Convivência com a seca demanda investimentos em pesquisa e tecnologias sociais

Compartilhe!

O Semiárido brasileiro está enfrentando a pior seca registrada nos últimos 50 anos. De acordo com o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN), ligado Ministério do Meio Ambiente, 1.482 municípios estão em área suscetível à desertificação em nove estados, sendo oito deles nordestinos – Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Uma área que corresponde a 15,7% do território nacional e onde vivem cerca de 31,6 milhões de pessoas.

Pesquisa em conjunto da USP com a Secretaria da Agricultura de Pernambuco revela que 17% das propriedades rurais do sertão e do agreste nordestinos fecharam as porteiras por causa da seca e 50% dependem de carro-pipa para conseguir água. Em Pernambuco, por exemplo, o rebanho bovino foi reduzido a quase a metade: de 2,1 milhões de cabeças de gado, 200 mil morreram, 300 mil foram transferidas para outras regiões e 500 mil foram abatidas precocemente.

Para o professor de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB), Eraldo Matricardi, a falta de orientação à população é o principal obstáculo ao fim dos grandes transtornos por longos períodos de estiagem. Ele defende que técnicas simples sejam ensinadas às populações para que possam conviver melhor com esses períodos de estiagem. Para Eraldo, as políticas públicas de desenvolvimento para a região devem considerar também o conhecimento empírico do sertanejo e o fortalecimento das instituições de pesquisa que atuam na região. Confira a entrevista.

Rede Mobilizadores – É possível a convivência com a seca? O que é necessário para isso?

R.: É possível conviver com a seca e os habitantes do Semiárido brasileiro já provaram isso, pois ocupam aquela região por muitas décadas. Contudo, é uma tarefa muito difícil e uma luta incessante pela sobrevivência, especialmente durante períodos críticos ou de secas extremas. Entendo que tal convivência só tem sido possível pela habilidade e versatilidade do nordestino em lidar com tais situações, a partir de estratégias e soluções locais, que com apoio externo poderiam ter ainda maiores sucessos.

Rede Mobilizadores – Além das políticas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, que outras políticas públicas deveriam ser implantadas para melhorar as condições de vida no Semiárido brasileiro?

R.: As principais políticas públicas deveriam se concentrar no apoio e subsídios às iniciativas isoladas ou comunitárias, levando em conta o conhecimento empírico do sertanejo, observando as características e peculiaridades locais. É necessário também políticas de desenvolvimento considerando o planejamento “de baixo para cima”, com maior inserção e participação social. Vários projetos megalomaníacos não tiveram sucesso na sua implementação, pois representavam propostas pouco ajustadas ao conhecimento e cultura local e, muitas vezes, pouco adaptadas ao ambiente físico da região.

Rede Mobilizadores – Em entrevista recente, você cita que a falta de orientação à população é o principal obstáculo ao fim dos grandes transtornos por longos períodos de estiagem. O que defende como sendo mais eficiente no combate à seca no Semiárido nordestino?

R.: Primeiramente, entendo que as iniciativas para o combate a seca devem envolver as comunidades envolvidas ou interessadas de forma bem intensa e apropriada. A busca e o desenvolvimento de alternativas para combater a seca devem ser feitas de forma bem realística e tomando em conta a necessidade de “internalização” e aceitação por parte dos envolvidos. Vale lembrar que muito se aprende com os sertanejos e outras pessoas que habitam esta região, especialmente na forma de lidar com a seca. Depois, é preciso o fortalecimento das instituições de pesquisa que atuam na região. É preciso também a melhor integração entre pesquisa e extensão. Por fim, é necessário maior investimento público em infraestrutura e crédito subsidiado, levando em conta as características da região. Não acredito em grandes projetos que envolvem empreiteiras que chegam, constroem e vão embora, deixando obras com difíceis tecnicalidades de operação e que só servem para “engordar” ainda mais a indústria da seca no Brasil.

Rede Mobilizadores – Poderia citar algumas tecnologias sociais de baixo custo e fácil implantação que, se disseminadas sistematicamente, apresentariam uma melhora no quadro de convivência com a seca?

