Convivência com a seca
CONVIVÊNCIA COM A SECA
Tecnologias sociais são ampliadas no Interior
Embora reconheça que a situação no Semiárido mudou, Fetraece cobra ações para universalizar os programas no Ceará
A Fetraece estima que existam cerca de 340 mil propriedades rurais no Estado, das quais 60% têm algum tipo de tecnologia social
O secretário de Políticas Públicas da Fetraece, José Francisco Carneiro, diz que as parcerias são fundamentais
A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece) estima que existam aproximadamente 340 mil propriedades rurais em solo cearense, somando 750 mil agricultores familiares. Cerca de 60% dos quintais produtivos têm algum tipo de tecnologia social de convivência com o Semiárido, com foco na coleta, no armazenamento e no uso sustentável da água.
A construção por parte do poder público de equipamentos como cisternas, poços, adutoras e barragens, notadamente nos últimos três anos, ajudou a amenizar os efeitos da estiagem sobre a produção, mas a realidade está longe de ser a ideal.
“Muita coisa ainda deve ser feita nesse sentido. Precisamos universalizar esses programas no Ceará, que tem 90% de seu território no Semiárido. Os investimentos na área podem ser mais sólidos, embora a situação tenha melhorado ao longo dos anos. Vale lembrar que 70% dos alimentos básicos produzidos e consumidos no mercado interno brasileiro vêm da agricultura familiar. O agronegócio, por sua vez, vende 80% do que produz no Brasil para o mercado externo. Aí está a diferença”, afirma o secretário de Políticas Agrícolas da Fetraece, José Francisco de Almeida Carneiro.
Ele lembra que, desde 2012, ano em que começou a seca vivida atualmente no Ceará e na região Nordeste, ações voltadas à convivência com a estiagem começaram a ser ampliadas no Estado. Além do apoio do governo estadual, José Francisco destaca a atenção dada por organizações não governamentais aos trabalhadores rurais, que atuam em conjunto com a Fetraece.
Políticas
“Esses parceiros nos ajudam a pensar políticas para garantir a produção e, consequentemente, o sustento dessas famílias cearenses”, diz, destacando a importância da Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), da rede Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil) e da Rede Cearense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Rede Ater/CE).
Entre as principais tecnologias levadas aos quintais produtivos do Ceará estão: barragem subterrânea; barraginha; barreiro trincheira; cisterna-calçadão; tanque de pedra; cisterna de enxurrada; e bomba d'água popular. Embora reconheça a importância dessas ações, José Francisco cobra dos governos municipais, estadual e federal ações emergenciais e estruturantes para evitar novos danos econômicos e sociais à população cearense em períodos de estiagem.
Diante da previsão de mais um ano de seca, a Fetraece quer um posicionamento do governador do Ceará, Camilo Santana, em relação às medidas que deverão ser adotadas no sentido de garantir o abastecimento humano, animal e a produção agrícola. A entidade já solicitou uma audiência com o chefe do Executivo estadual e elaborou diversas propostas ligadas às seguintes áreas: convivência com o Semiárido; segurança hídrica; alimentação dos rebanhos; alimentação humana; renda para agricultura familiar; e crédito rural e renegociação de dívida.
Propostas
Entre as propostas, destacam-se: a instituição, por meio de lei, da Política Nacional e do Fundo Nacional de Financiamento à Convivência com o Semiárido, com a participação dos três entes federativos; a celeridade e a conclusão da obra de transposição do Rio São Francisco (Eixo Norte) e do Cinturão das Águas; a reedição da linha de crédito emergencial do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), caso a seca de 2015 se confirme; além de outras sugestões.
José Francisco torce para que o prognóstico da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) não se confirme. A previsão é que a quadra chuvosa, em 2015, fiquei mais uma vez abaixo da média histórica (607.4 milímetros) para o quadrimestre chuvoso, que vai de fevereiro a maio.
