IRPAA, Viver no Semiárido é aprender a conviver
Falar de Nordeste, Semiárido ou Sertão nos leva a pensar em uma única coisa: SECA! As imagens do solo rachado, sol escaldante e animais famintos aparecem quase que automaticamente em nossos pensamentos. Com o compromisso de desmistificar essa visão superficial e falsa, divulgada pela grande mídia e sustentada pelo sistema capitalista, organizações como o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) assumem a tarefa de mostrar à sociedade que o Nordeste é um espaço diverso, produtivo e apropriado para a reprodução da vida.
A região do Nordeste Brasileiro é habitada há mais de 50 mil anos. Nesse período, o planeta sofreu uma glaciação, causando uma mudança natural no clima da região: um nordeste úmido se transforma num nordeste árido. Mas, apesar dessa mudança, a área continuou sendo multiplamente habitada.
A contradição da vida no Semiárido nordestino tem seu marco com a invasão europeia, nos anos de 1500. Os povos nativos têm sua cultura e modo de vida retalhadas e substituídas por uma condição de escravidão e submissão. Nesse período, se instala na região um dos maiores feudos já vistos no mundo: da família Dias D'Ávila.
As terras sertanejas foram invadidas por uma pecuária extensiva, à custa da expulsão e dizimação dos povos tradicionais. Com a crise do gado, e depois de devastada grande parte da vegetação natural, o feudo se divide em fazendas que dão origem a vilas e cidades. Surgem os coronéis, figuras marcantes que exercem controle político, ideológico e financeiro sobre toda a região. Resultado: de um lado, uma grande massa sem acesso à terra e aos direitos básicos; de outro, uma minoria que conserva os recursos naturais e o poder político durante gerações.
O Estado encara o camponês nordestino como uma sub-raça, que não tem capacidade de se apropriar de tecnologias e viver com qualidade de vida no Semiárido. Depois da invasão dos Dias D'Ávila, nunca se pensou o Nordeste como um espaço de pequenos proprietários; outro desafio é a titulação das terras, que a maioria dos camponeses não tem, estando, portanto, suscetível à desapropriação pelos grileiros e os seus grandes projetos.
Segundo Moacir dos Santos, membro da equipe do IRPPA, a vida do povo sertanejo antes da invasão europeia era equilibrada. Viviam da Caatinga e dela tiravam todo o sustento. Nesse período, o Nordeste já era uma região árida. A perda de qualidade de vida do povo nordestino tem a ver com a implantação de um modo de produção marcado pelo latifúndio, pecuária extensiva e destruição cultural. A falta de água e a fome não são questões da natureza, mas sim fenômenos políticos e sociais.
O Semiárido tem 1 milhão de km², área equivalente à França e Alemanha juntos. Neste território diverso nunca foram criadas políticas adaptadas à convivência com o clima. A educação das escolas é baseada em livros de outros estados e os projetos de assistência técnica vêm de outras regiões, ou seja, o Nordeste segue sendo invadido. Foi assim que se criou a falsa concepção de que a causa da Seca no Sertão é a pouca quantidade de chuva, como se não existissem tecnologias possíveis de captar e guardar os 500 mm de água que em média caem sobre o solo sertanejo.
O IRPAA nasce da necessidade de aprender a conviver com o semiárido
O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada tem sua sede em Juazeiro-Bahia e contribui efetivamente em sete municípios municípios da Bahia, abrangendo centenas de camponeses e camponesas. Pontualmente o IRPAA atua também em outros municípios do Semiárido, além de participar de redes e articulações com abrangência nacional.
O IRPAA tem seu nascedouro há 20 anos nas Comunidades Eclesiais de Base, no sindicalismo combativo e no sentimento de pertença e luta pela terra de cada nordestino. Uma série de associações e comunidades encontraram um desafio enorme em produzir no Semiárido, fazendo uso de técnicas inapropriadas que não ofereciam resultados, criando uma condição aparente que o Semiárido é improdutivo. Em contraposição a isso, se cria esta instituição para se discutir essa forma apropriada de viver no Semiárido.