R.: Existem várias técnicas de irrigação de baixo custo e consumo de água. Muitas técnicas foram desenvolvidas e adaptadas e poderiam contribuir com a melhor convivência com a seca. Por exemplo, a irrigação com potes de barro e garrafas pets, a construção de pequenas barragens para o aproveitamento da água das chuvas, ou ainda cisternas rurais e barragens subterrâneas construídas de acordo com as características de relevo local. Também é possível o desenvolvimento genético de plantas e animais melhor adaptados às condições do Semiárido, o dessalinizador que é uma técnica muito útil para pequenas comunidades, mas requer cuidados especiais em sua operação e manutenção. E tantas outras, mas penso que o mais crucial é o envolvimento e participação das comunidades, caso contrário, as chances de insucessos das alternativas propostas são muito maiores.

Rede Mobilizadores – Quando falamos de um mesmo bioma, o que vale para um município, vale para outros? Por quê?

R.: Mesmo quando inseridos num mesmo bioma, os meios físico, biótico e socioeconômico podem variar substancialmente entre dois municípios. Por isso, as características locais em cada município devem ser devidamente observadas para quaisquer planos de intervenção. Por exemplo, as variações edafoclimáticas*1 e de relevo entre dois municípios podem definir as suas características e condições para o uso e manejo do solo.

Rede Mobilizadores – Que estratégias deveriam ser adotadas para que estas tecnologias sociais fossem repassadas aos sertanejos?

R.: É necessário que nas diferentes etapas de desenvolvimento das tecnologias haja participação e envolvimento das comunidades locais, em especial dos sertanejos. É preciso informar os propósitos antes de qualquer intervenção local, depois desenvolver estratégias ou formas participativas, deixando-as acessíveis e de fácil adoção. O repasse de tecnologias deve acontecer de forma automática durante o processo de desenvolvimento ou adaptação de cada tecnologia.

Rede Mobilizadores – Os períodos prolongados de seca desencadeiam crises de produção e em geral agravam os problemas de segurança alimentar. O que pode ser feito a médio e longo prazos para enfrentar esses problemas? Há alternativas possíveis?

R.: O problema maior relacionado à seca é que muitas comunidades trabalham em seu limite extremo e não têm nenhuma margem para perda com as secas. Ou seja, qualquer redução na produção, mesmo que pequena, pode levar ao colapso de muitas pessoas e sistemas produtivos locais. Assim, é preciso reduzir esta vulnerabilidade da população de mais baixa renda, promovendo a implantação de sistemas produtivos diversificados, com tecnologias genéticas mais adaptadas às condições locais. É preciso garantir a agricultura familiar de subsistência, mas também é preciso ampliar a produção com o investimento em infraestrutura, armazenamento, comercialização, assistência técnica e crédito agrícola para possibilitar a melhor competição no mercado. E, do mesmo modo que se investe na pesquisa da agricultura de commodities*2, também deveria se investir na agricultura de subsistência e de produção familiar.

Rede Mobilizadores – A agricultura irrigada é uma alternativa viável para assegurar a produção na região semiárida?

R.: A irrigação é uma alternativa de produção no Semiárido, mas deve ser utilizada com cautela. Portanto, para a sua adoção e incentivo, é necessário verificar a demanda social, a quantidade de água necessária e as características, potenciais e limitações em nível local e regional para a região.

Rede Mobilizadores – Pode-se dizer que as mudanças climáticas têm influência sobre a seca no Semiárido?

R.: As mudanças climáticas globais foram previstas por modelagem do clima no futuro, baseado no cenário de aquecimento global observado com maior severidade a partir dos anos 70. Neste contexto, é previsto que as mudanças climáticas globais influenciem a ocorrência de eventos extremos, aumentando a frequência e intensidade, podendo ocorrer secas mais frequentes e prolongadas. As regiões centrais e do Semiárido brasileiro apresentam maior probabilidade de mudanças no padrão projetado de precipitação e temperatura. São, portanto, as regiões que aparentemente mais sofrerão as consequências das mudanças climáticas no Brasil, como a seca.

—————————–

*1 – Edafoclimático tem a ver com a relação planta-solo-clima para plantio. Os fatores edafoclimáticos são referidos como os mais importantes não só para o desenvolvimento das culturas, como também para a definição de sistemas de produção.

*2 – Commodities são matérias-primas ou produtos que apresentam grau mínimo de industrialização.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *