Diversidade sexual e gênero: debate começa a ganhar visibilidade no Semiárido
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No Semiárido brasileiro, hoje, existem modelos diversos de famílias. São famílias compostas por duas pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos, famílias onde há uma mulher como chefe, famílias de pai, mãe e filhos. A diversidade está para o espaço urbano das cidades, assim como está para o espaço rural. Reconhecer essa realidade é fundamental para construir um Semiárido diverso com respeito, tolerância e acesso a direitos e efetivação de políticas públicas de acesso à terra, saúde, educação, cultura, geração de renda e outros campos que contemplem as necessidades de um povo plural.
Dessa forma, as questões de gênero e sexualidade começam a sair da invisibilidade e passam a ser tratadas por algumas entidades que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Elas vêm dando alguns passos nessa direção incluindo nos processos de formação e mobilização social dos programas da Articulação, as discussões sobre gênero, diversidade sexual e etnia. Para a coordenadora da ASA pelo estado de Minas Gerais, Valquíria Lima, não são temas fáceis e a realidade camponesa ainda carrega muitos preconceitos em relação a esses assuntos.
“Ainda temos um longo caminho a percorrer, a aprofundar, a aprender com outras redes e movimentos que tratam as questões de gênero e sexualidade como centralidade em todos os seus processos formativos e políticos. Mas hoje já podemos dizer que saímos da invisibilidade da questão e nos encontramos com a necessidade de aprofundar e construir ações práticas e afirmativas”, avalia Valquíria.
O Programa Cisterna nas Escolas, por exemplo, tem promovido experiências em espaços de formação com o objetivo de dar visibilidade às desigualdades de gênero e ao preconceito contra todo tipo de orientação sexual. No Semiárido baiano, a Articulação Sindical do Largo do Sobradinho (ASS) realizou o 1º Ciclo de Diálogo “Conhecer para intervir na Realidade, o Sentido do Semiárido – com um olhar e recorte intencional na discussão de gênero”.
A iniciativa envolveu educadores e educadoras, merendeiros e merendeiras e estudantes de escolas públicas dos municípios de Pilão Arcado, Centro Sé e Remanso, contemplados com tecnologias do Cisternas nas Escolas. “A partir da construção coletiva e de uma escuta respeitosa tivemos um recorte de gênero nesses ciclos de diálogos dando visibilidade a violência de gênero, a não valorização da mulher e a violência que muitas crianças sofrem em casa. A gente percebe a importância desse ciclo como um espaço de resistência, de empoderamento, de fortalecimento”, observa a monitora pedagógica do Programa, Carmem Angélica Costa Melo.
A iniciativa contou com a participação de uma professora de uma das escolas contempladas, que teve a sensibilidade de reunir relatos em diários (com consentimento de crianças e das famílias), preservando a identidade das crianças envolvidas. Para Carmem, a professora foi sensível às questões apresentadas na escola, mas não existe ainda nas redes municipais um aparato para discutir, formar e qualificar educadores e educadoras para quando se deparam com questões de violência. “Gênero é discutido transversalmente. Quando uma professora entra numa família existe todo um risco”.
No Semiárido potiguar, a ONG Techne vem dando um passo importante na discussão sobre os vários tipos de famílias da região. O debate sobre relações homoafetivas vem sendo abordado em reuniões dos fóruns microrregionais e nos cursos de Gerenciamento de Água para Produção de Alimentos (GAPA) e Sistema Simplificado de Manejo da Água (SISMA) do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Para a coordenadora do P1+2 pela Techne, Tárzia Medeiros, a Articulação ainda precisa se desprender do modelo considerado convencional de família formada por pai, mãe e filhos. O que remete ao sistema patriarcal, onde o homem ocupa a figura central e reproduz a divisão do trabalho que inviabiliza mulheres e jovens, e reproduz os preconceitos que incidem sobre as pessoas homossexuais.
Para ela é importante pautar a discussão das famílias para além do modelo heteronormativo [figura do casal formado por um homem e uma mulher] e compreender que hoje existem as famílias monoparentais (filhos e filhas criados/as por somente um pai ou uma mãe). “A gente vem procurando dar uma outra tônica ao debate. Procuramos fazer a discussão do direito como algo coletivo e para além do núcleo familiar, pautando a importância da organização em torno dos fóruns da ASA, das Comissões Municipais, de que tanto as políticas públicas quanto o projeto de Convivência com o Semiárido são uma conquista coletiva”, avalia Tárzia.
