Com modificações dos movimentos sociais, PL da Biodiversidade vai a plenário no Senado

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Marciano Silva (centro) é uma dos porta-voz dos Movimentos Sociais sobre biodiversidade | Foto: Divulgação/MPA

Hoje (1º), o Projeto de Lei da Biodiversidade, o PL 7735/2014, que ao entrar no Senado virou PLC 02/2015, esteve na pauta do plenário desta Casa Legislativa, mas a votação terminou sendo adiada para a próxima sessão, na terça-feira que vem (7), por falta de tempo. Se aprovada, a matéria passa por mais duas etapas – uma na Câmara dos Deputados e outra na Presidência – até entrar em vigor. Pela forma em que foi elaborado pelo Executivo, sem nenhuma consulta aos guardiões e guardiães do patrimônio genético brasileiro – os povos indígenas, os povos e as comunidades tradicionais e os/as agricultores/as familiares -e pelo seu conteúdo que facilita a exploração e expropriação do patrimônio genético e do conhecimento tradicional pelas indústrias alimentar, farmacêutica e de cosméticos e por setores da academia, esse Projeto de Lei é duramente criticado pelos movimentos sociais.

Na quarta-feira passada (25), numa audiência pública ocorrida no Senado, representantes dos povos tradicionais atingidos pela medida e dos movimentos sociais foram ouvidos pela primeira vez desde que o texto foi concebido. “Foi o momento decisivo da virada”, celebra Marciano Toledo da Silva, membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que faz parte da Via Campesina. A partir daí, o relator da Comissão de Meio Ambiente, o senador Jorge Viana (PT – AC) ouviu os 21 pontos elencados pelos movimentos sociais, acolheu 15, dos quais 12 foram aprovados no relatório da Comissão, minimizando os conteúdos que mais comprometem os direitos ratificados em convenções internacionais assinadas pelo Brasil e reconhecidos na própria Constituição Federal.

“O fato mais importante nesse processo foi que houve uma convergência [dos Movimentos Sociais], uma união muito importante e foi esse o fator decisivo no debate com os senadores. E é essa força que vamos levar no embate na Câmara… A gente fez valer nossos direitos e é uma forma de expressar pra presidenta [Dilma Rousseff] que sem nós, movimentos sociais, ela fica refém do capital”, arremata Marciano que faz parte de grupo de trabalho sobre agrobiodiversidade ligado à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e que também é membro da Coordenação Nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que completa quatro anos na semana que vem.

Para reforçar o coro que denuncia essa medida como mais um atentado contra os direitos dos povos tradicionais e que põem em risco a soberania alimentar e territorial do país, a Asacom entrevistou Marciano. Confira!

Asacom – O que está em risco no Brasil com a aprovação deste projeto de lei?
Marciano Silva
– Como o Brasil tem mais de 20% de toda biodiversidade do planeta e uma riqueza extraordinária cultural e socioambiental, a partir da relação homem-ambiente. O que está em risco é o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado a ele. Porque, ao tentar regular e fazer a gestão disso e possibilitar o uso mais adequado, as forças conservadoras do país atuaram no sentido de tentar fazer o que fazem há mais de 500 anos: explorar e expropriar a identidade cultural determinada por essa relação entre homem-meio ambiente, a exemplo das mulheres quebradeiras do coco babaçu. A identidade cultural delas é essa atividade.

Muitos direitos [das populações tradicionais] estão em risco, como o direito de dizer “não”. O texto que veio do Executivo e foi piorado na Câmara, viola o que os povos e comunidades tradicionais consideram como direitos conquistados.

Indiretamente, a soberania alimentar e a soberania territorial, para além das comunidades [também estão ameaçadas]. Porque o texto que vem da Câmara flexibiliza o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional e, ao mesmo tempo, dificulta o que a gente poderia chamar de uma “compensação”, que é a repartição de benefício. E a gente insiste neste termo “compensação” porque o que se tem até hoje e o que está previsto, está muito longe de ser uma reparação aos danos causados pela exploração e a expropriação tanto do patrimônio genético, quanto do conhecimento tradicional desses povos e dessas comunidades, ao mesmo tempo, dos agricultores familiares e camponeses.

