Resiliência das Cisternas frente às Tempestades

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Uma das notícias mais chocantes nos últimos meses, fora a nova edição de catástrofes naturais pelo país afora, é a mudança de orientação da política de implantação de cisternas no semi-árido brasileiro. O governo federal, na esteira da revisão de convênios com organizações da sociedade civil, visto que vários escândalos envolvendo articulações nefastas com ONGs vieram à tona em 2011, resolveu mudar os rumos de um programa que, no seu nascedouro, havia estipulado a meta de implantar 1 Milhão de Cisternas nessa região brasileira sempre castigada pela falta de água. Duas decisões bastante significativas têm trazido impactos extremamente negativos no âmbito dessa intervenção socioambiental: a revisão do convênio entre a Articulação para o Semi-Árido (ASA), um coletivo de organizações não governamentais, e o governo federal e a decisão de adquirir cisternas construídas e instaladas por empresas privadas.

Meu envolvimento com esse programa se deu para além do mero conhecimento através da mídia ou de estudos produzidos por terceiros. Tive a grata oportunidade de desenvolver uma pesquisa sobre articulações tri-setoriais, ou seja, parcerias em projetos sociais e ambientais que envolvem simultaneamente ONGs, órgãos governamentais e empresas, financiada pela Fundação Avina no período de 2006 a 2008. No âmbito dessa investigação, visitei a região de Feira de Santana na Bahia e pude melhor entender várias peculiaridades do sonho de implantar cisternas para populações em vulnerabilidade social no semi-árido brasileiro. Cabe lembrar que se trata de uma realidade complexa e que nos desafia com várias dimensões e possibilidades de análise, estando longe de minhas ambições compreender tal programa em todas as suas peculiaridades ambiental, social, política, econômica, cultural e de saúde pública. Apesar disso, não resta dúvida que as duas decisões governamentais são totalmente equivocadas e trarão inúmeros prejuízos para as populações que padecem com a dificuldade de acesso a água na região.

No que tange à construção de parcerias com organizações da sociedade civil, é compreensível que medidas de austeridade e transparência sejam implementadas, sobretudo após recorrentes escândalos envolvendo conexões entre o governo, as empresas e o Terceiro Setor. No Brasil, muitas ONGs se transformaram em braço instrumentalizado do discurso politicamente correto e das intervenções e das incursões politicamente incorretas em busca do dinheiro público ou privado destinado a projetos sociais e ambientais. No entanto, nada justifica que sejam suspensos o repasse de recursos a todas as organizações não governamentais que detém convênios com o governo, nem tampouco que se misture “alhos com bugalhos” no caldeirão do multifacetado Terceiro Setor.

O universo das ONGs no Brasil, assim como na maioria absoluta dos países democráticos, é bastante heterogêneo e diversificado, abrigando diferentes ideologias, formas de ação técnica e política, capacidade de gerar resultados e estruturas organizacionais. Não passa de mero populismo, suspender convênios, como que desejando dar uma resposta imediata e radical para a mídia e a opinião pública, sempre indignadas com os escândalos de corrupção no país, mas pouco capazes de dar passos cotidianos e firmes rumo ao efetivo controle social dos investimentos realizados com dinheiro público.

No caso do programa 1 Milhão de Cisternas, apelidado de P1MC, esse controle social vinha sendo sistematicamente aprimorado, gerando aprendizagens tanto para o poder público, com sua lógica burocrática e austera de controle de recursos investidos e que assim deve ser, quanto da parte das ONGs que compõem a ASA, aproximadamente 700 organizações. Prova disso é que pude constatar em minha pesquisa avanços importantes na gestão e no controle orçamentário interno, desenvolvidos pelos diferentes comitês de gestão do programa criados pela ASA. Uma estrutura de governança interna complexa, envolvendo diferentes ONGs de variados portes, que se desdobrava desde a cúpula diretiva do programa até os rincões das pequenas cidades e lugarejos atendidos pelo P1MC foi desenvolvida a duras penas, com idas e vindas, e inclusive com punições para desvios ocorridos.