Para além dos núcleos das famílias agricultoras, o Semiárido é lugar de uma confluência de povos tradicionais, um lugar de sujeitos coletivos que resistem em seus territórios. O conceito de família no Semiárido vai além da espécie humana. O sertanejo e a sertaneja veem nos animais e nas plantas membros de sua família. O quintal de casa é parte da família.
Nessa perspectiva, o Projeto de Lei Estatuto da Família, proposto pelo deputado Anderson Ferreira (PR/PE) que está tramitando na Câmara dos Deputados e que defende a união de família ser somente um homem e uma mulher, representa um retrocesso e aumenta o desafio para a luta da Articulação.
“Esse Estatuto da Família cabe a pergunta de qual família está falando. Há famílias que já rejeitaram a construção de uma cisterna por que teria que cortar uma árvore, que era um membro da família. O risco de retrocesso traz pra gente uma necessidade maior ainda de fazer o contraponto, de questionar que tipo de família está falando, agregando outros elementos que no espaço rural são muito presentes”, afirma Tárzia Medeiros.
Políticas Públicas ainda se mostram frágeis para o público LGBT no Semiárido
O debate não pode ser invisibilizado. Considerando ainda que nas áreas rurais o preconceito é maior do que nas áreas urbanas. O receio de assumir a sua orientação sexual reflete no receio de serem excluídas de políticas públicas e perderem direitos já conquistados. “Por exemplo, existem os subterfúgios para se enquadrar. Criam um sobrinho ou criança que alguém teve e não quis criar. Se assumir significa ficar fora do contexto das políticas públicas”, explica Tárzia.
As políticas públicas para a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) concentram a maior parte das ações em questões de saúde. As iniciativas começaram na década de 1980, pela explosão dos casos de Aids associados às DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). O que acaba reforçando o preconceito de que somente os homossexuais estão suscetíveis à contaminação, quando os heterossexuais também respondem por um grande número de casos de Aids.
Esses são desafios para esse segmento da população, o que demanda da sociedade civil pressionar governos federal, estaduais e municipais para implementação de políticas públicas que insiram a população LGBT do Semiárido, a partir de propostas, monitoramento e execução de programas e ações sociais.
“Eu observo que as políticas públicas são um reflexo do que a sociedade discute. A gente consegue perceber que tem políticas como a questão do ENEM que a gente vai vendo que tem alguns transexuais que conseguem passar no vestibular, que tem conseguido adentrar na universidade nessa perspectiva da política pública”, observa a comunicadora popular da ASA pelo Estado de Sergipe, Daniela Bento.
Embora registre esse avanço no acesso à universidade, Daniela fala da dificuldade das escolas considerarem a questão da diversidade e não perceberem esse universo. Adolescentes que se reconhecem e se autodeclaram homossexuais não podem viver o constrangimento de ser alvo de piadas nas comunidades onde moram ou de precisarem migrar das áreas rurais para os grandes centros urbanos para serem aceitos. “Considerando que somos um universo grande, mas nos silenciamos pela carga de preconceito e pelo medo de militar na causa. Então as políticas públicas inexistem, ficam ocultas”, avalia.
No Alto Sertão do estado de Sergipe, Daniela tem participado de discussões sobre gênero e diversidade sexual pelo Coletivo de Gênero do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Em rodas ampliadas as pessoas manifestam suas inquietações sobre o tema. O preconceito reflete nos jovens com dificuldades de inserção no processo organizativo da comunidade e nas migrações para centros urbanos.
Segundo a comunicadora, o coletivo do MPA tem atuado no sentido de compreender esse espaço do campo com militantes que desconhecem a realidade da diversidade, bem como com a juventude rural. “As pessoas são ainda mais invisíveis no espaço rural. Não existe uma identificação dos sujeitos em relação a sua sexualidade, compreendendo que sexualidade é algo que você se autodeclara. Meninos e meninas são alvo de riso e tratados como os ‘amalucados’ da comunidade. O assunto é velado e a comunidade trata como hétero [heterossexual]”, pontua Daniela Bento.