Só existem ainda hoje mananciais hídricos preservados no país porque esses povos e comunidades manejaram e cuidaram desses recursos naturais. Isto é o que resta para controle do capital internacional, transnacional, corporativo. Isso é o que falta para eles controlarem. Dos recursos minerais eles já têm um certo controle. Então, o que falta? Falta o conhecimento que nós ainda detemos.

E quando a burocracia das políticas implica numa restrição à autonomia de uso de muito da nossa diversidade agrícola na alimentação, ela força à restrição de uso a um pequeno número de espécies ou variedades, com o favorecimento de uma outra que sofreu um processo de melhoramento genético, mais acessível pelo processo de padronização, que vai produzir em grande escala para obter um certo padrão de comportamento genético e que vai ser colhido com maquinário pesado e utilizando insumos químicos, etc.

Nós vivenciamos uma situação de restrição na nossa base alimentar e isso necessariamente, também causa uma erosão genética. Associado a outras questões socioeconômicas, como por exemplo, o abandono do campo pelos jovens. Não há possibilidade de uma transmissão adequada de todo conhecimento tradicional para as futuras gerações. Hoje o Brasil sofre o processo de envelhecimento da população rural.

Asacom – Que interesses estão por trás desta medida?
Marciano Silva –
O modelo tecnológico de desenvolvimento agrícola está esgotado. O que se procura para além do controle físico do recurso natural, como exemplo a própria água, é efetivar por parte das corporações, o controle sobre a natureza e o que resta para isso é o controle sobre a biodiversidade e o conhecimento tradicional que os povos têm sobre ela. Essa é a forma do “capital” se revitalizar. É o controle sobre a vida. Em suma, é isso!

Asacom – Além da violação de vários direitos das comunidades tradicionais, estão previstos vários privilégios para as empresas…
Marciano Silva –
O texto aprovado na Câmara determina uma anistia, um perdão às dívidas de muitas empresas privadas e também de muitos órgãos públicos que também foram multados. Houve muitas irregularidades durante esses anos todos. E o texto da Medida Provisória 2.186-16/2001 [que regulamentava a Convenção da Diversidade Biológica] tem muitas brechas, então houve muitas irregularidades.

O senador Jorge Viana entende que essa dívida não existe, porque a margem de interpretação também nesse lado político não teria porque cobrar esse recurso, porque o patrimônio genético e/ou o conhecimento tradicional foi acessado mas não gerou nenhum produto, não houve lucro das empresas. Então não haveria razão para cobrar uma repartição de benefício sobre isso. Então ele entende que grande parte deste suposto recurso [estimado em R$ 214 milhões] não exista.

Tem outras questões no texto que diz respeito: quando o material genético ou o conhecimento é acessado e não há a possibilidade de identificar quem é o fornecedor, a empresa ou a instituição de pesquisa fica com o direito de decidir a quem retribuir ou a maneira. Se não há como identificar, o dinheiro vai para um fundo. E a forma de distribuição pode ser monetariamente ou não monetária. É claro que vão decidir pela forma não monetária. E a empresa vai poder decidir com quem fazer a repartição. A empresa transnacional pode escolher fazer a repartição de benefícios com uma empresa subsidiária dela no país e não com a entidade ou a comunidade local. Tem uma série de pontos que permitem “regalias” às empresas.

Asacom – Como foi elaborado esse projeto de lei?
Marciano Silva –
A partir da assinatura pelo Brasil, da Convenção da Diversidade Biológica, tivemos um tempo sem ter a sua regulamentação. Em 1995, Marina Silva, quando era senadora, elabora com a ajuda das organizações ambientalistas uma proposta de regulamentação da convenção. O texto foi modificado, não teve acordo durante muito tempo. Foi criada uma Medida Provisória, que não atendia às necessidades de nenhum setor, mas minimamente tentava iniciar o processo. [A MP] dificultou o acesso à pesquisa, de acesso ao material genético e de gestão desse recurso, aumentou a burocracia para a gestão por parte do estado.

