Projeto Cisternas nas Escolas trouxe “água de educar” ao Semiárido baiano

Experiência pioneira implementada no interior baiano em 2009 e 2010, a iniciativa abraça um lugar social fundamental na vida das comunidades rurais: a escola.
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As ações de convivência com o Semiárido se valem de um conjunto de conhecimentos e procedimentos que buscam adaptação e harmonização dos atores sociais com as características climáticas, ambientais e culturais da região. Envolve o reconhecimento e aceitação das fragilidades e potencialidades regionais e o entendimento histórico para lidar com as problemáticas socioeconômicas de forma propositiva, e assim alcançar a superação de males que se perpetuam ao longo do tempo, como a pobreza e a desigualdade social. A fragilidade da educação rural, porém, é uma questão estrutural que deve ocupar lugar central em qualquer debate sobre a formulação de políticas de convivência com a região semiárida.

No Semiárido brasileiro, existiam (ainda existem) centenas de escola rurais com sérias dificuldades para ofertar água potável para os seus alunos, dependendo de carros-pipa e/ou fontes d’água contaminadas, ou nem mesmo isso. Soma-se a isso, a falta de conexão entre os currículos escolares e a realidade das comunidades rurais, a falta de investimentos em infraestrutura, de contratação de professores/as e também de proximidade dos mesmos/as com os contextos sociais inseridos nas regiões aonde trabalham.

Com o êxito do projeto piloto, a ASA levou adiante a experiência realizada na Bahia e a disseminou por todo o Semiárido brasileiro | Fotos: Mário Sérgio / Arquivo CAA

A observação da realidade leva à gênese da ação – A partir da reflexão sobre a demanda hídrica e nas escolas rurais no Semiárido baiano e dos desafios propostos pela educação contextualizada, o Centro de Assessoria do Assuruá (CAA) chegou a uma iniciativa inovadora: reaplicar a tecnologia social da cisterna de placa nos espaços escolares.

O know-how adquirido pelo CAA através de duas décadas na implementação de tecnologias sociais em larga escala, somado a convivência e o diálogo com centenas de comunidades rurais que transmitiram seus anseios e necessidades, levaram o corpo técnico da entidade a formular uma ação planejada para atacar a questão da oferta de água potável nas escolas rurais da região semiárida do estado e também jogar luz sobre o papel da educação contextualizada no fortalecimento das comunidades.

Resultante disso surge, em 2009, o projeto Cisternas nas Escolas. Com inspiração no ‘Pacto Nacional Um Mundo Para a Criança e o Adolescente no Semiárido’, proposto pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), ele foi idealizado e realizado pelo CAA em parceria da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), e apoiado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e da Educação (MEC), em conjunto com a Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (Sedes), a iniciativa pioneira foi de encontro às necessidades das escolas rurais, em consoante com o Programa de Mobilização Popular e de Convivência com o Semiárido da ASA. Com o êxito do projeto piloto, a ASA levou adiante a experiência realizada na Bahia e a disseminou por todo o Semiárido brasileiro.

“Nós começamos a construir cisternas a mais de 20 anos pra tentar superar nossas dificuldades e mostrar para os governantes que essa terra não é uma terra onde não chove”, relembra Mário Jacó, coordenador executivo do CAA. Segundo ele, a entidade obteve um grande avanço ao enxergar a necessidade de se trabalhar pela oferta de água nas escolas. Já William Prado Ferreira, engenheiro agrônomo e técnico do projeto piloto, ressalta a condição de insegurança hídrica das crianças e jovens em idade escolar a que se sujeitavam durante o período de aulas, mesmo as que já possuíam cisterna em casa. “Muitas das famílias de crianças que hoje estão na sala de aula já possuem a cisterna de consumo em suas casas, mas no período das aulas ficavam sem água”, exemplifica William.

Resultados positivos – O projeto se valeu de duas estruturas hídricas para estruturar as escolas atendidas: uma cisterna com capacidade para 30 mil litros, desenvolvida especialmente pelo CAA para captar água para o consumo humano, e uma cisterna de enxurrada, que armazena até 52 mil litros visando oferta de água para a produção de alimentos aos estudantes, possibilitando assim o alcance da segurança e soberania hídrica e alimentar de escolas de 43 comunidades escolares de 13 municípios do Semiárido baiano, envolvendo diretamente mais de 800 famílias. Como complemento, 811 cisternas de 16 mil litros atenderam famílias que vivem em áreas próximas das escolas participantes do projeto.

A cisterna de 30 mil litros merece um destaque especial. Fruto da inventividade do pedreiro e agricultor Reinan Fernandes de Lima, que vive em Central/BA, ela é um exemplo da versatilidade e da liberdade das tecnologias sociais, que possibilitam a reaplicação e adaptação conforme as necessidades que se apresentam. Ele conta como projetou o novo modelo: “o pessoal do CAA me procurou, pois eles queriam uma cisterna de consumo maior do que as que existem. Aí eu levantei uma de 30 mil litros, ligada no telhado da escola como experiência, e ajudei a montar o orçamento. A coisa funcionou direitinho, então tocamos em frente”, conta Reinan, que viajou o estado inteiro ministrando capacitações e levando adiante a nova tecnologia. “Nas minhas contas, eu viajei por 34 municípios capacitando o pessoal”, relembra.

 
A oferta da água potável possibilitou o incremento na segurança alimentar e nutricional dos estudantes.

