“Se a gente não estiver aqui, segurando o que ainda resta do bem viver, nós não vamos mais ter bem viver em canto nenhum”
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Foto: arquivo pessoal |
A última semana foi marcada pela ação política dos povos originários do território brasileiro. Em Brasília, pela 11ª vez, nações indígenas de todo o país se reuniram no Acampamento Terra Livre (ATL). Mais de mil e quinhentos participantes ocuparam a Esplanada dos Ministérios, com toda a bagagem histórica de 515 anos de luta pela reparação de todas as violências sofridas pelas comunidade indígenas. Levavam o grito de suas comunidades em defesa dos seus direitos constitucionais, conquistados com muita luta e muito sangue. E por todo o país esse grito ecoava. Em caminhadas, atos, manifestações, audiências, rituais, músicas e danças, transmitia-se em uníssono a mensagem de enfrentamento às iniciativas que se fortalecem no Congresso Nacional com o objetivo de desproteger a terra, a cultura e a vida desses povos. Entre elas, se destaca a Proposta de Emenda Contitucional [PEC] 215, que transfere a responsabilidade da demarcação do Executivo para o Legislativo, onde prevalece a vontade da bancada ruralista.
Hilário Xakriabá, 53, é liderança do povo Xakriabá, no Norte de Minas Gerais, na região do Semiárido. Ele participou da Mobilização Nacional Indígena durante o ATL e, entre os dias 17 a 19 de abril, esteve na organização do Mutirão de Mobilização de Povos e Comunidades Tradicionais, que reuniu os diversos segmentos envolvidos na Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais. Também preside a Associação Indígena Xakriabá.
Em entrevista à ASACom, ele afirmou que “o conflito de hoje não é mais como o enfrentamento que a gente fazia antes, cara a cara com os pistoleiros, com os jagunços. Eles estão usando outros métodos, através da bancada ruralista, que hoje está lá no Congresso, mandando. E é muito complicado se nós também não começarmos a buscar novas formas de fazer esse enfrentamento. Assim como eles mudaram de estratégia nós também temos que mudar.”
Para gravar essa entrevista, o Cacique se deslocou de sua casa até um local próximo, mais alto, onde o sinal do telefone era melhor. Segundo ele mesmo, enquanto falava conosco, falava também com a natureza. E foi assim, muito bem acompanhado e inspirado pela paisagem e pelos encantados da mata, que ele respondeu às nossas perguntas.
ASACom – Hilário, de que forma atua a Associação Indígena Xakriabá?
Hilário – Sou da aldeia Barreiro Preto, e nós temos a associação indígena Xakriabá na aldeia, que foi criada em 99. A gente vem desenvolvendo vários trabalhos. Como essa associação trabalha não só para essa aldeia, mas para todas as aldeias da terra indígena, fomos ganhando visibilidade na luta por direitos e nos chamaram para participar de alguns encontros fora. A ASA chegou aqui na terra indígena em torno de 2004, 2005, a partir de um encontro que teve em Salinas. E dali pra cá a gente já tem desenvolvido vários projetos, incialmente com o Programa 1 Milhão de Cisternas, e depois passando pelos outros programas. Inclusive o CAA-NM [Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas] e a Cáritas Diocesana de Januária são grandes parceiros e a gente já está há um bom tempo trabalhando junto. Como a gente está desenvolvendo um trabalho em parceria com as lideranças, as comunidades, os caciques, a partir daí foi também chamado para outros movimentos, inclusive criando outros movimentos representativos do nosso povo. Assim há cinco anos nós criamos a Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais.
ASACom – A articulação inclui os Xakriabá e outras comunidades tradicionais?
Hilário – O intuito da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais é acolher os povos indígenas e outras comunidades tradicionais. Nós estamos há um bom tempo discutindo uma forma de unificar nossas lutas. Às vezes conversamos muito, e o meio de buscar esse mecanismo, fazer isso acontecer, é muito difícil. Com a criação da articulação, com esse nome… Rosalino Gomes, não sei se você sabe, mas foi um mártir dos Xakriabá, né?
