A luta pelo direito à comunicação
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Raquel Dantas atua na Cáritas Ceará, organização que faz parte da ASA | Foto: Arquivo pessoal |
O direito à comunicação ainda é um desafio no Brasil. O cenário de monopólios das empresas de comunicação é um entrave para regulamentar a Constituição Federal, a cultura nacional, a pluralidade e a diversidade de ideias. Neste perspectiva, entrevistamos a comunicadora popular da ASA e integrante do Intervozes Ceará, Raquel Dantas.
O Intervozes é hoje referência na luta pelo direito à comunicação. Como vocês avaliam esse cenário de luta no Nordeste?
O Nordeste é um território de muitos desafios, e talvez por isso ele seja também um lugar histórico de lutas e resistências. A luta por direitos básicos, pela terra, pela água. A luta contra as opressões de gênero, de cor e de sotaque, a luta contra a desigualdade social que ainda nos coloca em abismos maiores do que em outros lugares do Brasil. E a resistência que está em cada uma dessas lutas diárias. É por esse contexto que a luta pelo direito à comunicação também encontra espaço, necessidade de existência. Apontemos algumas razões mais diretas. A antiga figura dos coronéis, algo tão marcante na história nordestina, não deixou de existir. Apenas atualizou as suas formas de domínio sobre a população. Hoje o coronel sabe que precisa ser dono ou ter influência direta ou indireta sobre um veículo de comunicação porque o seu poder político se alimenta na opinião pública, e se mantém ao pautar a sociedade de acordo com o que convém que ela saiba. A esse fenômeno damos o nome de coronelismo eletrônico. Temos uma infinidade desses coronéis da mídia espalhados pelo Nordeste – Tasso Jereissati, dono da Rede Jangadeiro, com retransmissoras de TV e rádio em todo o Ceará; José Agripino, no Rio Grande do Norte, com a Rede Tropical de TV e rádio; a família ACM, na Bahia, com o herdeiro agora prefeito ACM Neto, dono da Rede Bahia de Televisão; para não falar de tantos outros. Em várias cidades no interior do Nordeste encontramos facilmente essa relação do político ou da família do político com uma rádio de maior alcance no município. Não é difícil também que mesmo as rádios comunitárias estejam nas mãos de políticos, ao invés da população. Outro fator delicado que enfrentamos contra o direito à comunicação é a intimidação a jornalistas, blogueiros, comunicadores populares, que por vezes incomodam essas figuras pela crítica às estruturas dominantes, às injustiças cometidas. Isso porque muito se fala que vivemos numa democracia e que regular a comunicação na verdade é levantar a bandeira da censura. Um caso recente e simbólico dessa realidade (surreal!) foi a condenação do jornalista sergipano Cristian Góes a sete meses de prisão por ter escrito uma crônica (“Eu, o coronel eu em mim”) em seu blog. Um desembargador de Sergipe entendeu que ele era um dos personagens do texto ficcional e ingressou com dois processos contra o jornalista. E ganhou! Vale a atenção a esse caso porque ele não é o único que encontraremos e ele se caracteriza como uma grave violação à liberdade de expressão. Outro fator que marca muito o desafio da comunicação no Nordeste é o conteúdo. Onde e como se vê o nordestino nos meios de comunicação? Temos o desafio de colocar nosso conteúdo, sotaque e cultura no ar. E não é por falta de produção, é por que somos impedidos pelo monopólio dos meios, que selecionam o sotaque padronizado, o perfil padronizado e que ditam que perfil de nordestino também deve aparecer. Que nos coloca sob um olhar caricatural, quixotesco, folclórico ou turístico – “as belas praias nordestinas”. E o que há mais para se falar do Nordeste? A desgraça, pois sim. Os programas policiais são os nossos calos, o que nossas redes de televisão local, filiadas às cabeças de rede, produzem. A melhor forma de discutir o tema da comunicação com a sociedade é fazendo comunicação popular e alternativa, e isso o Nordeste tem bastante. O desafio dessa luta pela comunicação democrática é fazer com que a gente vença as limitações de alcance e acesso à informação para que a própria população encontra esse debate, compreenda e reivindique esse direito fundamental. Para que aos poucos a gente possa reagir e garantir esse direito sem ser ameaçado pelo coronel local, pelo sistema de “justiça” ou por qualquer força política.