Até 2013, as organizações e movimentos sociais tiveram um ou outro nível de interlocução e participaram de um debate como governo, mas nunca houve uma consulta pública ampla que abrangesse todo o território nacional ou que abrangesse a diversidade das identidades socioculturais das populações do campo e da floresta. Isso é uma violação de Acordos Internacionais que o Brasil é signatário, como por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho ou mesmo de alguns artigos da própria Convenção da Diversidade Biológica.

Em 2014, isso não ocorreu. Houve um diálogo essencialmente e exclusivamente com a indústria e com alguns setores da academia. O texto que vai do Executivo para a Câmara fere muitos direitos já conquistados, porque o formato segue o interesse exclusivamente da indústria.

Asacom – Segundo a presidente do Consea Nacional, Maria Emília Pacheco, o projeto põe em risco um conjunto de iniciativas políticas e programas que levaram o Brasil a sair do mapa da fome. Isso demonstra a fragilidade dos avanços conquistados pelo país nos últimos 10-15 anos neste campo?
Marciano Silva –
Sim. E muitas dessas políticas públicas não são de Estado, mas de governo. Neste sentido, há uma fragilidade. As forças conservadoras do Congresso tentam restringir a amplitude ou aplicabilidade delas, que favorecem o pequeno agricultor ou os camponeses. No rol destas políticas públicas está o Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA Sementes, a implementação adequada da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e consequentemente, a Política Nacional de Saúde Integrada dos Povos do Campo e da Floresta.

Asacom – O PL não é uma medida isolada no atual contexto sociopolítico e econômico brasileiro, no qual o agronegócio investe com força para ampliar ainda mais seu espaço de atuação no país. Qual a sua leitura desse cenário?
Marciano Silva –
Com relação ao PL, algumas organizações, especialmente os povos indígenas e comunidades tradicionais, se sentem traídas pelo governo. A proposta veio do Executivo, é do governo de Dilma ou de setores conservadores que atentam contra as comunidades e os povos a partir desta visão “neodesenvolvimentista” do governo. Esse PL se soma a outras iniciativas que atentam contra os direitos territoriais, a exemplo a questão com relação à mineração ou a não demarcação das terras indígenas e quilombolas, ações ou omissão do governo de impacto ambiental e à segurança alimentar.

Dentro do Parlamento, temos a PEC 215, a que diz respeito à demarcação de terras indígenas, e a ADI 3.239 [Ação Direta de Inconstitucionalidade] sobre a demarcação de terras ocupadas por remanescentes dos quilombos; uma iniciativa para a retirada da rotulagem de produtos transgênicos [em tramitação na Câmara]. E tem também um projeto de lei que modifica a Lei de Cultivares, que atenta sobre a identidade das sementes crioulas e uma proposta de liberação de patentes para micro-organismos vivos. Então, há uma série de iniciativas tanto do legislativo, como do executivo que atentam contra o direito e o controle sobre a vida.

Asacom – Em que medida e de que forma o PL afeta a vida de quem vive nos centros urbanos do país?
Marciano Silva –
A atual situação alimentar que se vive no país hoje, assim como em diversos países, onde cada vez mais se consome produtos industrializados, ricos em açúcar, sal e gorduras, tende a piorar. Vamos ter uma restrição ainda maior da base alimentar e uma intensificação de problemas de saúde com uma população obesa ou um aumento da população suscetível a doenças raras. Os agricultores e os trabalhadores rurais estão cada vez mais expostos à contaminação por agrotóxicos, cada vez mais os recursos hídricos são contaminados por agrotóxicos e as nossas variedades [de sementes] crioulas sendo contaminadas, como o caso do milho, por variedades transgênicas.

Então, há uma série de questões que o cidadão comum, o trabalhador na cidade, vai pagar o custo. Ou vai consumir alimentos cada vez mais caros porque vai ter royalties, propriedade intelectual embutida, ou vai ter que pagar os custos dos problemas de saúde.

Isso tudo é causado pelo controle das grandes corporações agroalimentares associadas ao capital financeiro internacional, o controle externo, a perda da soberania alimentar, a perda da soberania nacional.

