Genocídio no campo: número de assassinatos já ultrapassa registros de 2016

“Perdão se quando quero contar minha vida é terra o que conto. Esta é a terra. Cresce em teu sangue e cresce. Se se apaga em teu sangue te apagas.” Pablo Neruda
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O líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, Flavio Gabriel Pacifico dos Santos, conhecido como Binho, foi morto a tiros em Simões Filho, na Bahia, no dia 19 deste mês. Tereza Rios e seu marido Aluísio da Silva Lara, lideranças camponesas, foram assassinados em Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso, nove dias antes de Binho. As histórias se repetem em diversos territórios do país. Indígenas, quilombolas, camponeses/as, pescadores/as são executados por resistir e lutar para permanecer em suas terras e manter viva a identidade e cultura que foram passadas por seus antepassados.

Binho, Tereza e Aluísio são as mais recentes vítimas dos conflitos no campo brasileiro que já dizimou 63 pessoas de janeiro a setembro deste ano, de acordo com informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O número de mortos já ultrapassa o registrado em 2016 quando a organização contabilizou 61 assassinatos, em seu relatório anual (Conflitos no Brasil 2016). O acréscimo desta violência acontece justamente quando o país vive um cenário de retirada de direitos, criminalização, esvaziamento político e financeiro de órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão público vinculados à demarcação de terras de povos e comunidades tradicionais.

“Com toda certeza, esta exacerbação da tradicional violência agrária é oportunizada e alimentada pela sucessão de golpes que há mais de ano vem ferindo de morte a frágil democracia brasileira. O governo, em conluio com o Legislativo e o Judiciário, foi engendrado exatamente para servir aos altos interesses do diminuto capital global. Entre estes, os que visam nossa terra e suas riquezas como alimento básico da acumulação capitalista global. Neste sentido, vão as muitas medidas de flexibilização das leis e desconstitucionalização de direitos sociais e ambientais. O autodeclaratório CAR (Cadastro Ambiental Rural), por exemplo, tem legalizado a grilagem em todo o país. Semelhantemente, o Código Florestal, o novo modelo de licenciamento ambiental, o novo Código de Mineração e etc. visam facilitar este processo expansionista e concentracionista do capital, na fase atual de ultraneoliberalismo”, ratifica o coordenador nacional da CPT, Ruben Siqueira.

De acordo com o relatório Denfender La Tierra da Global Witness, o Brasil é o primeiro país no ranking das nações da América Latina em que mais houve assassinatos de defensores da terra e do ambiente em 2016. O estudo foi realizado em 24 países, nos quais foram levantados dados acerca de 200 mortes sendo 40% delas de indígenas. O documento conta a história de pessoas que se opõem ao poder das multinacionais, bem como o próprio governo e os países mais perigosos para ser um/a ativista, e denuncia ainda a falta de processos judiciais capazes de garantir a identificação dos responsáveis pelas mortes.

Além do crescente número de execuções isoladas, neste ano, o país testemunhou, pelo menos, três massacres no campo: No mês de abril, quando os movimentos recordam o massacre de Eldorado do Carajás, camponeses foram vítimas de chacina em Colniza (MG). Nove posseiros de Taquaruçu do Norte foram brutalmente assassinados por quatro pistoleiros contratados por um empresário madeireiro. Em maio, no município de Pau D’Arco (PA) dez trabalhadores rurais sem terra, nove homens e uma mulher, foram mortos em uma ação da Polícia Militar e Polícia Civil do estado. Após o assassinato de duas lideranças quilombolas na comunidade de Iúna, no município de Lençóis (BA), em julho passado, outros seis quilombolas da mesma comunidade foram assassinados a tiros dentro de suas residências.

A liderança juvenil da Iúna, Ivanilda Sacramento, revela que das 42 famílias que viviam na comunidade, apenas oito permanecem porque não têm para onde ir. “Tem dois anos que a comunidade Iúna vem passando por transformações, de pessoas da comunidade que estão sendo mortas e a gente não sabe qual o principal causador. A primeira pessoa foi apenas baleada e foi embora. Ai teve duas pessoas que foram mortas e recentemente [em agosto], foram mortos seis e a comunidade ficou muito assustada com isso. A minha mãe, que é professora na Iúna, vai ter que se deslocar para dar aula no Remanso [comunidade próxima]”, conta Ivanilda, emocionada.