Essa complexa estrutura de gestão do P1MC tinha tudo para se tornar burocrática, lenta e inflexível, visto que interagia com os órgãos de fiscalização do Estado, sempre organizados e preparados para operar dentro de parâmetros técnicos precisos, mas estreitos, com vistas a garantir austeridade e mérito no uso de recursos públicos. Esse é um dos graves problemas, pelo mundo afora, quando o Estado se relaciona com ONGs, financiando projetos e intervenções sociais: a sociedade civil passa a mimetizar formas de atuação típicas do Estado, perdendo sua flexibilidade, inventividade e capacidade de inovar e renovar a cidadania e a democracia. Mas, não foi isso que pude constatar na ponta desse projeto, nas cidades e vilarejos que pesquisei na Bahia.

Região sistematicamente visitada pela CGU e pelo TCU, o semi-árido da região de Feira de Santana abriga uma série de pequenas associações de trabalhadores rurais, muitas delas tendo a frente lideranças femininas. Imaginava encontrar, como é bastante comum entre gestores de empreendimentos sociais locais, financiados por grandes agências e órgãos de cooperação, uma posição de reclamação, resistência ou mesmo de resignação fatalista frente às exigências dos financiadores. O que pude constatar foi a capacidade de prestar contas, dentro dos moldes do que a CGU e o TCU exigiam, mas também a persistência em reinventar formas de controle social que não se limitavam ao controle estatal, diga-se burocrático, dos recursos investidos, mas também à busca do controle social e comunitário. Longe de ser uma unanimidade, encontrei várias reclamações da população local quanto ao programa, mas nenhuma delas ligada à malversação dos recursos, sendo que muitas reproduziam lógicas ainda muito presentes na cultura política brasileira, trazendo à tona anseios clientelistas, paternalistas, nepotistas e assistencialistas da própria população em situação de vulnerabilidade social e ambiental.

A aquisição de cisternas fornecidas por empresas especializadas no acesso à água, outra decisão do governo federal, não se resume ao fato dos materiais utilizados pelas empresas contratadas serem de menor durabilidade, como vem se afirmando, mas também porque a construção de cisternas idealizada e implementada pela ASA através do P1MC nunca se resumiu a dar a água aos que dele necessitam. A água precisa ser conquistada pelas populações em situação de vulnerabilidade, como direito e conquista comunitária de um bem que é público por definição, visto que é essencial à vida humana. Só assim pode-se romper um ciclo perverso do coronelismo político construído em torno da “indústria da seca”. Por isso é que o programa se baseava na construção comunitária de cisternas, na suplementação de financiamento via microcrédito, no fortalecimento das dinâmicas de capital social nas comunidades, sobretudo aqueles processos liderados por mulheres, e no fortalecimento das ONGs democráticas em seu diálogo independente com os governos local, estadual e federal.

É essa realidade que traz às cisternas construídas de forma compartilhada uma capacidade de resiliência, ou seja, de resistência, que não é meramente técnica ou relacionada aos materiais empregados em sua construção, mas é fundamentalmente social. Essa também é uma forma de controle social muito mais dinâmica e proativa do que os necessários, mas não suficientes, mecanismos de controle governamental sobre investimentos públicos. Várias são as perdas com a mudança de rumos do programa.

Mas, daquela terra semi-árida, trouxe muitas lições das pessoas que por lá me ajudaram a conseguir o título de Doutor em Administração (a pesquisa se transformou em minha tese de doutoramento pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo no ano de 2008). Essas lições, sem ser demagogo e piegas, me fizeram um cidadão melhor, capaz de compreender um pouco mais a mistura de gana, serenidade, fé e compromisso com um mundo justo e sustentável que mulheres como a educadora rural, D. Tereza, muito bem representa. Essas batalhadoras e batalhadores do semi-árido têm escrito novos sentidos para os antológicos versos de Gil, “traga-me um copo d`água, tenho sede e essa sede pode me matar…”, fazendo por merecer mais e melhores decisões governamentais. E são essas pessoas e as ONGs que construíram que, tenho certeza, tendo verbas ou não do governo federal, farão as verdadeiras cisternas resistirem a todas as tempestades, que no semi-árido brasileiro nunca foram só naturais, mas também dos “homens e seus podres poderes”.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da PUC Minas

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