ASACom – Eu não sabia. Ia perguntar sobre ele agora mesmo…
Hilário – Pois é. Minha filha, a Célia, que também vem participando dos movimentos sociais desde os 14 anos, participando de alguns momentos fora, junto com o pessoal do CAA, vazanteiros, pescadores, quilombolas, e surgiu lá a ideia de criar uma articulação representativa desses povos. Então surgiram vários nomes, de personagens que já lutaram, que tombaram em defesa da luta. Aí no momento lá surgiu a ideia de colocar o nome dessa pessoa, Rosalino Gomes, que é um que também marcou a nossa história. A partir dessa chacina em que ele foi assassinado com outros companheiros, em 87, como ele era uma pessoa que puxava o grupo, que representava ainda na época da ditadura militar, foi um massacre que abalou toda a população indígena, e foi um adubo que se plantou. Ele liderava essa luta ligando o povo Xakriabá junto com outras regiões, era um guerreiro bem decidido, e sempre falava que preferia ser adubo dessa terra, mas sair daqui ele não ia. Ele preferia dar o sangue em defesa desse povo, e foi o que aconteceu. A partir daí, dessa, morte, nosso território foi homologado. Acabou que o nome dele virou referência nacional e no dia dessa avaliação de personagens, surgiu o nome dele, foi votado, e ficou o nome dessa articulação.
ASACom – Como está a situação do povo Xakriabá hoje, em termos de território e acesso a políticas públicas?
Hilário – A gente não pode ser pessimista, porque temos avançado muito. Através dessas alianças, dessas articulações, dessa parceria, que a gente começou a ganhar visibilidade, as portas se abriram de 2003 pra cá, pra gente acessar as políticas públicas. Mas é um enfrentamento, é um processo que não para. Nós temos educação indígena, um pouco avançada, a saúde indígena tem avançado muito, mas precisa de muitos ajustes. E a questão territorial principalmente. Porque em 79, quando foi homologada essa terra primeira Xakriabá, e que se estendeu um pouco mais em 2005, ainda não é nem um terço do nosso território. Nosso território tradicional vai bem mais além, chega até o São Francisco. Naquela época, quando foi homologada e retiraram os fazendeiros aqui da região, ficaram aqui pouco mais de 3 mil indígenas. Hoje são mais de dez mil indígenas, no mesmo território. Imagina nós, com a deficiência das chuvas, e a população que aumentou usufruindo daquele mesmo pedaço que foi homologado. Esse território está sendo insuficiente pra gente continuar produzindo e alimentar toda essa gente. Daí surgiu a necessidade de nós fazermos uma revisão de limites. Não é nem tomar outras terras, mas retomar terras que já pertenciam aos nossos ancestrais, e aí sim chegaria até o São Francisco. Estou falando de uma quantidade de terra que sai de 55 mil hectares, quase que dobrando, com mais 44 mil hectares. Aí o conflito está acirrado, e o conflito de hoje não é mais como o enfrentamento que a gente fazia antes, cara a cara com os pistoleiros, com os jagunços. Hoje o modelo mudou. Do município ao Congresso Nacional eles estão usando outros métodos, através da bancada ruralista, que hoje está lá no Congresso, mandando. Muitas vezes começa ali no município, vai para o Estado, vai pra Brasília. Nós temos aliados, mas o que predomina é o lado contrário. Esse tal desenvolvimento econômico, que eles falam hoje no Brasil, é uma máquina compressora que está passando por cima dos nossos direitos. E a PEC 215 quer tirar da constituição nossos direitos. Tudo isso é um enfrentamento muito forte pra nós. E é muito complicado se nós também não começarmos a buscar novas formas de fazer esse enfrentamento. Assim como eles mudaram de estratégia nós também temos que mudar.
ASACom – Hilário, eu sei que você estava no Acampamento Terra Livre (ATL), e que os Xakriabá estão bem articulados com a mobilização nacional, ao mesmo tempo em que se articulam com outros povos tradicionais. Como está sendo construir essa resistência nessa conjuntura tão negativa, com tanto poder nas mãos dos ruralistas?
