A Saga da Turma da EFA para apresentar o Auto da Dona Caroba

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Não sabendo que era impossível, foi lá e fez (Mark Twain)

Primeira apresentação da Turma da EFA / Foto: Eraldo Paulino

“Vocês tem certeza que vão dar conta? Essa não é uma daquelas peças que a gente improvisa aqui em nossas noites culturais. Vocês têm certeza que vão conseguir mesmo com todas as tarefas que têm pra fazer?”, desafiou Gorete Alves Araújo, diretora da Escola Família Agrícola  Dom Fragoso (EFA) quando nove educandas e educandos, divididos entre elenco e produção, na tarde do dia 21/09 disseram sim para o desafio de realizar o Auto da Dona Caroba. A obra é de autoria de Fram Paulo, e foi encenada por seis grupos em todo Ceará como parte da campanha “Não troque seu voto por água”. A ação foi animada por comunicadoras/es populares do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido (FCVSA).

Além da encenação da peça, foram realizadas rodas de conversa e distribuição de panfletos em várias localidades. A obra foi adaptada para um filme estrelado quase totalmente por comunicadoras/es do FCVSA. Assistir ao “O Auto da Dona Caroba em: Não troque seu voto por água”, dirigido pelo mesmo Fram Paulo, que é também comunicador popular do fórum, foi fundamental para motivar as/os educandas/os a abraçarem o desafio de realizarem o auto na microrregião de Crateús, onde nenhum grupo ainda havia encenado. O local escolhido foi o assentamento Bonifácio, em Tauá, no Sertão dos Inhamúns.

A EFA desenvolve a Pedagogia da Alternância, na qual as/os estudantes passam 12 dias na seção escola e o restante do mês realizando estágios e atividades com as famílias e comunidades. Estavam há cinco dias de encerrar a seção, cheias/os de tarefas pra finalizar e outras pra fazer em casa quando responderam positivamente ao desafio. “Os meninos estão empolgados. Todo intervalo que eles têm, ensaiam o texto”, comentou Gorete a um dia da noite cultural que seria realizada na quinta seguinte (25/09). Esta seria a apresentação piloto deles, como uma espécie de avaliação geral, proposta como desafio para elas/es próprias/os avaliarem realisticamente a possibilidade de realizar a apresentação em Bonifácio.

E quem viu o desempenho delas e deles, ainda com papel dobrado e disfarçado na mão para olhar algumas falas, não diria que tiveram apenas quatro dias pra ensaiar ,tendo apenas um script para cinco atores e atrizes, por conta de alguns contratempos que as/os impediram de ter acesso a mais cópias a tempo. Ana Éricka Mello, que interpretou a menestrel, Aiaza Torquato, que deu vida à heroína Caroba, Mário Jonas, que viveu o incrédulo Julião, Fagner Rodrigues, intérprete do corrupto comprador de votos e vereador Chicão, Felipe Monteiro, que viveu o Caiga Torta e Juliana Carvalho, a Anjo da Informação, impressionaram já na primeira exibição.

Colaboraram com eles Gabriela Mesquita, Gilvan Santana, Deuzimar Júnior e Thaynara Lima na produção, maquiagem e cenografia. Quem chegou ao auditório da EFA pra ver uma apresentação piloto, veria ali todo cuidado de quem não quer decepcionar. Mais do que isso, veria a primeira grande amostra de como não estavam dispostos apenas a apresentar uma peça, e sim de fazê-la da melhor forma que podiam. “Nós vamos conseguir passar a mensagem”, comentou Ana Éricka, após ela e o grupo que ela liderava ter superado o primeiro desafio.

Apresentação apoteótica no Assentamento Bonifácio | Foto: Eraldo Paulino

A jornada até o Bonifácio – Graças ao recurso disponibilizado pela Artigo 19, elenco e produção puderam se encontrar na última quarta-feira (01/10) em Tauá para ensaiar e fazer os últimos preparativos para a apresentação em Bonifácio. Jovens que viajaram até 250 km para se encontrarem, com objetivo de deixar tudo impecável para a grande noite. Já no primeiro dia, quando ficaram alojados na casa paroquial, foi aceito o desafio de realizar uma apresentação extra no assentamento Anjicos, naquele mesmo município. Lá também estavam em festividade.

Então essa seria a segunda das três apresentações do grupo, que a princípio realizaria apenas uma e olhe lá. Houve criança que chorasse de medo do desempenho  sempre regular e intenso de Felipe Monteiro ao interpretar o “Tinhoso”. Houve risadas, sustos e ao final a jovem trupe e a comunidade declararam satisfação pela exibição surpresa.