“Não queremos outro ano de seca. Se chover pouco, igual a 2014, teremos como manter nossa produção. Mas isso não significa que independemos de ações voltadas ao abastecimento”, acrescenta. (RS)
NOVAS MODALIDADES
MDA desenvolve mais alternativas para agricultores
Para 2015, o ministério anunciou uma série de remodelações em ações desenvolvidas com agricultores familiares
O Estado do Ceará, foi a unidade da federação com o maior número de adesões (334.121) ao programa Garantia-Safra 2013/2014, seguido da Bahia (284.767) e do Piauí (133 mil)
No Plano Safra da Agricultura Familiar 2014/2015, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) elaborou um conjunto de medidas adaptadas à realidade do Semiárido para ampliar as possibilidades de convivência dos agricultores com a seca. Segundo informações divulgadas pelo órgão, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ganhou uma nova modalidade.
Houve a inclusão de agricultores familiares com excedente de forragem animal (silagem ou palma forrageira). Além disso, foram criadas linhas de crédito com taxas de subsídio que chegam a 40%; Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) específicas para a região; um programa de fomento para financiar atividades essenciais da agricultura familiar; e valores de referência do Programa de Garantia de Preços para a Agricultura Familiar (PGPAF) mais elevados, de forma a garantir mais renda aos trabalhadores. Com relação às ações voltadas à região nos últimos anos, o MDA destaca que, mesmo com uma estiagem histórica, na Safra 2013/2014 foram acessados R$ 3,3 bilhões em recursos para reestruturação e investimento por meio do crédito rural do Programa Nacional de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Pronaf). O valor representa um crescimento de 12% sobre a safra anterior.
Renda protegida
De acordo com o MDA, 1,17 milhão de agricultores de 1.261 municípios situados no Semiárido (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) aderiu ao programa Garantia-Safra 2013/2014. O Ceará, por sinal, foi o estado com o maior número de adesões ao programa (334.121), seguido da Bahia (284.767) e do Piauí (133 mil).
O Garantia-Safra tem como objetivo garantir condições mínimas de sobrevivência aos agricultores familiares de municípios sujeitos à perda de safra em razão de estiagem ou excesso hídrico. A renda média mensal dos produtores tem que ser de até um salário mínimo e meio, excluídos os benefícios previdenciários rurais. Os trabalhadores precisam plantar entre 0,6 e cinco hectares.
As culturas incluídas no programa são feijão, milho, arroz, mandioca, algodão ou outras atividades agrícolas de convivência com o Semiárido, que abrange os municípios localizados na região Nordeste, no norte de Minas Gerais (Vale do Mucuri e Vale do Jequitinhonha) e no norte do Espírito Santo.
PAC 2
Ainda conforme o órgão, a segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), do governo federal, doou um exemplar de retroescavadeira, motoniveladora e caminhão-caçamba para os municípios brasileiros com até 50 mil habitantes.
A iniciativa foi instituída para fortalecer o escoamento agrícola familiar a partir da conservação das estradas vicinais. No início de 2013, a doação dos equipamentos priorizou os 1.440 cidades que tiverem situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos devido à falta de chuva. Além dos três equipamentos citados anteriormente, também foram entregues uma unidade de caminhão-pipa e pá carregadeira para cada um dos municípios. (RS)
ANÁLISE
Outra concepção do Semiárido
A política básica para o Semiárido foi e, em parte, ainda é aquela de combater a seca, como se isso fosse possível. O combate à seca, baseado em instrumentos das famigeradas frentes de trabalho como os carros-pipa, a escavação de açudes em terras dos mais ricos e ações que mantinham uns cada vez mais ricos às custas da maioria pobre, forma a base da indústria da seca. Esta estratégia gerou a concentração da terra, da água, do saber, do poder e o aumento crescente da fome e da miséria no Semiárido.
Nas últimas décadas, porém, com a intervenção de diversos atores, governamentais e não governamentais, vem sendo gerada outra concepção de ver, trabalhar e construir o Semiárido, baseada na compreensão de que seu povo é cidadão; que seca não se combate; que é possível conviver com a semiaridez; que a região é viável; que uma sociedade justa se constrói baseada em equidade de gênero, tendo as mulheres como protagonistas de seus destinos; e que é essencial o desenvolvimento de uma educação para a convivência com o Semiárido que valorize o conhecimento do seu povo.
Há muitas práticas e processos que podem explicitar sinais e alternativas de convivência com o Semiárido. Elas emergem das vivências sistematizadas de agricultores e agricultoras que no seu dia a dia vivem e exercitam os processos de convivência, descobriram seu significado e desejam socializar com outros agricultores suas descobertas. A maioria dessas práticas está centrada na cultura do estoque que vem transformando a região.