Hilário – Eu sou uma das pessoas que participam de uma comissão que se tornou nacional a partir de, num primeiro momento, 2011, quando nos mobilizamos com CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], CPT[Comissão Pastoral da Terra], Cimi [Conselho Indigenista e Missionário] e outros parceiros, e nos encontramos com parentes de todas as regiões do Brasil e também de comunidades tradicionais. Vazanteiros, pescadores, geraizeiros, quilombolas, fundo de pasto, e assim por diante. A gente saiu com a incumbência de trabalhar a base. E trabalhar essa base não é uma coisa de uma hora pra outra. Foi aí a importância da articulação Rosalino Gomes. A metodologia da articulação é essa: juntar toda essa demanda, que é a área de abrangência do Norte de Minas, avançando pelo Estado. Como o dia do índio é 19 de abril, o cacique Domingos, que é o cacique geral de nossa tribo, queria fazer um momento diferenciado de todos os anos e chamar nossos parceiros, companheiros de luta, e a articulação cumpriu esse papel de mobilizar e trazer pra cá. Nós tivemos 4 dias de muito debate, reflexão, vieram segmentos do Governo, da sociedade civil, muita gente de outras regiões e povos, e foi muito bom. A gente saiu com um documento que leva um pedido conjunto, de atenção a esse povo. Ao mesmo tempo em que aqui estava sendo preparado esse momento, lá em Brasília nós estávamos no Acampamento Terra Livre, que acontece também todos os anos, também só com indígena. Só que esse ano, também a partir da mobilização que nós viemos fazendo, conseguimos levar pessoal não-indígena, de outras comunidades tradicionais. Só a gente e o Maranhão. De certa forma, nós fomos uma referência aos demais povos que estavam lá, do Brasil inteiro. O ATL é coordenado por uma articulação maior, a APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] , que representa nacional e internacionalmente, que consolida tudo, e faz essa mobilização acontecer. Foi muito bom não só pelas propostas que saíram lá, dos aliados da gente no Governo, mas também pelo motivo de a gente ver mesmo essa dinamização de povos.
ASACom – Logo após o ATL o Governo anunciou a homologação de alguns territórios e um concurso para a FUNAI. Esses territórios homologados são estratégicos? O concurso traz o fortalecimento da FUNAI que o movimento reivindica?
Hilário – Sim, tem tudo a ver. Hoje nós estamos em enfrentamento com o Congresso, onde a maioria é contra a gente, e os poucos que são a favor ficam meio presos, mas vão e falam com a gente, foram no acampamento, e a gente passou esse recado. Se o Congresso está contra a gente, e aqueles projetos que estão na mão da presidenta, vinte processos que já estão prontinhos lá, que não tem mais revisão de nada, não tem que fazer mais nada, simplesmente pra ela assinar? O que está pesando para ela fazer isso? Isso foi muito cobrado. E a questão da reestruturação da FUNAI, que é o único órgão do Governo para defesa dos nossos direitos e que não está tendo perna para andar. A bancada [ruralista] também quer acabar com a FUNAI. Houve uma cobrança muito forte sobre isso. Desses vinte processos, um deles é Xakriabá, e embora foram anunciados três que não são Xakriabá, isso para nós não importa, o importante é que começou a assinar, e é uma vitória muito grande. Nós estamos sentindo essa vitória como um povo como um todo. A comunidade tradicional também deve já ver isso como vitória, porque nós não excluímos ninguém, nós estamos colocando sempre no bolo. Quando se fala na questão da PEC 215, ela também tem a ver com outras comunidades tradicionais, porque a partir do enfraquecimento da luta indígena, que começou há muito mais tempo, com certeza fica mais fácil para os outros passarem por cima. Os grandes lá têm mania ainda de estar brigando lá e colocando nós aqui pra brigar também, e ao invés disso nós temos que unir nossas forças na base. Nós não somos inimigos na base, nós temos um inimigo comum, que é essa elite. Nós somos uma geração de povos e comunidades tradicionais em que a luta é contínua. A única herança que nós temos pra deixar para nossos filhos, netos e outras gerações, é o que nossos ancestrais deixaram: a luta. Nós temos que fazer novos guerreiros. Preparar esses novos guerreiros para o enfrentamento. Se a gente fizer com que eles olhem pra gente com mais respeito, à nossa forma de mobilizar, nosso jeito de olhar o mundo, isso acaba contradizendo muitas das conversas enganosas que falam lá fora, de que o índio, ou o quilombola, ou qualquer outra comunidade, são empecilhos para o desenvolvimento do Brasil. Pelo contrário, se a gente não estiver aqui, segurando o máximo possível, o que ainda resta do bem viver, nós não vamos mais ter bem viver em canto nenhum do Brasil e do mundo. Então nós temos que mostrar um outro olhar do que o mundo mais precisa, um bem viver para toda a sociedade brasileira.