Pensando o enfrentamento à violência contra as mulheres como um ato educativo

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Muito, e cada vez mais, se fala sobre a violência contra as mulheres. Esse debate polêmico tem contribuído enormemente para tirar a discussão do âmbito doméstico, privado, para desnaturalizar o tema e romper com as barreiras do silêncio que mata paulatinamente, acabando com a história de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Mete sim, porque, senão, quem acaba morrendo é sempre a mulher!

Essas mudanças são, de fato, radicais, na medida em que desnudam as causas e os mecanismos estruturantes da violência contra as mulheres. Palavras como patriarcado, machismo, racismo, impunidade, denúncia, autonomia, liberdade, poder, direito, justiça, vão se popularizando, permeando as reflexões e opiniões divulgadas nos mais diversos espaços, onde pessoas se juntam e conversam sobre o assunto. Palavras ditas e refletidas vão mudando o pensamento, o modo de agir, de reagir, diante de uma violência até então suportada. Palavras gerando empoderamento, mudando a realidade e a vida das mulheres.

“Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (Paulo Freire)

Quando se fala em violência contra as mulheres, logo são divulgados os números das denúncias, dos homicídios, das internações hospitalares… dados importantes para exigir políticas públicas de combate a esse tipo de violência, mas poucas vezes contamos as histórias das mulheres, que ultrapassaram as barreiras do medo, do preconceito, das discriminações e que decidem romper com o ciclo dessa violência. Histórias comoventes de superação, de recuperação da autoestima, de conquista da liberdade, do exercício da cidadania.

 “Mudar é difícil, mas é possível” (Paulo Freire)

Enfrentar e vencer essa violência, recomeçar uma nova vida, aprender o que não é conhecido, reinventar-se, sair da inércia e construir outras relações de poder e de afetos. Muitas mulheres estão convencidas de que é possível viver sem violência e estão trilhando esse caminho rumo a um novo horizonte, acreditando na utopia, aceitando o convite de Eduardo Galeano quando diz: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Círculo de mulheres – Caminhando, as mulheres se encontram consigo mesmas e umas com as outras e assim vão crescendo juntas

Caminhando, as mulheres se encontram consigo mesmas e umas com as outras e assim vão crescendo juntas, ganhando força como as águas dos rios quando se incorporam reciprocamente. As mulheres que conseguem dar esse passo na conquista da sua liberdade e autonomia, não mudam apenas suas vidas, provocam fortes efeitos em toda a sociedade. Quebram tabus e impulsionam mudanças de mentalidade e de comportamento. Ocupam os mais variados espaços sociais que lhes permitem exercitar o poder, a liderança de grupos e o desenvolvimento da sua criatividade e potencialidades, gerando um tipo de desenvolvimento mais participativo, justo e igualitário.

Assim, a sociedade prospera porque as pessoas se permitem respeitar a liberdade uma das outras, afinal, ninguém é de ninguém e só as pessoas livres geram verdadeiras riquezas, dignidade, plenitude ética e transcendem à experiência puramente material da existência humana. Como nos diz Paulo Freire: “A liberdade, que é uma conquista e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão.”

É com esse espírito que nasce o feminismo e as diversas organizações de mulheres em todo o mundo. Organizadas, refletem sobre a sociedade e suas estruturas, percebem que a violência é o ponto de intersecção entre elas, independente da origem, classe ou raça. Nesse sentido, estar organizada permite-lhes resgatar a consciência do “ser sujeito”, ser protagonista da sua história e agir para transformar a realidade. Na Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), costuma-se dizer que a nossa luta é: “Pelas outras, por nós e por mim” e no Movimento de Mulheres Negras: “Quem sobe, puxa a outra”. Na Ibiapaba, região serrana do Ceará, o Movimento Ibiapabano de Mulheres (MIM) há dez anos vem contribuindo com a cidadania das mulheres, através do feminismo, disseminado em diversos espaços. Não é uma luta fácil, mas está acontecendo e mudando as relações de poder no âmbito privado e público onde as mulheres vivem e atuam.