No dia seguinte era momento de vivenciar com moradoras/es do Bonifácio os mesmos desafios para chegar ao assentamento. Pegando um micro-ônibus lotado. Calor. Dividir espaço com pessoas e bagagens. Alguns cochilaram. A viagem de quase 1h nem demorou muito. Mesmo com a dificuldade por água que todo Sertão dos Inhamúns vivencia, por conta do quarto ano seguido com poucas chuvas, nada faltou na acolhida às/aos visitantes. Ao contrário, sobraram testemunhos de vida nas casas por onde a turma passou. Gente que tem na biografia a luta e a conquista pela terra, ex-vaqueiros que com muito sacrifício criaram até 12 filhos, mulheres que se submetiam a trabalhar até 16h no oitavo mês de gestação. Histórias de heróis e heroínas reais, como as que inspiraram Dona Caroba.

Já na sexta, dia 03, um testemunho em especial vale destaque. Dona Francisca Simplício de Jesus, conhecida por Fracinete, chamou algumas pessoas da trupe para merendarem na casa dela. A moradora não foi uma das pessoas responsáveis por acolher as/os visitantes, mas parecia querer dar a parcela dela de cuidado. Mulher de fala solta e muita simpatia, ela se emocionou contando como em nenhuma das grandes secas vivenciadas por ela faltaram gestos de solidariedade dados e recebidos. “Num tempo ruim desses aconteceu um milagre que eu nunca vou esquecer. Tinha em casa só uma panela de alumínio, que até hoje guardo. Nela cabia no máximo meio quilo de arroz. Só tinha isso e alguns ovos quando chegaram quatro trabalhadores pedindo comida. Além deles, havia mais o meu falecido marido e eu pra comer”, recorda.

Aflita, ela não conseguiu dizer não aos pedintes. Repartiu a comida. Para a surpresa dela, deu para cada um ficar satisfeito, inclusive ela. Não acreditando no que havia sido possível fazer com tão pouco, ela chorava de emoção quando a cunhada dela chegara da rua também pedindo comida. “Eu fui na panela  e ainda tinha comida, acredita? Deu pra ela matar a fome também”, se admirou Fracinete, com o olhar lacrimoso. Foi assim, inspiradas e inspirados por gente que se emociona por ter conseguido o pouco que tinha que as meninas e os meninos da EFA iniciaram os últimos preparativos. Mas ainda faltava o desfecho. A manteiga na tapioca. Faltavam os colegas de escola chegarem de Independência, onde fica sediada a instituição. Além do nervosismo por fazer tudo certo, havia aflição pela chegada dos colegas. “Se eles não vierem tudo bem”, comentavam alguns da trupe pra disfarçar o alto grau de “querência”.

O elenco da peça reunido | Foto: Eraldo Paulino

A Apoteose – Literalmente, no limiar da última hora, como em qualquer folhetim, no final tudo deu certo. Pouco antes da apresentação o ônibus cedido pela Secretaria Municipal de Educação de Independência trouxe as/os colegas das/os artistas. Era a motivação que faltava. Mesmo distantes de casa, ter gente da EFA na plateia era ter parte da família vendo o resultado do esforço de duas semanas. E a apresentação superou qualquer expectativa.

Os improvisos, a impostação das vozes, a interação com o público, a energia de cada interpretação e o fato de nenhuma fala ser esquecida foram coisas que não foram vistas com a mesma qualidade em nenhum ensaio. Quem vivenciou cada passo dessa saga sentiu-se mesmo vendo pela primeira vez algum dos autos do Suassuna. A gente sabe que no final tudo se resolverá, mas no fim é sempre melhor do que podíamos imaginar.

O recado foi dado, portanto. Alguns recados, na verdade. Foi dito pelos meninos através da peça que trocar voto por água é crime. É fruto da falta da informação, assim como da exploração da pobreza e da carência de recursos hídricos que devem ser superados com a mobilização popular. Foi também mostrado que basta dar oportunidade às jovens e aos jovens para eles mostrarem a que vieram. Disseram também que não precisam deixar de sorrir, de transgredir, nem tão pouco de externalizarem as próprias loucuras para provarem que são responsáveis com os próprios sonhos e com os sonhos da coletividade na qual se sentem parte. Porque ensaiaram, sim. Se dedicaram, sim. Mas “na parede da memória” dessa turnê, qualquer um dessas/es nove artistas estarão sorrindo ou fazendo alguma doidice na maioria dos retratos.

Não apresentaram a peça porque era obrigado. Fizeram porque se apaixonaram pelo filme, pela proposta, pelo desafio, pelo texto, pela causa. Como rezam os deuses do teatro de rua, falaram a língua da gente simples que as/os assistiu, no palco que pode ser em qualquer lugar, e com os exageros que a imaginação e a cultura popular permitem. E se alguém duvidar de alguma palavra escrita aqui sobre a saga das turma da EFA para apresentar o Auto da Dona Caroba em Bonifácio, certamente diremos: “Não sei. Só sei que foi assim” (citando Chicó, de o Auto da Compadecida).

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