Asacom – Como está sendo a tramitação da matéria no Senado?
Marciano Silva –
O projeto de lei veio da Câmara no dia 12 de fevereiro. Foi apresentado em plenário no dia 24, no dia de 25 abriram três comissões: a de Constituição e Justiça, a de Assuntos Econômicos, a de Ciência e Meio Ambiente e a seguir, outras duas: a de Agricultura e Reforma Agrária e a de Ciência e Tecnologia.

Na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária foi aprovado tal e qual o texto veio da Câmara. Na Comissão de Ciência e Tecnologia, o relator [senador Telmário Motta (PDT-RR)] aceitou 10 pontos levados por nós, as organizações sociais. Houve uma audiência pública conjunta das Comissões, em três momentos: um para exposição das questões por parte do governo, outro por parte das instituições de pesquisa e academias, onde também participou a indústria, e uma terceira mesa, que  foi o único momento em que as organizações indígenas, de povos e comunidades tradicionais e de pequenos agricultores tiveram voz. E esta, contou com a participação a presidenta do Consea, Maria Emília Pacheco. Foi na quarta-feira passada [25/03].

Foi um momento decisivo, “de virada”. Foi o momento em que rebatemos a proposta que veio do Ministério do Meio Ambiente, que favorece a indústria e a academia. E quando no debate, houve a proposta de ter uma outra audiência para discutir nossos pontos em específico, ela foi rechaçada por parte de outros senadores. Então o senador Jorge Viana (PT-AC), relator da Comissão de Meio Ambiente e que também é vice-presidente do Senado, abriu seu gabinete para discutir ponto a ponto e nós fizemos isso. Nós elencamos 21 pontos, ele acolheu 15, destes houve um acordo e foi aprovado o relatório com 12 pontos. O Ronaldo Caiado elencou três pontos em desacordo.

O PL vai a plenário no dia 1º de abril, à tarde, quando inicia a sessão. Temos que fazer uma articulação nos estados com as organizações para pressionar os senadores que ainda não têm uma opinião formada sobre o tema. Depois, o PL volta para a Câmara e tem um prazo de cinco dias para ser votado. Aí é uma outra batalha porque a conjuntura não está boa.

Mas o fato mais importante nesse processo foi que houve uma convergência entre os movimentos e organizações indígenas e de povos e comunidades tradicionais, uma união muito importante e foi esse o fator decisivo no debate com os senadores e é essa força que vamos levar no embate com a Câmara. No dia 1º, por iniciativa do senador [João] Capiberibe [PSB-AP], vamos ter um seminário de dia inteiro discutindo o tema. Foi pensado antes de termos essa virada, do acolhimento dos nossos pontos. Vai ser importante. E é importante porque é outro momento de debate no Congresso Nacional.

Aprovando ou reprovando os pontos na Câmara, ele vai à sanção da presidenta. Estamos solicitando uma audiência com a Casa Civil. A gente sente que, nesse processo da Ministra Isabella [Teixeira, do Meio Ambiente], ela provocou um isolamento muito grande do governo com os movimentos sociais. A nossa dúvida é: Era uma orientação do Palácio do Planalto? Foi uma orientação da Casa Civil? Não sabemos. Mas o fato é que a ministra do Ministério do Meio Ambiente acirrou o abismo com relação aos movimentos sociais.

E essa nossa mobilização demonstrou à presidenta, que houve respostas concretas. A gente faz valer nossos direitos e é uma forma de expressar pra presidenta que, nesse momento da conjuntura política, sem os movimentos sociais, a situação fica muito ruim. A gente espera que haja uma mudança de condução desse processo no governo, porque o que está ocorrendo no campo é um verdadeiro genocídio, tanto de lideranças indígenas, quanto de sindicalistas e outras lideranças de movimentos sociais. E isso é parte também da omissão do Estado.

Asacom – Como o cidadão comum pode apoiar essa ação de resistência?
Marciano Silva –
O meio mais fácil é encaminhar sua manifestação para o e-mail dos gabinetes dos Senadores. Se puder manifestar pessoalmente a sua insatisfação com este ponto, é muito importante. O contato pessoal é importante para expressar as suas preocupações diretamente com o parlamentar, faz com que eles se sintam compromissados, afinal eles estão ali pra defender nossos interesses.

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