No Semiárido existe água e, dependendo das regiões, chove bem. Hoje há estruturas de armazenamento para quase 37 bilhões de metros cúbicos de água, especialmente nos grandes açudes. O problema é que quase toda essa água está destinada às cidades ou concentrada nas mãos de poucos. Para reverter este quadro necessita-se de estruturas de armazenamento através das quais a água seja estocada e partilhada. Entre elas destacam-se as cisternas de primeira água. Essa tecnologia se difundiu na região pelo Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) da ASA e por vários programas governamentais. Atualmente, já existem cerca de 800 mil dessas cisternas, garantindo água de qualidade a quase 2 milhões e meio de pessoas.
A população dispersa do Semiárido necessita também de alternativas de captação da água para dar de beber aos animais e para a produção de alimentos. Neste campo, nasceu no ano de 2007, o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e as bem sucedidas experiências de pequenas irrigações. Aí estão também as cisternas-enxurrada, as cisternas-calçadão, os tanques de pedra, as barragens subterrâneas e outras inovações. Hoje, já são mais de 80 mil tecnologias de segunda água.
Outro elemento chave da convivência é guardar alimento para os animais. A ensilagem é uma maneira de estocar forragem. Ela pode ser guardada em silos feitos em cima do chão. Outra técnica é a fenação, que consiste em desidratar alimentos produzindo a forragem. Cultivar plantas forrageiras como a palma, melancia, sorgo e outras auxilia também a organização do estoque.
Assim como se incentiva o armazenamento de água e de alimentos para os animais nos tempos mais difíceis, o mesmo pode ser feito para que todas as pessoas possam ter alimentos saudáveis durante todo o tempo. Guardar os grãos que se necessita para a alimentação, sem utilizar agrotóxicos, é uma estratégia importante de segurança alimentar. As sementes também podem ser armazenadas para que não se percam as variedades de plantas e grãos que, no sertão, servem para a alimentação humana.
Para que esses processos se ampliem e sejam mais difundidos, é essencial haver uma assistência técnica com base em princípios e metodologias agroecológicas, que tenha os conhecimentos e experiências dos agricultores no centro dos processos, sem desprezar o conhecimento cientifico, mas onde a metodologia do intercâmbio entre agricultores seja a metodologia básica. Por outro lado, é preciso um crédito adequado que viabilize a cultura do estoque e os demais processos.
Portanto, o Semiárido possui conhecimentos, estratégias e ações. Algumas ações já se projetam para políticas, enquanto outras estão longe disso. O caminho da convivência, no entanto, exige que estas práticas se transformem em políticas e sejam universalizadas.
Naidison de Quintella Baptista/ Carlos Humberto Campos
Coordenador executivo da ASA Brasil pelo Estado da Bahia/ Coordenador executivo da ASA Brasil pelo Estado do Piauí
Produção que brota além da seca no Ceará
Experiências de pequenos agricultores familiares dão nova cara ao Estado, marcado pela severidade da estiagem que tanto já prejudicou plantações e rebanhos
Ao completar um século da seca mais severa da história nordestina (1915-2015) com mais um período de estiagem, e um ano depois de a agricultura familiar tornar-se prioridade para a Organização das Nações Unidas (ONU), a região, interpretada pelo resto do País como sinônimo de sofrimento, revela-se, em alguns lugares do Ceará, bem diferente, devido à ação de pequenos produtores. Continua sofrendo, mas transformou-se, está reinventada, mais produtiva.
Mesmo sem a convivência plena com o Semiárido, pois ainda espera-se pela total descentralização dos recursos hídricos, muitos sertanejos já não são mais reféns da água, como continuam sendo os habitantes das grandes metrópoles brasileiras, os quais, atualmente, sofrem por não saberem lidar com a falta d'água.
O cenário continua drástico, com mortes de rebanhos e abastecimento precário. Os 127 reservatórios do Estado estão com 19% de sua capacidade total de armazenamento, segundo dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Novas possibilidades
No entanto, alternativas para amenizar – e até sanar – os efeitos da estiagem foram encontradas e, apesar desses baques, muita coisa mudou: o trabalho, a renda, a diversão.
Como propulsoras desse novo cenário, é impossível não reconhecer as ações do poder público e de organizações não-governamentais. Porém, o grande beneficiado por tudo isso também merece o maior crédito, pois foi da iniciativa dos próprios nordestinos que experiências de convivência harmoniosa com a seca nasceram e persistem, alimentando os que antes tinham fome.
Por uma cultura sustentável
Para dar continuidade e ampliar os exemplos de mudança, no entanto, todos os cearenses, do Interior e especialmente os da Capital, precisam mudar o jeito como lidam com a água.
A urgência de que isso aconteça, lembrada apenas em tempos de crise hídrica, torna-se ainda mais latente em um ambiente no qual a seca ainda castiga.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Por uma nova cultura da água
Nos últimos 15 anos, a sociedade civil organizada vem trabalhando em prol do nascimento de uma nova cultura da água, apresentando propostas aos governos e sensibilizando-os a ser parceiros nesse processo de transformação no Semiárido, por meio do aporte financeiro. E só há uma perspectiva: conviver com a seca. Ainda existem pessoas sofrendo por conta desse fenômeno climático, isso é fato, mas estamos no caminho certo.
Esse sofrimento, porém, é bem menor que o verificado em outras épocas, quando não haviam tecnologias como cisternas e barreiras subterrâneas, por exemplo. Os pequenos agricultores não tinham o mínimo de condições para armazenar água e garantir o sustento de suas famílias. Por outro lado, precisamos fazer a seguinte pergunta: o que foi feito, historicamente, para reverter de vez essa situação? Em 2015, a maior seca da história do Semiárido, de 1915, completa 100 anos.
Mas, o registro mais antigo de seca foi em 1583. Ou seja, os governos não conseguiram planejar e organizar ações que, de fato, mitigassem os graves efeitos da estiagem. Trabalhou-se muito na perspectiva de grandes obras hídricas, quando o mais importante é priorizar as pequenas obras para garantir a descentralização.
Precisamos, também, avançar no sentido do desenvolvimento sustentável, diminuindo o consumo exacerbado dos recursos naturais, que são limitados. Não só o governo e as entidades não governamentais devem se empenhar nisso, mas toda a sociedade civil.
Sou extremamente otimista. Acredito que o Semiárido é um lugar bom de se viver, com muitas oportunidades e uma grande diversidade. Entendendo melhor a seca, podemos conviver harmonicamente com ela.
Alessandro Nunes
Assessor técnico da Cáritas Brasileira Regional/CE
Armando de Oliveira Lima/Raone Saraiva
Repórteres
ESCOLHAS CERTAS
Paisagem e vida transformadas
No sertão cearense, comunidades estão aprendendo a usar a pouca água que têm de forma sustentável
Depois de trabalhar longe de sua terra natal por duas vezes, sem obter êxito, o agricultor Antônio José Ferreira voltou à comunidade Pató, no município de Caridade, e investiu na criação de uma horta, de onde tira o sustento da família
A necessidade de água foi tanta, que Antonio chegou a sonhar por três noites consecutivas cavando um poço próximo de casa. O melhor é que fez dele realidade e, hoje, conta com mais uma fonte de água para a produção e para a família
Lado a lado, mãe e filha dão seguimento à vida em parceria, cuidando uma da outra e dos demais parentes e amigos necessitados de companhias tão valorosas com as de dona Alice e dona Auxiliadora
Caridade. A coragem de muitos agricultores familiares do Ceará tem ajudado a transformar a máxima antiga de que era impossível conviver com a seca, sendo o êxodo rural a alternativa mais viável para quem buscava uma vida melhor. Depois de três anos de severa estiagem, encontramos verdadeiros oásis no sertão cearense, que nasceram de escolhas e mudaram a paisagem, assim como a vida de quem está inserido nela.
A transformação na comunidade Pató, situada no município de Caridade – a 97,6 Km de Fortaleza -, se deu pelas mãos de Antonio José Ferreira, 31, que chegou a trabalhar duas vezes fora, mas voltou. O que o fez retornar para a terra seca dividida por oito famílias, onde a maioria das plantas que brotavam por lá eram carnaúbas e palmas? Uma razão mais que digna: “é muito ruim ficar longe dos meninos e da mulher”. Então, resolveu aplicar o espírito empreendedor que possui em uma horta, “aguando com um balde, no começo”. Mas logo viu que podia crescer.
Em busca de água
Agora, os três meninos e a mulher vivem só do cultivo de legumes e hortaliças. E a vida de todos está melhorando. “Trabalhei quatro anos na palha (da carnaúba para fazer vassoura) e nunca coloquei um tijolo na minha casa. Hoje, minha casinha está do jeito que está só por causa da verdura”, orgulha-se.
Antônio é auxiliado tecnicamente pelo Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, organização não governamental que trabalha com 2,5 mil famílias de agricultores familiares cearenses na perspectiva da segurança alimentar. Ele participa do projeto P1+2, em que o número 1 representa a terra e o 2 as duas cisternas, a de consumo humano e a de irrigação.
Antonio passou por outros projetos antes, conseguindo uma cisterna de enxurrada com 52 mil litros e outra de placa, de 16 mil litros, para o consumo da família. Mas o diferencial da produção deve-se realmente à água que encontrou cavando próximo de casa. Dormindo, o agricultor sonhou por três vezes seguidas cavando um cacimbão e resolveu investir: “falei com o papai, ele disse que acreditava que ia dar água, aí eu juntei quatro homens e fui cavar. Deu certo”.
Assim, Antonio passou a contar com mais uma fonte de água, pois o cacimbão que dividia com as oito famílias só garante 40 minutos de água. Depois, é necessário esperar 1h30min para o reservatório ser reabastecido.
A sorte maior foi que, nas duas fontes, a água é potável e pode ser usada também para o consumo da família. Segundo esclarece o presidente da Esplar, Marcus Venicius de Oliveira, a maioria dos poços cavados no Ceará são mais adequados para o uso na produção, pela quantidade de sal existente no solo. Antonio torce que chegue água encanada em Pató: “assim, o pessoal usa lá e eu fico com os poços e as cisternas aqui para mim, né?”, observa. Além do trato no uso da água, em que Antonio aprendeu a usar as cisternas só em caso de emergência e, assim, ainda possui metade delas cheias com o que foi captado durante as poucas chuvas de 2014. O Esplar proporcionou a ele aprendizado para aperfeiçoar a produção com os cursos de Gestão de Águas para a Produção de Alimentos (Gapa) e o Sistema Simplificado de Manejo Agroecológico (Sisma).
Intercâmbios e pesquisas
Foi com o conhecimento aprendido nos treinamentos que o agricultor viu a importância de cultivar plantas sem agrotóxicos, com adubo orgânico e da segurança alimentar para a família. Além da horta, ele ainda conta com uma criação de galinhas para consumo próprio. “Hoje, o pessoal se admira porque produzo em um barranco desse. Antigamente, aqui não dava nada. Mas eu dou para a terra o que ela precisa”, conta, orgulhoso, depois de revelar que algumas técnicas foram empregadas após uma pesquisa na internet.
Na web, descobriu que cultivando plantas diversas entre os canteiros das verduras poderia diminuir a ação do vento sobre a plantação e ainda combater algumas pragas. “Aqui teve um tempo que o ar estava tão quente que queimou uma horta de cebola todinha. Aí, plantei ata, goiaba, mamão, bananeira e umas plantas ornamentais, que quebram o vento e deixam a terra molhada por mais tempo”, fala. Antonio emprega uma técnica de cultivo em que utiliza hastes flexíveis (cotonetes). Esquentada uma ponta e vedada com alicate, o canudo de plástico é furado no meio e colocado numa mangueira. Ao jorrar, a água cai da haste, pulverizando a horta, o que é mantém a terra molhada ao redor das hortaliças.
Comércio desenvolvido
“Não dá uma renda grande, mas a gente está comendo”, afirma, sobre o resultado da produção. No entanto, desde o começo, quando começou a vender as hortaliças no Centro de Caridade, na “sucatinha de moto” que possui, as coisas melhoraram. Impedido de continuar vendendo porque “os 'homi' (policiais rodoviários) começaram a dar em cima” e teve de parar, pois não possui habilitação para dirigir a motocicleta. Passou, então, a terceirizar o serviço.
