articulação no Semiárido-ASA/Alagoas ou mesmo em grupos focais realizados em campo, na produção de trabalhos antropológicos com grupos indígenas na região semiárida de Alagoas, obviamente estes não se separam. Não se trata apenas de uma palavra em si, Mas de relações inerentes ao Semiárido. Sempre apontando um recorte temporal sendo o termo utilizado em outras situações para enfatizar despreparo ou desqualificação.
A Maguinu que nada mais é do que a junção das palavras, magro e nú, assim são conhecidas as frentes de serviço da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste-SUDENE, em grande parte dos grupos rurais e urbanos que tive contato no estado. A maior parte das pessoas que integraram essas frentes não saberão informar o que é a SUDENE, no entanto se perguntadas por Maguinu, saltarão com exemplos e vivências.
A Maguinu tinha como objetivo gerar emprego e renda para a população do Nordeste brasileiro, na perspectiva de integração nacional entre outras propostas desenvolvimentistas, considerando aqui todas as criticas que se seguem à Superintendência, às quais não pretendo me ater. Esses trabalhos consistiam em cavar açudes, abrir estradas, quebrar pedras e arrancar tocos, esses são os trabalhos mais recorrentes que me foram relatados. Na tentativa equivocada de combater esse “mal” chamado seca.
Uma das memórias que mais causam indignação é que os açudes eram cavados em propriedades privadas, imediatamente cercados, que quando cheios o acesso era negado, muitas vezes a água sendo direcionada a animais especificamente o gado, tudo isso pago com dinheiro público.
A mão de obra era constituída por homens mulheres e crianças, alguns menores de idade que tiveram os documentos alterados para poderem integrar a Maguinu, entre desmaios, diárias inteiras cortadas por conta de atrasos de menos de uma hora, existiam também algo semelhante a cestas básicas, que alguns afirmam serem complemento do pagamento e outros o próprio pagamento, sendo compostas por um feijão que por mais que cozinhasse permaneceria duro e um arroz que ainda vinha na casca a ser “batido”, e quando cozido viraria “papa”, esses produtos que às vezes eram furtados por responsáveis pela distribuição das cestas, e vendidos ao próprio grupo.
Com tudo isso, trabalhar na Maguinu muitas vezes significava um privilégio, envolvendo esperar, e relações de apadrinhamento, onde muitos dos integrantes afirmam que era dali que se tirava o sustento. Esses trabalhos eram supervisionados pela figura do feitor, responsável em monitorar a frequência e a produtividade, no sentido panóptico de Foucault da vigilância, o “Vigiar e Punir”. A escolha do feitor era por indicação ou relações específicas. Esses feitores são pessoas comuns que se encontram na comunidade.
Além do feitor existia o “ajuntador de ferro” que seria o trabalhador responsável em distribuir as ferramentas no inicio dos trabalhos diários e recolhê-las ao fim de cada dia, dependendo dele o início e o fim das atividades.
Não trabalhei porque não me agradei da situação. Mas muitos dos meus companheiros trabalharam. Quando chegava à hora do almoço, muitos saiam pra casa, mas como em casa não tinha o que comer, deitava embaixo de uma árvore no caminho, depois tomava um gole d’água, fumava um cigarro e voltava ao trabalho. Era reis e escravo. Tinham gente que andava até oito léguas até chegar no ponto do trabalho. (Pajé Antônio, grupo indígena Kalankó)
Na maioria das vezes essas memórias são contadas com bom humor mesmo existindo uma memória traumática que foi durante anos silenciada como aponta Michel Pollak, acerca da memória de um grupo que partilha suas subjetividades frente a uma memória nacional com suas macro prioridades homogeneizantes e de integração.
“O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do “não-dito” à contestação e à reivindicação…” (Michael Pollak, 1989)
Mesmo sendo alertados sobre o real nome do órgão tornou-se uma escolha chama-lo de Maguinu, onde a negação do nome se torna mesmo que inconscientemente um ato político, sendo o retrato de um tempo específico, de memórias partilhadas por uma coletividade, sendo essa a bricolagem do estado em uma aplicação que parte da subjetividade do povo do Semiárido.
Hoje coletivamente esses grupos encontram na convivência com o Semiárido a saída ao determinismo climático, geográfico e biológico, onde o trabalho coletivo é o mutirão e o resultado é do grupo, se caminha em direção da segurança hídrica, alimentar e energética, pois as “soluções” externas não foram adequadas ao lugar, a resposta sempre esteve nesse chão.
Tudo isso pode ser confirmado em qualquer comunidade do Semiárido alagoano que integrou essas frentes de serviço.
Referencia bibliográfica
FOUCAULT. Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010
POLLAK Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol.2, n. 3, 1989, p.3-15