1915 e os Currais dos Flagelados

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“Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz.” (Trecho do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz)

Imagem que reproduz currais dos flagelados no Ceará | Foto: Internet

A partir desse findo mês de março, a rede de comunicadores/as populares do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido apresentará, a cada final de mês, uma singela viagem por esses últimos 100 anos de história, marcando como ponto de partida o fatídico ano de 1915 e sua seca cravada no tempo a partir do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz que, apesar de ser uma história fictícia, tem relevante conteúdo social e histórico.

Sabemos que a história das secas não datam somente do século XX, mas o envolvimento do poder público através de políticas públicas tem primícias em 1915, através dos campos de concentração. Outros aspectos serão tratados em diferentes textos, onde tentaremos trazer lembranças desses complexos acontecimentos que marcaram profundamente nossa história, tanto as secas e as diversas tentativas de combatê-las até o nascimento dos movimentos camponeses que mudam o cenário e rediscutem o espaço e as ações.

A seca do 15
Apesar do romance de Rachel de Queiroz ter sido escrito apenas em 1930, a história do “O Quinze” retrata, com verossimilhança assombrosa, a seca de 1915. Porém, a história das secas no Nordeste data, em registro, desde 1603, o que fez com que o português Pero Coelho de Souza desistisse da colonização, além da contribuição significativa dos índios. O que chama atenção para a seca do 15 é a implementação dos campos de concentração, os currais do governo. O termo campo de concentração, para maioria das pessoas, remete as vítimas do nazismo alemão, mas aqui no estado do Ceará foram implementadas obras semelhantes na seca de 1915, com medo que se repetissem os acontecimentos de 1877, quando cerca de 110 mil famintos se apossaram das ruas de Fortaleza, levando a elite Belle Époque ser confrontada com a verdade que acometia milhares de cearenses.

Vindos de vários lugares do estado, ocuparam a capital, desencadeando saques, suicídios e outras situações provocadas pela fome que, segundo professor Frederico Neves¹ “é um campo propício para o desenvolvimento de perversões éticas de todo o tipo” levando a recatada sociedade fortalezense a ter seu mundinho virado ao avesso. A partir desses acontecimentos, os olhos da sociedade voltaram-se a figura do retirante e o resultado desses 38 anos, entre 1877 e 1915 são os campos de concentração, que claramente remetem a uma estratégia de “substituir os ‘abarracamentos’ dos retirantes que enfeiavam e contaminavam os ares da cidade que vaidosamente se moderniza” ressalta o professor Frederico Neves. A iniciativa de Benjamim Liberato Barroso, presidente do Estado, era concentrar os retirantes e não deixar que eles se espalhassem pelas cidades construindo suas barracas sem nenhum planejamento urbano.

Criado com o objetivo de concentrar os retirantes e encaminha-los para as frentes de trabalho (construção de praças, açudes, estradas, calçadas), o Campo de Concentração do Alagadiço ficava em Fortaleza e chegou a comportar cerca de 8 mil pessoas. Não havia estrutura sanitária, os flagelados se aglomeravam onde bem entendessem e com o passar do tempo, expostos a chuvas, proliferação de moscas, fezes ao ar livre e água contaminada o agravamento do estado de higiene dessas pessoas começou a desencadear várias doenças e a mortalidade, sobretudo infantil, atingiu números alarmantes deixando claro que era mais fácil morrer nos campos do que fora deles. As secas, mesmo as anteriores a “do 15”, sempre alimentaram o terror coletivo, o medo de que flagelados invadissem a cidade, sujos, saqueando tudo, se apossando das praças, aumentando a criminalidade e a prostituição. Aparentemente é possível sugerir que as ações extremas, como os campos de concentrações, surgiram como medidas de higienização (eugenia) social.

A seca de 1915 deixou marcas profundas, segundo a Inspetoria de Obras Contra a Seca – IOCS , entre 1913 e 1915, 2 milhões de pessoas morreram em consequência da miséria e fome da estiagem. Os sertanejos retirantes passaram a chamar os campos de concentração de “currais” o que etimologicamente parece dar conta do que eram esses espaços. O termo “flagelado”, referindo-se aos retirantes, passa a ser predominantemente utilizado pelos estudiosos e veículos de comunicação. Segregar os retirantes das populações urbanas foi a solução encontrada pelo governo e elites para que o citadinos não tivessem que conviver com as pessoas de “fisionomia marcada pelo rito da miséria”².

Os campos de concentração não apresentaram resultados satisfatórios, estava claro que o método havia falhado, porém, 17 anos depois da tragédia do 15, novamente o Governo do Estado se utiliza dos “currais” para conter as populações de flagelados que invadiam as cidades. Em Fortaleza, além da “reativação” do campo de concentração do Alagadiço, foi criado o Pirambu, que ficou conhecido como Campo do Urubu e as cidades de Cariús, Ipu, Quixadá, Quixeramobim e Senador Pompeu também tiveram os campos instalados e ali morreram milhares de pessoas. Na próxima matéria será possível entender mais sobre os acontecimentos da seca de 1932.

Na avaliação do Presidente de Estado na época, o engenheiro e militar Benjamim Liberato Barroso: “Ainda parece ouvirmos em tumulto queixume de um povo bom a debater-se de agonia de misérias que não vão bem longe. Sofreu com coragem inimitável os horrores da seca sem cometer desatinos; morreu de fome sem roubar nem saquear”. A seca hoje tem outras faces, durante os anos que se passaram, as práticas políticas ficaram mais perniciosas, sobretudo pela indústria da seca, porém, com o surgimento dos movimentos sociais, em destaque para o sindicalismo rural, esses agricultores passaram a se organizar e exigir mais ações preventivas de combate à seca, posteriormente, convivência com o Semiárido…

“No céu entra quem merece
No mundo vale quem tem
Eu como tenho vergonha
Não peço nada a ninguém
Que me parece quem pede
Ser cativo de quem tem”
(A heroína Conceição, do romance “O Quinze”)

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