Em São Paulo não é seca, é “crise de abastecimento”

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A literatura brasileira, sobretudo a modernista, ajudou a formar o imaginário do Nordeste como um grande cenário selvagem, de seca e de êxodo. Como repensar esse estigma em meio a uma seca no Sudeste, que gera até a possibilidade de que parte da população de São Paulo seja evacuada? Foi o desafio que propomos ao escritor cearense, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito. Na entrevista a seguir, ele ressalta que “se usa um eufemismo, 'crise de abastecimento' (em relação a São Paulo), para não se usar a amaldiçoada 'seca'”.

O modernismo, de certa forma, formou a imagem que o Brasil tem de si próprio. Nessa imagem, São Paulo é o lugar da vanguarda e o Nordeste um mundo ainda selvagem, principalmente por conta da seca, impressão realçada em livros como O quinze e A bagaceira. Você já pensou na implicância dessa polarização, num momento como esse de seca no Sudeste e, sobretudo, em São Paulo, quando se fala até de um possível êxodo urbano?

Quando você diz o “modernismo”, creio que está se referindo às artes, embora o conceito possa ser ampliado para a indústria, o comércio, o jornalismo, a sociologia e por aí afora. No resumo de um trabalho sobre as secas, feito por quatro estudiosos da Paraíba, eles escrevem que “As secas compõem uma realidade dominante e presente até os dias de hoje com a mesma intensidade do passado, representando um desastre social desde o século XVII”. Portanto, a seca no Nordeste do Brasil é real, sempre existiu, tornou-se nossa calamidade, fonte de expiação e inspiração. Mais de 40 grandes secas foram registradas desde os princípios de 1500. O homem nordestino foi moldado por elas e, consequentemente, o que ele produziu em romances, contos, poesia, pintura, música, cinema, literatura de cordel, poesia popular, artesanato, etc. Nossa literatura tem pouca força na representação da violência urbana, nem se compara ao que escrevem paulistas e cariocas, porque nossos dramas sociais mais fortes decorreram das secas e suas consequentes mazelas: fome, miséria, analfabetismo, subdesenvolvimento, violência no campo que, por sua vez, levou ao cangaceirismo e ao ciclo do cangaço. Só bem mais recentemente, com o abandono da zona rural e migração para as cidades, passamos a sofrer os mesmos males das metrópoles.

A historiadora cearense Kênia Rios escreve: “Por isso, até hoje, nosso retrato é o da seca. Foi através dela que o Ceará se integrou ao projeto nacional”. E também diz que nossa memória nacional passa pela sacralização da água. Uma sacralização de origem popular que faz os intelectuais enxergarem que nossa verdadeira riqueza mineral é a água. Com a escassez de água no planeta, que segundo Lévi-Strauss suportaria apenas dois bilhões de habitantes e não os mais de sete bilhões existentes, a sacralização virou o mantra de todos os seres humanos. Não somos apenas nós, os nordestinos, a levantar a cabeça ao céu e pedir que chova. Isso com certeza irá mudar, definitivamente, nosso olhar sobre nós mesmos, sobre os outros, e o olhar dos outros sobre nós.

O fato novo e escandaloso na história do Brasil é a crise de abastecimento d’água no Sudeste, principalmente em São Paulo. Anote que se usa um eufemismo, “crise de abastecimento”, para não se usar a amaldiçoada “seca”, embora todos saibam que a seca é um dos fenômenos naturais de maior ocorrência no mundo. Dizer que em São Paulo está ocorrendo uma seca de proporções calamitosas, daquelas de solo rachado como as imagens usadas na representação do Nordeste, é aproximar o Éden paulista, como foi imaginado pelos nordestinos, de nossa dura realidade. É reconhecer que no Sudeste também falharam na manutenção das suas barragens, nos projetos de tornar os rios perenes, no racionamento, na educação para o uso d’água, numa prospecção do futuro. Houve tristeza com essa realidade nova de São Paulo, inimaginável na fantasia popular, mas também certo comprazimento em ver os paulistas sofrerem pela primeira vez, minimamente, o que já sofremos há 500 anos. Enquanto lá as pessoas reagem contra um racionamento de horas, aqui no Recife, no último governo de Miguel Arraes, chegamos a um rodízio de até 11 dias sem água. Esse fato gravíssimo não ganhou a imprensa, não virou o tema principal dos noticiários porque a falta d’água para os nordestinos é crônica, sem solução, apesar dos inúmeros órgãos de controle das secas que já foram criados, como a SUDENE, e que serviram apenas para enriquecer os de sempre, gerando a Indústria da Seca.