O ganho mais notável se percebe no incremento na segurança alimentar e nutricional dos estudantes, pois a oferta de água potável possibilita a muitas escolas preparar a merenda no próprio local, e com alimentos colhidos diretamente da horta escolar possibilitada pela cisterna de enxurrada. “Antes eu não tinha muita vontade de vir pra cá porque era difícil ter lanche”, conta Taís de Almeida Sobrinho, 14 anos, moradora da comunidade Boi de Hermano, no município de Central. “Agora melhorou muito, porque tem água boa e merenda todo dia, dá mais ânimo pra gente estudar”.

A ‘água de educar’ é muito mais do que matar a sede – O projeto Cisternas nas Escolas vai muito além das tecnologias sociais. Além das dimensões já trabalhadas nas dinâmicas da ASA, como as ações de formação e o incentivo a organização comunitária e a mobilização popular, o projeto investe pesado na construção de dinâmicas de educação contextualizada.

“Nós temos o trabalho de formação com os professores, pois este é um elemento importante dentro do projeto”, destaca Jacó. O protagonismo da educação contextualizada é afirmado através das dinâmicas participativas na elaboração e realização das oficinas, chamando os professores e as lideranças comunitárias para contribuir ativamente no processo. “O planejamento é coletivo e participativo, porque a partir daí a gente escolhe a metodologia. A gente vai pensar, vai discutir a questão do currículo contextualizado, com elementos da realidade da comunidade, da escola onde ela está inserida, e também o planejamento para saber como é que vamos trabalhar com as crianças dentro da sala de aula”, explica Cláudio Rodrigues, coordenador pedagógico do projeto piloto.

As comunidades responderam de forma extremamente positiva a ação horizontalizada e democrática do Cisternas nas Escolas. O professor Renato Pereira de Santana, da comunidade Boi de Hermano, conta como foi à experiência com o projeto na localidade: “Na época nós mobilizamos toda a comunidade e ela se prontificou a trabalhar junto comigo, professor. Fizemos mutirão pra fazer a limpeza, nivelar o terreno e também na construção, estivemos sempre juntos. A comunidade ficou extremamente satisfeita, ela ficou mais motivada”.

O poder público também sentiu os impactos positivos da iniciativa. “Os professores voltam com uma visão totalmente diferente, com a perspectiva de trabalhar a educação de forma sustentável. As crianças levam esse conhecimento para casa, passam para os pais (…), então toda a comunidade é beneficiada”, afirma Adalberto Martins Sobrinho, secretario de educação do município de Central/BA na época de implementação do projeto.

A filosofia da educação contextualizada reflete também as práticas de comunicação popular, especialmente na preocupação em se pensar linguagens e veículos mais adequados para os materiais didáticos darem suporte contextualizado às ações educativas que foram realizadas. Para Cláudio Rodrigues, este é um elemento chave no êxito do trabalho. “Nesse processo de formação dos professores nós pensamos nos materiais, nos cartazes, nas cartilhas, pensamos em uma linguagem acessível para as crianças e também as famílias, pois isso está para além da escola, a comunidade inteira é contemplada”, afirma.

A continuidade de uma ação tão importante é motivo de celebração e também de enfrentamento de questões essenciais ao desenvolvimento social do Semiárido.

Transformação social e continuidade – O projeto Cisternas nas Escolas se provou exitoso não só pelos resultados alcançados nas comunidades escolares diretamente atendidas, mas também pelas sementes plantadas na luta por um Semiárido com mais qualidade de vida. O papel da ASA foi fundamental, ao incorporar a água de educar nas bandeiras de convivência com o Semiárido. Assim, o projeto voltou a ser realizado em 2011, abrangendo todo o Nordeste e o norte de Minas Gerais e ganhou caráter de política pública, sendo financiado pelo MDS.

Os dividendos alcançados por meio da valorização da vida, da cidadania, da igualdade de direitos e do espírito solidário nas comunidades rurais e no ambiente escolar foram reconhecidos pelo ‘Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social’ em 2011, que identificou na ação do projeto Cisternas nas Escolas um veículo que contém um potencial real para promover transformação social.

Em 2015, mais uma etapa será executada, objetivando construir 5 mil tecnologias sociais até 2016, a ser implementados em 256 municípios. A continuidade de uma ação tão importante é motivo de celebração e também de enfrentamento de questões essenciais ao desenvolvimento social do Semiárido, como o desafio de trabalhar a educação contextualizada em larga escala. O fenômeno da ‘nucleação’, que nada mais é que a aglutinação de estudantes em um número menor de escolas (significando o fechamento de várias delas) é outro grande desafio posto para a sociedade civil organizada e os movimentos sociais que lutam pela educação contextualizada no Brasil. O relatório “Escolas Esquecidas”, elaborado pelo Instituto CNA em conjunto com o Observatório das Desproteções Sociais no Campo, sistematiza boa parte das dificuldades enfrentadas no ensino rural, mas não dá conta de mostrar um espectro mais amplo dos problemas, por si só um indicativo de que há muito por ser feito.

Apesar das dificuldades que se desenham adiante, a perspectiva é muito positiva, e as conquistas sociais proporcionadas pela água de educar oferecem um norte fértil para ser desbravado dentro da filosofia da convivência. Segundo Mário Jacó, este é um caminho que vale a pena ser trilhado. “No dia que todas as nossas crianças tiverem uma água de qualidade para beber, uma água de qualidade para produzir e uma escola de qualidade, nós vamos transformar a realidade do Semiárido brasileiro, porque o alicerce da transformação é a educação”, afirma.

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