Há sete meses, a produção média de 40 molhos de verdura colhidos diariamente começou a ser vendida por três pessoas contratadas por Antonio para percorrer Pedra Branca, Várzea Redonda, Várzea Comprida, Nambi, São Domingo e Pereiro, localidades próximas a Pató.
Além do negócio montado pelo próprio Antonio, o auxílio técnico do Esplar ajudou a vender as verduras para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o qual rendeu R$ 5,5 mil no ano passado. Isso sem falar na renda que consegue abastecendo três mercearias. (AOL)
Ensinamentos que aprimoram o jeito de ser
Madalena. Longe dos centros urbanos cearenses parece que a crise hídrica é menos gritante. Talvez o castigo ao longo dos anos foi tão severo que a existência de uma pequena fonte de água amenize toda a situação. Que o diga dona Auxiliadora Silva Lima, 52, que conta com apenas poucas horas de água na torneira por dia, mas, quando perguntada sobre a principal dificuldade para manter sua pequena horta produtiva e suas galinhas vivas no terreiro, aponta para o imenso trabalho feito por ela diariamente. “Em muitas coisas, eu sou homem e também mulher nesta casa, porque sou eu quem resolvo”, fala, lembrando que ainda tem a mãe, dona Alice, de 83 anos, “um irmão adoentado”, “um sobrinho acidentado” e a filha mais nova, de 15 anos, morando com ela.
Todos dependem, essencialmente, do poço profundo cavado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae) do município de Madalena, a 185 Km de Fortaleza, na comunidade Cajazeiras, onde vivem.
Por ser uma fonte comunitária, há um rodízio diário em relação ao uso do reservatório, o que faz dona Auxiliadora passar metade do dia sem água. Como plano de emergência, ela ainda tem uma cisterna de placa de 16 mil litros para consumo. É a chamada “democratização das cisternas” mencionada pelo presidente do Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, Marcus Venicius de Oliveira, algo que torna a situação no campo menos drástica que nas cidades.
Produção consciente
Dadas as condições, a agricultora desperta cedo para encher as vasilhas, os baldes e regar a horta que cultiva no pequeno quintal, garantindo a prosperidade dos pés de limão, mastruz, capim santo, malvarisco, manjericão, além de alfaces, cebolinhas e coentros. A plantação ajuda a sustentar a casa há cinco anos, com a venda dos molhos e também do suco verde que ela faz.
“Sou eu quem cavo, planto, faço a grota (buracos onde são cravadas as estacas da cerca), pego lenha. É trabalho demais”, fala, desta vez orgulhosa depois que aprendeu o valor e a importância do papel dela como mãe, dona de casa e provedora do sustento dos quatro filhos nas oficinas do Ater Mulheres. O projeto é realizado em seis cidades dos sertões de Canindé, a 119 Km de Fortaleza. Além de trabalhar na perspectiva feminista, o Ater Mulheres presta assistência técnica produtiva, tendo a agroecologia como principal base.
“A gente trabalha o quintal como um espaço social da família e com a formação política a partir do conhecimento delas (agricultoras), com foco na troca de saberes”, explica a zootecnista Andrea Sousa, uma das responsáveis do Esplar no acompanhamento em Cajazeiras.
Resistência herdada da mãe
Trabalho que, segundo destaca Andrea, foi mais fluido com dona Auxiliadora devido à história e ao aprendizado obtido pela agricultora. Depois de o marido a ter abandonado, sendo “trocada pela cachaça”, voltou para a casa da mãe com os quatro filhos e, ali, encontrou abrigo e sustentação. Isso porque a mãe dela, dona Alice, aos 83 anos, carrega consigo a força de quem já sobreviveu a secas sem poços profundos e cisternas.
Encontrada pela reportagem abraçada a pedaços de lenha, a rotina dela é tão intensa quanto a da filha, pois colhe a madeira diariamente em pleno sol escaldante do sertão, cuida das galinhas e, como toda sertaneja, dá conta dos serviços domésticos.
“Hoje, eu estou é bem, sossegada, na minha casa, tudo muito bem”, arremata, olhando para o lar que já anunciou como herança pra a filha, dona Auxiliadora, e lembrando do passado mais sofrido. (AOL)