Conflitos por água – As áreas que ainda preservam a biodiversidade com abundância de água, solo fértil e riquezas minerais – principalmente por conta do uso sustentável que as comunidades tradicionais fazem destes recursos naturais – são as mais ameaçadas pela especulação das grandes empreiteiras, grileiros e multinacionais. Assim, os conflitos ocorrem em muitas regiões, sobretudo por conta da oferta de água. Segundo o relatório de Conflitos no Campo da CPT “entre 2002 e 2016, chegamos ao absurdo número de 443.043 mil famílias envolvidas em 1.153 conflitos pela água, especializados em praticamente todo o território nacional, dando mostras da dimensão de uma das faces da questão agrária brasileira: a apropriação capitalista privada e a devastadora exploração das nossas águas”.

Para Ruben Siqueira o número de subversões por água pode ser maior do que tem sido registrado. “Destes conflitos que temos conseguido documentar no período recente – sabemos que na realidade são muito mais –, o maior número refere-se à poluição ou restrição de uso por parte de mineradoras. A Bahia, que tem a maior diversidade mineral do país e está recebendo altos investimentos do setor, grande parte no Semiárido, tem sido o estado de mais ocorrência de conflitos por água. Sem dúvida, o recrudescimento dos conflitos violentos pela terra tem mais visibilidade. Mas a questão da água é cada vez mais grave e explosiva!”, alerta.

As informações do relatório salientam também que isto é reflexo da histórica “indústria da seca” se retroalimenta mais uma vez desse fenômeno natural perpetuada em processo político, assistencialismo, compra de votos e subordinação. No Semiárido, as reservas de água que restam são postas a serviço do agronegócio e à propriedade privada, é o exemplo da transposição das águas do Rio São Francisco, e do projeto Matopiba  que visa explorar áreas de Cerrado nos estados da Bahia, Piauí, Maranhão e Tocantins. O documento, publicado este ano, afirma que cerca de 36,37% (2.710) das pessoas se envolveram em conflitos, o fazem devido à apropriação particular, a diminuição e/ou impedimento de acesso à água por fazendeiros e empresários do agrohidronegócio.

Proteção para quem defende direitos – Frente ao alarmante número de conflitos no campo e de pessoas assassinadas e ameaçadas o Comitê Brasileiros de Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos publicou uma carta aberta que denuncia 15 situações de riscos de mortes em diferentes regiões do país e conclama o governo para evitar que novos assassinatos e massacres ocorram. Para tanto, solicitam medidas protetivas, efetivas e urgentes para essas pessoas defensoras de direitos humanos do Brasil. Entre os territórios que sofrem ameaça de conflitos e mortes estão os índios Gamela que vivem em Viana no Maranhão e já sofreram ataques que deixaram cerca de 22 feridos; quilombolas da comunidade Marobá dos Teixeira em Almenara (MG), região do Vale do Jequitinhonha e os Tupinambas que vivem na Serra do Padeir, Quilombolas do Iúna e do Rio dos Macacos, respectivamente nas cidades de Ilhéus, Lenções e Simões Filho, na Bahia.

“Sem poder recorrer a Estado quase nenhum, resta às populações camponesas a persistência na sua histórica resistência e resiliência. Bloquear as frentes deste avanço do capital e fortalecer seus territórios e modos sustentados de vida são as duas faces da mesma estratégia camponesa. Os setores médios e a gente de boa-vontade precisam ser despertos e atraídos para uma aliança com os povos do campo, a fim de garantir a produção da comida saudável; a proteção das águas, dos solos, das florestas, da agrobiodiversidade; a continuidade da tradição étnico-cultural da nação; a preservação do meio ambiente, o esfriamento do planeta etc. A trincheira está nas inúmeras iniciativas e experiências de agroecologia, de saúde, educação e cultura populares, que empoderam as comunidades do campo e alimentam sua luta. Disto, dependemos todos nós, também a gente da cidade”, expressa Ruben Siqueira.

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