Solução simples e de baixo custo é exemplo de convívio no Semiárido
Mossoró – Que o povo nordestino é antes de tudo um forte isso é sabido desde os tempos de Euclides da Cunha, autor da frase histórica. Mas essa característica – sozinha – não vingaria muito em condições tão inóspitas, como na atual seca que assola a região há dois anos consecutivos, se não fosse outro aspecto bem peculiar do povo dessa parte do Brasil: a inteligência.
Viver de uma forma economicamente sustentável, com mais qualidade de vida e garantia hídrica, sem prejudicar o meio ambiente. Tudo isso é possível, até mesmo em época de estiagem, nas dezenas de famílias da comunidade Caiana, zona rural de Campo Grande, município do interior do Rio Grande do Norte, a 120 km de Mossoró.
Em cada uma das humildes residências de lá é difícil faltar duas coisas: a parabólica e a cisterna de 16 mil litros para ter à disposição a “primeira água”, própria para o banho e cozimento. Garantida a segurança hídrica, fundamental para sobrevivência, é a vez da “segunda água”. A que vai servir para produzir na lavoura e matar a sede dos animais.
Todas são tecnologias simples, que requerem pouco conhecimento, e, sobretudo, são de baixíssimo custo de manutenção. A primeira água é também chamada de Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).
A segunda etapa é o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1 + 2)e pode ser realizada em diferentes tecnologias, dependendo ma maioria das vezes das condições geológicas do local: barragem subterrânea, cisterna-calçadão, cisterna-enxurrada, barraginha, bomba d´água popular, barreiro-trincheira e tanque de pedra são alguns exemplos.
Replicar
A experiência deu certo, mas Caiana não é a única localidade beneficiada. De acordo com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que desenvolveu e implementou as tecnologias, a entidade atua em municípios espalhados pelos dez estados brasileiros que abrigam a maior região semiárida do mundo, habitada por 22 milhões de pessoas.
Em julho, foi anunciada uma parceira que deverá potencializar essa iniciativa. A Rede Asa e a Petrobras irão utilizar quatro dessas tecnologias para beneficiar 100 mil pessoas em 210 mil municípios da região. Serão investidos cerca de R$ 200 milhões no projeto.
No Ceará, serão 2.016 famílias, sendo 1.457 cisternas-calçadão, 942 cisternas-enxurrada, 39 barragens subterrâneas e 478 barreiros-trincheira. “Passaremos a ter dez Unidades Gestoras Territoriais, ou seja, 30 municípios cearenses passarão a ser contemplados com as tecnologias já que cada UGT atua na zona rural de três cidades”, diz a coordenadora da ASA Ceará, Cristina Nascimento.
Estrutura
Mais de três mil entidades da sociedade civil trabalham junto à Rede Asa, com é conhecida a ONG. Em Caiana, praticamente todos os habitantes dependem desse tipo de captação e reserva de água, que transformou a vida de cada um deles.
Na opinião do coordenador executivo da ASA, Naidison Baptista, o Semiárido não é só miséria, êxodo rural, animal morto de fome, dentre outras mazelas comumente apresentadas como efeitos das secas. “Estamos mostrando que o nosso povo é capaz de conviver com esse clima, produzir riqueza. Basta ter conhecimento, terra e por em prática”.
Em Caiana
O dia 19 de abril deste ano entrou na memória das dezenas de famílias da comunidade de Caiana, na zona rural de Campo Grande, município do interior do Rio Grande do Norte. “Sangrou tudo o que é cisterna das casas daqui. Até hoje, estamos usando essa água”, conta o agricultor Antonio Nogueira de Paiva, que planta sorgo, milho e feijão. Em um trabalho com a Sertão Verde, entidade cadastrada à ASA, ele conseguiu, através da cisterna-calçadão, com capacidade para 52 mil litros de água, aproveitar o único dia de chuva forte que caiu por aquelas bandas do Nordeste neste ano.
O agricultor José Maria Costa Rodrigues e sua esposa Expedita Rodrigues também lembram da chuva e da água que mais de dois meses depois ainda permanece servindo à família. “Não perdi uma só criação de fome. Também não tive que vender nada”, conta o marido.
Fonte de renda
Mesmo com a severa estiagem, eles melhoraram a qualidade de vida da família, incrementando mais uma fonte de renda. “Eu estou fazendo R$ 1 mil de doce. Já comprei uma cozinha toda nova”, revela, com um sorriso de orelha a orelha, a dona da casa. Mesmo com esse renda extra, ela não larga uma emprego na casa de família, onde ganha R$ 100. “Gosto de trabalhar”, diz.
Até o jumento de Expedita, chamado ´Cabanho´, foi aposentado das viagens para buscar água no açude mais próximo, em Caiana. “A gente o soltou, mas quando o bichinho tá com fome ele volta. A gente não nega nada porque ele foi muito servidozinho”, fala. Eles utilizam a tecnologia barraginha, que retém a água de uma pequeno reservatório natural.
Não há milagre no sertão nordestino. O segredo é se adaptar às condições climáticas do lugar. É o que acredita Damiana da Silva. A agricultora utiliza a tecnologia bomba d´água popular. “Tinha um poço inutilizado. Depois que foi instalada a bomba mudou tudo. Antes era tudo muito ruim”, conta a agricultora de 39 anos, com a plena convicção de que as novas gerações não passarão pelas mesmas dificuldades que ela já viveu naquele mesmo lugar. “Esses meninos de hoje não sabem o que é caminhar para pegar água, que nem é limpa pra beber. Seria muito pior essa seca de agora se não houvesse esse poço”, completa.
Iniciativas vitoriosas
Na cozinha nova com a família Fernandes, Expedita mostra o doce que vem ajudando como nova fonte de renda. Uso da água é de forma inteligente pelo marido dela, José Maria, e a filha Oticiana. Já Damiana rega plantio com água retirada por bomba popular, enquanto Antônio capta recurso do calçadão de cimento que leva o que cai da chuva para a cisterna Fotos: Vlademir Alexandre/ Divulgação