A sociedade civil tem um projeto de Lei de mídia. Quais são os principais pontos dessa lei?
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Uma das propostas da Lei de Mídia Democrática é impedir que políticos sejam donos de emissoras de rádio e TV. |
A Lei da Mídia Democrática é um Projeto de Iniciativa Popular que apresenta um novo marco regulatório para os serviços de radiodifusão – TV e rádio. A questão central é: temos uma legislação defasada, como o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, que não condiz mais com nosso contexto social, político e muito menos com as revoluções tecnológicas pelas quais passamos nos últimos anos. Mas temos também capítulos importantíssimos da Constituição Federal de 1988 que defendem uma comunicação mais democrática. O problema é que eles nunca foram regulamentados, ou seja, não se criaram mecanismos para que fossem cumpridos. Então, a Lei da Mídia Democrática define essas regras. Por exemplo, para impedir a formação de monopólios ou oligopólios nos meios de comunicação fica estabelecido um limite de concessões de rádio e TV por grupo e fica proibido também que um mesmo grupo econômico seja proprietário de rádios, TVs, jornais e revistas (o que chamamos de propriedade cruzada) numa mesma localidade. O novo marco também reitera a proibição constitucional de que políticos não podem ser concessionários de serviços de radiodifusão, e estabelece também que medidas complementares devem ser adotadas para que os concessionários não tenham nenhuma relação familiar ou política que permita ao político ter influência, ainda que indireta. Outros pontos dialogam com os desafios do Nordeste para a comunicação, como a garantia de diversidade e pluralidade de conteúdo, incluindo aí conteúdo regional. O fortalecimento da comunicação pública e comunitária, para que a sociedade também tenha participação e acesso direito a esse serviço. Assim como a participação nos debates, elaboração e acompanhamento de todas as políticas de comunicação para o país.
Como vocês avaliam a mobilização em torno dessa iniciativa da Lei da Mídia Democrática?
É fato que a sociedade de forma mais ampla ainda precisa entrar em contato com esse debate. Há muita gente ainda que não sabe que existe uma discussão em torno dessa pauta, simplesmente porque não tem acesso. Como vamos debater algo que não está em largo alcance, se os meios de comunicação rechaçam e tornam qualquer discussão do tipo um ataque à liberdade de expressão? É difícil também quando não temos uma sinalização do governo para bancar a pauta e cumprir o que só depende do poder executivo. Tivemos lampejos com Franklin Martins no MiniCom (Ministério das Comunicações), com a primeira e única Conferência Nacional de Comunicação (que inclusive serviu de acúmulo e definição de propostas para o projeto de Lei da Mídia Democrática) em 2009. O governo sabe da importância do debate, mas nunca quis ultrapassar algumas barreiras necessárias para possibilitar um real processo de democratização da comunicação no país. A Argentina, ao contrário do Brasil, bancou um novo marco regulatório em 2009, e o processo lá não foi fácil. Os movimentos de democratização da comunicação argentinos costumam comparar o cenário deles na época com o cenário brasileiro atual. A sociedade não dominava o debate, mas o governo ter bancado a proposta deu possibilidades para a população se envolver. Ao final de 2012, ainda não promulgada, os argentinos iam em peso às ruas pedir a aprovação da Ley de Medios. Isso então nos faz refletir que não haverá um momento propício, ideal. Abraçar a democratização da comunicação é se colocar firme diante de interesses políticos e empresariais. Sempre será! Enquanto o governo não banca, vamos dando continuidade ao que fazemos desde o engatinhar da luta pela democratização da comunicação por aqui, debatendo, sensibilizando mais e mais pessoas. E para quem está nessa luta é visível que o debate tem ganhado força e se multiplicado. Mesmo nos movimentos sociais, nas instituições onde a comunicação não era tema de debate, ela passou a ser e com bastante fervor. As pessoas querem discutir comunicação. E nós todos e todas, como cidadãos e cidadãs, precisamos! Construir uma sociedade mais democrática passa necessariamente pela construção de uma mídia mais democrática.