O que tem salvo as sementes crioulas da Paraíba da seca e dos transgênicos?
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Pelos aprendizados ao longo deste tempo e pela metodologia participativa desenvolvida, a experiência da Paraíba aparece como impulsionadora de programas e políticas públicas federais no campo da biodiversidade.
Mas, apesar de tudo isto, várias espécies de milhos da paixão da Paraíba não ficaram imunes à contaminação pelos transgênicos. “Assim como no caso da seca, também diante do problema dos transgênicos, a estratégia da guarda coletiva e das trocas de sementes tem se mostrado decisiva para a conservação da diversidade”, conta Gabriel Fernandes, assessor técnico da ASPTA, uma organização de apoio ao Polo Sindical da Borborema, e membro da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Gabriel fez uma fala sobre essas ameaças na mesa de abertura da 7ª Festa Estadual das Sementes da Paixão que começou ontem (5) e se estende até sábado (7), em Boqueirão. Na entrevista a seguir, concedida à Assessoria de Comunicação da ASA (ASACom), ele fala também sobre os programas e políticas públicas construídas nos últimos três anos que deram mais resistência à rede de bancos de sementes com seus estoques e possibilidades de troca deste material genético entre os agricultores e agricultoras que, segundo ele, garante “uma dinâmica social e comunitária que traz vida às sementes”.
ASACom – Como está a situação dos estoques de sementes crioulas na Paraíba após cinco anos de estiagem?
Gabriel Fernandes – No território da Borborema, os bancos estão com algo entre 5% e 30% de sua capacidade de estoque de sementes. Mas é preciso destacar que estamos falando de uma seca que está sendo considerada a maior desde 1910 e que nos últimos anos os bancos foram melhor estruturados e ampliados em sua capacidade de estoque. Então são valores importantes, principalmente em termos de diversidade. Na Borborema, são 120 variedades de 27 espécies, segundo levantamento feito pela AS-PTA, Polo da Borborema e STR [Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais] locais. Mas também é possível que materiais importantes tenham sido perdidos. O mesmo deve se
repetir em outras regiões do estado.
ASACom – Quais as principais estratégias e medidas adotadas para minimizar as perdas ao longo desta estiagem? E quais os resultados obtidos?
Gabriel Fernandes – A estiagem prolongada afeta a multiplicação das sementes e dificulta a renovação dos estoques nos bancos familiares e comunitários. No caso de pouca colheita há agricultores que salvam uma parte para semente. Outros usam a água da cisterna-calçadão para conseguir multiplicar um pouco de sementes das culturas mais importantes. Além disso, a organização comunitária nos bancos de sementes tem sido fundamental para atravessar esse período de seca reduzindo seus impactos sobre a diversidade. Um dos principais resultados é o fortalecimento das comunidades.
ASACom – A ASA Paraíba estava (ou está) monitorando os índices de contaminação das variedades de milhos crioulos pelos transgênicos. O que foi observado neste período?
ASACom – Nos últimos três anos, políticas públicas foram construídas e conquistadas dentro do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que fortalecem as sementes crioulas. Gostaria que você falasse destes avanços e dos riscos que elas sofrem quando os poderes Executivo e Legislativo passam a ser dominados pela bancada ruralista.
Gabriel Fernandes – O período em que a seca atingiu em cheio o Semiárido foi também o período em que políticas importantes como o Sementes do Semiárido e o Ecoforte chegaram na região para fortalecer o trabalho das guardiãs e dos guardiões de sementes. As comunidades se organizaram para construir novos bancos ou melhorar os que já tinham, muitos deles liderados por mulheres. Esse trabalho foi permeado por atividades de formação e trocas de experiências. Assim, mesmo com a multiplicação de sementes afetadas pela falta de chuva, o tema foi permanentemente debatido e hoje as condições para se armazenar sementes estão mais avançadas que num período anterior. Essas ações permitiram alçar os trabalhos com sementes a um novo patamar técnico, político e social. E é, a partir dessa nova e mais consolidada condição, que se enfrentará os desmandos do governo e dos ruralistas. Cada vez mais as prefeituras e suas secretarias devem ser chamadas a apoiar ações com as sementes da paixão.
ASACom – Como e quando a Paraíba iniciou essa ação de valorização e fortalecimento das sementes crioulas?
Gabriel Fernandes – É um trabalho que vem, pelo menos, desde a década de 1970 e que nasceu com o objetivo de aumentar a autonomia das famílias agricultoras. Há bancos criados nessa época e que estão aí até hoje mobilizando as famílias agricultoras em defesa de suas sementes e conservando uma grande riqueza de espécies adaptadas à região.
ASACom – Qual a importância desta ação com as sementes crioulas desenvolvidas na Paraíba por vários atores sociais – sindicatos rurais, ONGs, associações de agricultores familiares, igrejas, etc. – para os demais estados do país?
Gabriel Fernandes – O interesse nessa experiência da ASA Paraíba é bastante grande, principalmente pelo nível de organização que aqui se conseguiu e pelo grau de envolvimento e mobilização dos agricultores. As feiras de sementes, como grandes espaços de valorização e troca entre os agricultores, estão cada vez mais se espalhando pelo país todo. Só no Paraná, por exemplo, foram realizadas mais de dez feiras nos últimos meses, com milhares de participantes. Há várias etnias indígenas realizando também suas feiras de sementes. A cada nova feira realizada, uma grande quantidade de materiais crioulos são recuperados e compartilhados com outros agricultores, ampliando assim o uso desses materiais e, principalmente, o número de agricultores comprometidos com seu cuidado.
ASACom – Você gostaria de acrescentar algo?
Gabriel Fernandes – A Embrapa mantém coleções importantes de sementes. Só de milho são mais de quatro mil registros, além de 300 de fava e outros 16 mil de feijão, por exemplo. No contexto de seca, mudanças climáticas e contaminação por transgênicos, é cada vez mais importante que os agricultores familiares possam aí conservar amostras de seus materiais e também recuperar nessas coleções materiais que foram perdidos. Essa á uma iniciativa que a Embrapa assumiu no âmbito da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Tem um grupo de pesquisadores bastante comprometido com essa pauta, de facilitar o acesso dos agricultores aos bancos tanto para recuperar os materiais como para guardar as sementes. E essa é uma forma que a gente tem avaliado de complementar a estratégia principal que é a que os agricultores têm de troca de sementes, de conservação nos bancos. Tá avançando, mas é necessário todo um convencimento interno na Embrapa para que essa medida possa ser concretizada. Existe já uma possibilidade grande de que um primeiro contrato seja estabelecido juntamente com algumas organizações da ASA Paraíba e a ideia é que a gente tenha um primeiro caso de agricultores que vão guardar os materiais e vão acessar pra gente ver como funciona e gerar exemplos para que outras regiões possam explorar esse serviço, que na verdade, é um serviço público. É nisso que estamos apostando. E acho que essa demora acontece porque a Embrapa sempre trabalhou com esse negócio de ceder materiais, de guardar, mais muito pensando no melhoramento genético, então, era uma visão mais de “negócio” para comercialização ou então era negociação direta com as empresas, que pegavam o material para desenvolver sementes ou então comercializar. Então o acesso aos bancos [de germoplasmas da Embrapa] foi prioritariamente uma coisa mais de mercado. A Embrapa precisa rever a lógica, as normativas, os documentos, para passar a trabalhar com os agricultores a partir de uma outra ótica, que é a da conservação e de uma reserva estratégica desses materiais.