A sede do Movimento Ibiapabano de Mulheres está localizada em Viçosa do Ceará (CE) | Foto: Arquivo MIM

Mas, se as mulheres que conseguem ultrapassar as barreiras da violência provocam mudanças tão expressivas, as que permanecem aprisionadas num contexto de violência doméstica, familiar e institucional, precisam da solidariedade humana e da ação mais efetiva da sociedade e do Estado, para a garantia de seus direitos fundamentais. É uma luta permanente, sem trégua para desconstruir as bases do machismo, do patriarcado e do racismo que estruturam as relações sociais, de poder, que historicamente têm interditado a participação ativa das mulheres no espaço doméstico, no mundo do trabalho e na política. Fatos e números revelam o contexto de opressão, dominação e exploração em que vivem as mulheres em situação de violência. O PL 5069/2013 de autoria do deputado federal Eduardo Cunha, que reforça a cultura do estupro em nosso país, dificulta o acesso das mulheres à pílula do dia seguinte e ao atendimento médico hospitalar nos casos de abortamento, penalizando inclusive os profissionais que atuarem nesses casos, é um exemplo típico do quanto o machismo, o patriarcado e o racismo agem articuladamente para exercer o controle sobre o corpo, a sexualidade, incidindo negativamente sobre a autonomia reprodutiva das mulheres.

A violência institucional age muito mais perversamente contra as mulheres negras, em vários campos da vida social. O abortamento inseguro, responsável como o primeiro motivo da causa de morte materna em Salvador (BA), atinge na sua grande maioria as mulheres negras. De acordo com Mapa da Violência no Brasil (IBGE/2015), o número de homicídios de mulheres negras no país é o dobro do que ocorre com mulheres não negras e, de 2003 a 2013, o assassinato de mulheres negras cresceu 54% (IBGE). O emprego doméstico, majoritariamente ocupado por mulheres negras, desrespeitava o princípio da isonomia e só no ano passado (2014) foi regulamentado (PEC 150), garantindo direitos iguais à categoria. No geral, as mulheres ainda que tenham alcançado níveis de escolaridade superior ao dos homens, recebem salários inferiores, em torno de 30% a menos. Ofensas, humilhações e assédio no trabalho ainda são práticas corriqueiras que expressam a estupidez de quem usa o poder, que julga ter, para dominar quem acredita não ter poder algum, por isso torna-se refém do outro.

No cenário político institucional, a participação das mulheres ainda é baixíssima, o que as impede de tomarem parte nas grandes e importantes decisões do país. Se quando estão juntas as mulheres ganham força para lutar contra a violência, foi exatamente a ação dos movimentos feministas e de mulheres que extraíram dos porões dos “doces lares” o imenso sofrimento que milhares de mulheres padeciam silenciosamente, ocultando as agressões de seus algozes. Daí, soube-se que o olho roxo, não era culpa do armário.

O Movimento Ibiapabano de Mulheres realiza intervenções para defender os direitos das mulheres

Botando a “boca no trombone”, mulheres organizadas em movimentos sociais passaram a exigir políticas de estado que enfrentassem os problemas das mulheres. Desde então, vem crescendo o número de políticas públicas, programas e instituições que estão desnaturalizando e mudando o comportamento das mulheres e da sociedade. As delegacias e os conselhos de direitos das Mulheres, a Lei Maria da Penha, o Disk 180, o Serviço de Referência do SUS para o atendimento aos casos de violência sexual, os Serviços ao Abortamento Legal, os Centros de Referências de Atendimento às Mulheres, a Casa da Mulher Brasileira, a Lei do Feminicídio, as Conferências, entre outros… Todos esses mecanismos são fundamentais, porém ainda insuficientes e muitos deles precários. Quando a mídia anuncia que o Brasil passou do 7º para o 5º lugar no mundo, em casos de Violência contra as Mulheres, parece que tudo o que já se fez até agora não está dando os resultados esperados.

Mas, se por um lado cresce o número de homicídios, com requintes de extrema crueldade, cresce enormemente a coragem das mulheres de denunciarem e romperem com o ciclo da violência, cresce a consciência coletiva da sociedade quanto à intolerância em relação à violência contra as mulheres. Chegará o dia em que o empoderamento das mulheres será tamanho que mesmo que uns não queiram, o ódio e a intolerância serão vencidos pela liberdade, o amor, a sede de justiça e o querer por igualdade! Venceremos essa batalha pela educação mais ampla, popular e humana possíveis, essa é nossa missão, como nos diz Paulo Freire: “Onde quer que haja mulheres e homens, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.”

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