O direito de ir e vir e a democracia “cidadão de bem”
Na decisão judicial do juiz federal Magnus Delgado com respeito a proibição da interdição da BR-101 para as manifestações políticas do MST e da #revoltadobusão, há algo de mais opaco que eu gostaria de analisar. Sem atenuar a crença autoritária segunda a qual situações de conflito podem ser resolvidas de “cima pra baixo”, sem diálogo ou debate, tão somente por meio da canetada, da “sentença” e do “cumpra-se”, manifestamente presente na decisão do juiz, existe nela uma outra dimensão, mais subjacente, que é urge destacar.
O pedido judicial formulado pelo Seturn coloca em discussão uma típica situação de conflito entre direitos, uma “colisão de direitos”; por um lado, o direito de ir e vir, e, por outro, o direito à manifestação. Ambos são direitos fundamentais, sem hierarquia legal e nem solução no ordenamento jurídico que justifique a escolha de um em detrimento do outro. Nessas situações, cabe ao juiz analisar segundo os dados contidos no processo e as circunstâncias singulares de cada caso. A preferência pela preponderância de um sobre o outro não significa que em todos os demais casos se adotará a mesma decisão ou os mesmos princípios e critérios que balizaram o juiz naquela decisão específica. Porém, não são apenas os elementos técnicos e circunstanciais que entram na interpretação e balizam a decisão do juiz.
As concepções normativas e pressuposições políticas e morais estão inevitavelmente presentes, e atuam fortemente, ainda que de maneira irrefletida e inconsciente. O que está em jogo não são apenas questões técnicas e jurídicas, mas concepções políticas e morais também. É esse ponto que gostaria de destacar e problematizar. A decisão do juiz federal, a sua escolha e interpretação sobre a prevalência do direito de ir e vir sobre o direito de manifestação revela concepções valorativas acerca de como deve ser uma sociedade democrática e acerca do que é ou dever ser um cidadão numa democracia. Portanto, uma noção de sociedade política numa democracia e uma noção de cidadania. É importante ressaltar que essa concepção de sociedade e cidadania ultrapassa o juiz, ela coloniza vastos setores da sociedade, em particular os comprometidos com a conservação do status quo.
E que concepções são essas? Ora, afirmar a preponderância do direito de ir e vir sobre o direito de manifestação política significa afirmar que uma sociedade democrática define-se, em última análise, por um convívio social pacífico, pouco afeito a conflitos, dissensos políticos. A ordem deve sempre prevalecer sobre o conflito. Em outras palavras, o que temos é a ideia de uma sociedade definida pela apatia política e pelo trivial e rotineiro da vida, na qual cada indivíduo resume-se a busca do seu bem-estar e autorrealização sem causar prejuízo ao outro. Os cidadãos devem unicamente se preocupar com o trabalho,pagar impostos, votar, fazer compras, formar família e voltar pra casa. O bem-estar e a rotina da vida são invioláveis e estão acima de qualquer outra aspiração. Nem a emancipação ou a justiça social, nada que exija luta e revele as fissuras da sociedade deve se sobrepor a rotina casa-trabalho-casa. O direito de ir e vir, sagrado na fundamentação do juiz, é a garantia fundamental que assegura a continuidade dessa rotina inviolável para atingir o bem-estar individual e manter a cidadania nos limites do seus rituais; trabalhar, pagar imposto e votar.
Tal concepção de sociedade e cidadania exclui os aspectos constitutivos e inerentes à democracia, isto é, aquilo que autores como Alexis Tocqueville, Hannah Arendt e Claude Lefort defenderam como sendo os elementos vitais da democracia e sem os quais esta não poderia sobreviver como uma forma específica de sociedade. A democracia, dirão esses autores, encontra o seu sentido pleno na tensão, no conflito, no dissenso, na divergência que nascem da ação e do debate em torno da conquista e expansão de direitos. Sem isso, uma democracia paralisa, congela, deixa de se reinventar. Ela abre mão do seu caráter de indeterminação, como diria Lefort. É por isso que, acerca da democracia, Norberto Bobbio sustenta que “o estar em transformação é o seu estado natural: a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo”.
Nessa segunda concepção, os cidadãos são indivíduos politicamente ativos que se engajam em algo mais do que a busca individualista do seu próprio bem-estar; preocupam-se com algo mais do que “não incomodar o próximo”. Eles lutam por um tipo de cidade, por direitos, por criar novos fundamentos da vida política e social. E, com isso, criam irremediavelmente conflitos, discussões, tensões, pois projetos, interesses e visões de mundo contrários inevitavelmente se chocam. Ser cidadão é mais do que ser trabalhador, ter família, consumir e ir descansar em casa para, noutro outro dia, repetir o mesmo que se fez nos dias anteriores. Ser cidadão, aqui, é intervir, participar, modificar, ou seja, ser uma agente nesta que é, como diria Lefort sobre a democracia, a “sociedade histórica por excelência”.
Que a primeira das concepções tem se revelado e destacado na decisão do juiz federal não é, de modo algum, estranho ou surpreendente. Trata-se obviamente de uma concepção conservadora, que desincentiva e difama qualquer iniciativa de mobilização política, de questionamento, de ação que instile conflitos e antagonismos. Por vias diferentes, a democracia “cidadão de bem” da decisão judicial atinge o mesmo objetivo da criminalização dos movimentos sociais a que a polícia militar e a imprensa tradicional local fomentam, qual seja: enfraquecer a mobilização e a reivindicação política autônoma.
Alyson Freire
Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais – UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar. Contato: alyson_thiago@yahoo.com.br