Problema não é falta d'água
A cena de bois morrendo no Sertão Nordestino sempre foi uma das imagens mais dramáticas que representam os estragos da seca, seja nos filmes do cinema novo, na narrativa concisa de Graciliano Ramos, nos quadros de Portinari e até no noticiário. Para os defensores da agroecologia, porém, a imagem representa a inadequação da economia rural do Semiárido. Afinal, foi constatado que animais pequenos se adaptam melhor à região que a pecuária bovina. Quem percorreu a Caatinga nesta longa estiagem constatou que criadores de gado tiveram perdas maiores que caprinocultores.
“Grandes animais e grandes rebanhos exigem um imenso volume de água e muito alimento. Na criação de animais de pequeno porte o consumo de água é menor”, compara Neilda Pereira da Silva, coordenadora executiva da rede de ONGs Asa em Pernambuco. Os números comprovam: em média, um boi requer 53 litros de água por dia, enquanto o caprino, seis.
Exemplos como esse têm levado especialistas de várias áreas, inclusive do governo, a concluir que uma das saídas para o Semiárido está em adaptar a economia do campo às condições da Caatinga. Isso implica encarar a falta de água não como um problema, mas um aspecto que deve ser levado em consideração nas atividades agropecuárias da região. Em outras palavras: deve-se conviver com a seca e não combatê-la. E é justamente esse o lema da agroecologia, uma proposta de agricultura familiar que, ao contrário do que possa pensar, não se resume à produção de alimentos orgânicos.
“É a junção da agricultura com ecologia, e que se baseia em compreender como a natureza de determinado lugar funciona para adaptar a agricultura à ela”, conceitua Paulo Petersen, coordenador executivo da ONG AS-PTA. Dentro dessa visão é necessário entender como o bioma do Semiárido, a Caatinga, pode ser produtiva, desde que se utilize a tecnologia adaptada as suas condições climáticas. “Deve-se levar em conta que na região as chuvas são irregulares e pouco previsíveis. Além disso, há muita insolação e a água evapora com facilidade”, ensina Petersen.
Qual, então, a solução dos agroecologistas? Armazenar o precioso líquido que cai do céu. “Existe um conjunto de técnicas de armazenamento”, propõe Petersen (veja matéria sobre cisternas). Há ainda plantas da Caatinga que aproveitam melhor a água, além de alternativas de produção de feno com restos de culturas, que pode ser armazenado para alimentar o gado no período literalmente das vacas magras que é a seca.
BIODIVERSIDADE
A perspectiva agroecológica também encara o campo como um espaço onde o homem já alterou a natureza. “É também um local onde se deve desenvolver ações de produção, levando em consideração todas as formas de vida daquela área”, acrescenta Maria Emilia de Barros e Silva, supervisora do IPA (Instituto Agronômico de Pernambuco) na área de agroecologia.
Por essa razão, as soluções encontradas partem da defesa da biodiversidade e descartam a monocultura. Petersen explica que ao se plantar um único tipo de cultura, ocorre a salinização do solo, o surgimento das pragas e o consequente uso de agrotóxico. O aparecimento de insetos que atacam essas plantações, segundo o especialista, ocorre porque na natureza uma forma de vida ajuda a outra a sobreviver. Assim, a praga elimina a monocultura para restabelecer a biodiversidade e o equilíbrio ambiental.
Um equilíbrio que visa à sobrevivência do próprio homem. Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, já advertia que nos engenhos da época colonial havia falta de comida, porque só se plantava cana. “A monocultura, muitas vezes, não é de produção de alimentos e isso deixa as populações mais vulneráveis”, analisa Pertensen, ao destacar que a fome, contraditoriamente, é mais grave no mundo rural. “Setenta por cento da população sujeita à desnutrição no mundo está no campo.”
E a biodiversidade é própria da agricultura familiar, que produz uma variedade de frutas, verduras e legumes para vender e para o consumo. Fato que reforça a viabilidade da agroecologia no Semiárido. A região, de acordo com Petersen, concentra o maior contingente produtor dessa forma de cultivo. “São dois milhões de famílias.”
Mas a agroecologia não se resume ao combate à fome. Abrange também o respeito à diversidade social, seja pela eliminação da desigualdade de gênero, a partir de ações que promovam a autonomia econômica das mulheres, seja pelo respeito ao conhecimento de camponeses, índios e quilombolas. Afinal, a gente sertaneja não quer só comida. Quer comida e felicidade.
Governo incentiva a agroecologia
Tanto o governo estadual como o federal perceberam os benefício proporcionados pela agroecologia ao Semiárido a ponto de recentemente sancionarem leis de incentivo a este tipo de produção rural. As iniciativas foram comemoradas pelos setores que apoiam a agricultura familiar.
Em 18 de março último entrou em vigor a Política Estadual de Convivência com o Semiárido, que tem como objetivo estabelecer diretrizes para implantação de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável no campo. Também visa assegurar às populações da região os meios necessários para a conviver com as condições do Semiárido.
