No campo e na cidade, trabalho escravo exige enfrentamento e punição

Na semana em que se lembra o massacre de Eldorado dos Carajás, a sociedade tem discutido projeto de lei sobre terceirização que pode reforçar o trabalho escravo no Brasil.
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“Romper as cercas da ignorância
Que produz a intolerância.
Terra é de quem plantar”
Pedro Munhoz

Capa do caderno Conflitos do Campo 2014, uma publicação da CPT.

No dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás, Pará, dezenove trabalhadores Sem Terra foram assassinados pela Polícia Militar. Um verdadeiro massacre. A data marcaria para sempre a história da luta pela terra no Brasil e no mundo. Desde aquele ano o dia 17 de abril é lembrado como o Dia Internacional da Luta Camponesa.

No Brasil uma das principais pautas de enfrentamento no campo é ainda a prática de trabalho escravo. No entanto, nem mesmo a legislação brasileira reconhece que existe trabalho escravo no Brasil, porque considera a abolição da escravatura em 1888, porém essa ainda é uma prática bastante comum, ainda que não reconhecida completamente pelas leis brasileiras. O crime de submeter alguém as condições de trabalho análogo a escravidão no Brasil só é regulamentado pelo Código Penal, que existe desde o início do século XX, assim como a legislação trabalhista referente ao campo tem mais de 40 anos. Portanto tanto a existência do crime, como a obrigação para que os direitos trabalhistas sejam cumpridos, são coisas há muito tempo conhecidas e descumpridas no Brasil. O trabalho análogo a escravidão é caracterizado quando os trabalhadores e trabalhadoras não conseguem se desligar do patrão por fraude ou violência, quando são forçados a trabalhar contra sua vontade, quando são sujeitos a condições desumanas de trabalho ou quando são obrigados a trabalhar até a exaustão.

O artigo 149 do Código Penal prevê de dois a oito anos de cadeia para quem se utilizar dessa prática. É previsto o crime em quatro situações: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Há, também, acordos e convenções internacionais que tratam do tema da escravidão contemporânea. Como as convenções número 29, de 1930 e a 105, de 1957, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ambas ratificadas pelo Brasil.

Segundo o Relatório Conflitos do Campo, lançado esta semana pela Comissão Pastoral da Terra, em 2014, 1752 pessoas foram libertadas de situações análogas as de escravidão no Brasil, 55% dos casos se concentram nas regiões Norte e Nordeste e 46% estão ligados a agricultura e pecuária. Segundo o advogado André Barreto, da Rede Nacional de Advogados/as Populares (Renap), no campo são comuns casos de cerceamento de liberdade, mas principalmente de trabalho degradante e exaustivo, “Nos engenhos do Nordeste, por exemplo, é comum nos depararmos com trabalhadores e trabalhadoras sem as condições mínimas de trabalho, enfrentando uma jornada de 14 horas de trabalho por dia, sem intervalo para descanso, com pouca alimentação, sem água potável para higiene e consumo e sem acesso à banheiros. Em muitos casos também fazem aplicação de agrotóxicos sem o uso do equipamento de segurança individual. Isso é trabalho degradante e trabalho degradante é uma forma de trabalho escravo”, destaca.

Segundo Simone Santos, diretora de política de assalariados do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Petrolina (STTR), em Pernambuco, no campo as mulheres encontram-se mais vulneráveis a esse tipo de exploração, ela afirma que na região também são identificados casos de trabalho escravo infantil.

Entre os estados do Semiárido brasileiro, o Piauí e o Ceará registraram um aumento no número de ocorrências de trabalho escravo em 2014. “Infelizmente o trabalho escravo ainda é muito presente no Piauí. Semanalmente, são dezenas de ônibus e centenas de trabalhadores que deixam suas famílias e saem em busca de trabalho. Vejo que essa situação é imposta ainda pela ausência de um projeto de reforma agrária, que esteja voltado para a realidade e a convivência com o Semiárido. Falta política pública adequada e contextualizada voltada para o fortalecimento da agricultura familiar”, afirma Carlos Humberto, coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado do Piauí. Na região é comum que o trabalhador ou trabalhadora fique preso a uma dívida, que seus documentos fiquem retidos, o local do trabalho geralmente é isolado geograficamente e há segurança feita por pessoas armadas.

Foto do ensaio sobre trabalho escravo realizado em várias regiões do país | Foto: João R. Ripper

O retrato do trabalho escravo no Brasil pode ainda piorar se o Projeto de Lei 4330, do deputado Sandro Mabel (PL-GO) virar lei. A proposta permite a terceirização de qualquer tipo de atividade em empresas privadas, públicas e de economia mista. Permite a contratação de funcionários e funcionárias terceirizados em atividade meio (serviço necessário, mas que não é a atividade principal da empresa) e atividades fim (atividade principal da empresa). Atualmente, a terceirização é permitida apenas para atividades meio.

No campo, podemos usar o exemplo de uma usina que contrata trabalhadores de uma empresa terceirizada para produzir cana. Dessa forma a usina passa a responsabilidade trabalhista para um ou várias pessoas jurídicas menores, que nem sempre vão garantir os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras contratadas. Ainda segundo o advogado André Barreto, o PL 4330 não responsabiliza os empregadores sobre as violações de direitos e a não responsabilização acelera a violação sistemática, “é muito difícil a responsabilização de empresas terceirizadas, elas ‘somem’ muito rápido, fecham, trocam o CNPJ, mudam de donos”, explica.

A bancada ruralista tem atuado no Congresso Nacional pela aprovação do PL 4330. De acordo com um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em média, um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto. Ainda segundo o relatório da CPT, 90% dos trabalhadores resgatados nos 10 maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo, entre 2010 e 2013, eram terceirizados.

Simone, do STTR de Petrolina acredita que se o PL for aprovado, trabalhadores e trabalhadoras rurais serão duramente afetados: “as principais vítimas serão os pobres da zona rural que contribuem com a sua mão de obra para o enriquecimento dos grandes latifundiários”, sentencia.
Falando sobre como as práticas de convivência com o Semiárido podem ajudar no enfrentamento ao trabalho escravo, Carlos Humberto afirma: “As iniciativas de convivência com o Semiárido, desenvolvidas pela sociedade civil organizada, através da ASA, tem sido uma resposta concreta no combate à migração forçada, que caracteriza o trabalho escravo. Pois a garantia da água nas famílias e as tecnologias de convivência são ações concretas de manutenção das famílias no campo, com a garantia também de segurança alimentar”.

Durante toda a semana haverá mobilizações contra o PL4330, inclusive reivindicando o veto presidencial para medida e mobilizações em torno do Dia Internacional da Luta Camponesa.

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