A literatura moderna sempre colocou a cidade como um lugar de fuga, de salvação para quem precisava fugir do horror da seca, ainda que esses personagens fossem levados à marginalidade das favelas dos grandes centros urbanos. Estaríamos vivendo um momento de mudança radical de paradigma, quando são os próprios grandes centros urbanos que estão vivendo um momento de saturação, como questões de passe livre, de caos no trânsito e de colapso de recursos naturais?

Na verdade, desde o final da Segunda Guerra observou-se em todo o mundo o abandono do campo pela cidade, um crescimento desordenado dos grandes centros, surgindo bolsões periféricos de pobreza, populações marginais, sem acesso aos mesmos bens dos outros grupos privilegiados. Esse modelo pode ser visto não apenas no Brasil, mas também na Europa, onde imigrantes de ex-colônias buscam um lugar onde viver, fazendo uma trajetória ao contrário da que fizeram os antigos colonizadores. Na seca de 1877, metade da população de Fortaleza morreu de fome e epidemias, 120 mil cearenses fugiram para a Amazônia e 68 mil foram para outros estados, sobretudo São Paulo. Nos interiores sertanejos não havia água, nem a quem pedir, nem mesmo tambores de lixo que pudessem ser revolvidos à cata do que comer. A cidade oferecia essas oportunidades. A Amazônia oferecia a malária, mas tinha água e peixe em abundância. Esses migrantes nordestinos mudaram a feição do nosso país, fazendo dele uma nação integrada, por mais miseráveis, analfabetos e raquíticos que fossem. São Paulo é a cidade mais nordestina do Brasil. É curioso como os nordestinos que residem ali vivem o contraditório sonho de ficar e voltar.

Quando Fernando e Isabel de Castela expulsaram os judeus e os árabes da Espanha, não sabiam que estavam se desfazendo do melhor da cultura espanhola. É inconcebível São Paulo sem nordestinos, apesar dos movimentos de xenofobia que vez por outra estouram, parecido com o que se via em relação aos judeus na Europa, em cores amenas, é verdade. Essas questões têm se agravado com o crescimento das cidades brasileiras, aumentando a criminalidade, a violência no trânsito, o uso de álcool e drogas. E em movimentos desordenados, explosões na rua, como as de 2013. Mas a volta ao campo ainda não é significativa. No Nordeste, é uma saída pouco viável, por conta da insegurança. O sonho da contracultura e do movimento hippie, do retorno a uma vida mais simples, em contato com a natureza, não se concretizou. Apesar de ter sido frustrado o sonho da cidade grande, que se fortalecera no após Segunda Guerra. Para onde vamos agora? Essa é a grande pergunta.

Qual a sua reação ao perceber o quanto a palavra “seca” define o Nordeste, de forma pejorativa para os não-nordestinos?

Meu novo livro de contos, a sair pela Alfaguara, abre com uma narrativa que se passa na cidade de Iorque, na Inglaterra. Curiosamente, ele termina com uma digressão sobre a água. Lá pelo meio do livro, tem a história de duas velhas que moram numa casa centenária, transformada em museu. Na frente dela, homens trabalham nas obras de transposição do Rio São Francisco. A questão da água é bem presente nesse conto. Uma das personagens até faz o relato dos campos de concentração existentes no Ceará, durante as secas. Comecei afirmando que as secas são uma realidade presente e dominante. Minha literatura também se ocupa disso, quando é necessário. A seca no Nordeste existe, está aí, como agora existe em São Paulo, está aí. Talvez algum escritor paulista escreva um romance ambientado nessa atmosfera atual. É possível. Ontem, vi que uma agência de publicidade ofereceu aos seus funcionários um prêmio para quem criasse uma ideia brilhante sobre maneiras de economizar água. Três agentes ganharam, embora eu tenha achado as ideias chochas. Eles não se envergonham de reconhecer que há seca em São Paulo. Eu não me envergonho de reconhecer que o Nordeste, onde nasci e moro é seco e que essa realidade moldou a nossa cultura, o que somos, pensamos, sonhamos e fazemos. Quanto a serem pejorativos os de fora? Há os que não são. Houve um tempo em que essa constatação me incomodava bastante. Não aceito nenhuma forma de violência ou terror. Acho o preconceito e o deboche um subproduto da natureza humana, uma sem razão. Hoje, tenho algumas respostas para algumas perguntas e comentários. Quase nunca eu as uso porque não acho necessário usar. Pratico a política da paz. Mas não durmo no ponto, nem fico calado.

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