Um dos destaques da nova legislação é a criação de Bancos de Sementes Comunitários, nos quais será incentivada a armazenagem de sementes crioulas. Conhecidas como sementes da paixão, elas são obtidas a partir de um processo de seleção realizados pelos camponeses daquelas provenientes de plantas que mais se adaptam ao Semiárido. “Essas sementes são passadas de geração em geração. Trata-se de um costume realizado desde os primeiros quilombolas, índios e pequenos produtores e que em muitos lugares está quase extinto. A lei veio resgatar esse comportamento”, esclarece Maria Emilia de Barros e Silva, supervisora do IPA na área de agroecologia. A vantagem, segundo Emília, é garantir ao produtor uma semente adaptada sem alteração genética. Também não vai precisar adquirir exemplares de outras regiões e que podem não se adaptar ao Agreste e Sertão. O banco também vai armazenar sementes de planta medicinais da região, como a aroeira, que´ é considerada um anti-inflamatório natural.
Em nível nacional foi instituída pelo governo federal a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). O objetivo da lei, conforme consta no texto do decreto que a criou, é “integrar, articular e adequar políticas, programas e ações” em prol da produção orgânica e de base agroecológica. A intenção é contribuir para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população, “por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudáveis.”
Para colocar a política em prática, está sendo elaborado o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que tem a participação de representantes da sociedade civil e dos governos federal, estaduais e municipais. “A lei é importante para ampliar a experiência agroecológica no País. Ao colocar a agroecologia como política pública, a gente deseja que, dessa forma, seja uma política de Estado e não de governo”, espera Neilda Pereira da Silva, coordenadora executiva da Asa em Pernambuco. Antes da decretação da Pnapo, o governo federal já realiza ações para incentivar a produção sustentável. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), paga aos agricultores que optarem pelo sistema agroecológico ou orgânico um preço 30% superior ao oferecido aos produtos convencionais. Já o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), estabelece que 30% do valor de repasse recebido pelas escolas públicas seja destinado à compra de produtos oriundos da agricultura familiar, de preferência orgânicos.
Produzindo em plena seca
Nesta que é considerada a pior seca dos últimos 50 anos, tem causado surpresa o verde que se pode avistar da plantação algumas pequenas propriedades no Semiárido. Os donos dessas terras conseguiram manter a produção de frutas e hortaliças, além da criação dos animais. O segredo desses oásis em plena Caatinga é a existência de tecnologias simples e eficientes de armazenamento de água da chuva oferecidas pela ASA (Articulação Semiárido Brasileiro), rede que integra mil organizações da sociedade civil.
Sua atuação é feita a partir de dois programas. Um deles é o Um Milhão de Cisternas (P1MC), cujo objetivo é levar água potável para beber e cozinhar para cerca de cinco milhões de pessoas em todo o Semiárido. O abastecimento é realizado com a construção de cisternas com capacidade de 16 mil litros.
O outro programa chama-se Uma Terra e Duas Águas, destinado a famílias que já têm acesso à água potável e passam a ser beneficiadas com tecnologia para armazenar a chuva para produção de alimentos. Ao todo são sete tipos de sistemas. Na propriedade da agricultora Eliene de Oliveira, 45 anos, localizada em Araripina, foram instaladas a cisterna de 16 mil litros e outra denominada calçadão, que armazena 52 mil litros. Trata-se, como o próprio nome sugere, é de um calçadão de cimento de 200 m², construído sobre o solo, por onde escorre a água de chuva que chega à cisterna por meio de um cano. “O tamanho do calçadão foi pensado para garantir o enchimento da cisterna mesmo em anos em que a precipitação seja abaixo da média. Assim, é possível garantir que chegue a sua capacidade total com apenas 350 milímetros de chuva”, explica Neilda Pereira da Silva, coordenadora executiva da ASA em Pernambuco.
Graças a essa tecnologia, Eliete deixou para trás o tempo em que levava recipientes num jumento e andava quilômetros para buscar água. “Hoje, a seca passou e nem deu pra perceber”, comemora, enumerando, orgulhosa, a produção de seu pomar e horta: tenho pé de manga, graviola, acerola, umbu que dão tanto que faço doação com os vizinhos. E planto pimentão, alface, quiabo, cebola, repolho, couve… O ano todo tem comida”, conta a agricultora, que vende para a comunidade onde vive as hortaliças e doces que elas mesma faz com as frutas irrigadas com a água da cisterna.
Mas não é apenas água que agricultores como Eliete recebem. Eles passam por uma capacitação para aprender a gerir esses recursos hídricos. “Também discutem sobre as alternativas para produzir tendo a agroecologia como fator fundamental para a convivência com o Semiárido”, explica Neilda Pereira da Silva, coordenadora executiva da ASA em Pernambuco.
Quase 500 mil cisternas foram implantadas pela ASA, que mantém parceria com o governo de Pernambuco e com o Ministério do Desenvolvimento Social. Recentemente a Petrobras tornou-se parceira para realizar 20 mil instalações de segunda água (para produção de alimentos).
O sucesso desse projeto, que levou milhares de famílias a não depender mais de carros pipa, confirma um dos princípios da agroecologia: considerar o saber dos camponeses. Afinal, foi um agricultor sergipano que desenvolveu a cisterna de 16 mil litros. “Ele concebeu a ideia ao migrar para São Paulo, onde foi trabalhar na construção civil e conheceu as piscinas pré-moldadas”, conta Neilda.