O trabalho do IRPAA está centrado na ação política e pedagógica, reafirmando o sujeito do sertão, resgatando o processo de formação cultural, estudando e compreendendo o espaço e clima semiárido e por que o sertanejo se encontra nessa condição social “quem sou, onde estou, por que estou”. O trabalho do instituto busca primeiramente desmistificar a imagem que o sistema criou do Semiárido, tanto para quem está aqui quanto para quem está fora, a imagem de impossibilidade de vida no nordeste que é falsa.
Moacir retrata que a realidade do Semiárido é negada pelo estado e que o bioma caatinga é riquíssimo, mas não é compreendido. “As plantas da caatinga desenvolveram mecanismos de reserva de água, essa é a lição que temos que aprender (…) só 4% das terras do Semiárido tem a condição real de se relacionar: solo fértil e irrigação, e mais 16% das terras podem desenvolver agricultura com a chuva, os outros 80 %, como todas as áreas áridas do planeta, tem perfil natural de extrativismo e pecuária de pequenos animais, isso nunca foi levado em conta”, relata ele. O Nordeste é invadido pelo gado que consome 10 vezes mais comida e água do que um bode, e entupido de plantios de outros biomas enquanto temos um vegetação riquíssima apropriada a colheita de frutos para agroindustrialização.
A luta do IRPAA junto às comunidades sertanejas se passa em quatro eixos principais: ÁGUA; TERRA; EDUCAÇÃO; PRODUÇÃO. Além disso, políticas públicas, gênero, juventude, meio ambiente e comunicação são eixos transversais considerados indispensáveis à difusão e implementação da proposta de Convivência com o Semiárido. A garantia da terra é defendida, entendendo-a como espaço de reprodução de vida, uma vez que pouquíssimas terras dos camponeses são tituladas, e grande parte é sem terra. O IRPAA busca também potencializar o desenvolvimento de uma estrutura hídrica apropriada, voltando-se principalmente para a captação e armazenamento da água da chuva e valorização dos mananciais.
É preciso potencializar o período verde do Nordeste, guardando água e alimento, para as pessoas e animais, através de cisternas, poços, aguadas de acordo com a realidade do povo. Os projetos governamentais não levam em conta a realidade do sertanejo, como o caso da distribuição de cisternas de plástico que são mais caras que as de alvenaria, tem um prazo de vida de 5 anos, e podem derreter, como já aconteceu em alguns locais.
O estado deve garantir projetos adequados que fomentem tecnologias que proporcionem a liberdade e a Convivência com o Semiárido, isso só é possível com o resgate do conhecimento da caatinga, de potencializar o que existe nesse bioma, e nesse campo o processo da agroindustrialização é fundamental na agregação de valor nos produtos do campesinato, na autonomia da produção, e no aproveitamento do que o Semiárido oferece.
Uma bandeira de luta defendida pelo IRPAA é a construção de uma educação própria e apropriada para o Semiárido, um processo educacional que não faça as pessoas negarem o que são e que seja contextualizada à realidade nordestina. Sem uma educação do sertão, solucionar os desafios do campesinato no Semiárido se torna muito difícil.
O trabalho do IRPAA vai contra a postura assistencialista. Suas intervenções procuram a criação de liberdade dos sertanejos, discutindo metodologias apropriadas e proporcionando capacitações que possibilitam às famílias camponesas o desenvolvimento de suas atividades de forma autônoma.
O Nordeste possui um bioma altamente produtivo e rico. O povo sertanejo, assim como todo campesinato, possui em seu seio a capacidade de cuidar dessa terra e produzir as condições necessárias para reproduzir sua cultura nesse espaço, num caráter permanente de luta contra o capital e o agronegócio, reafirmando mais uma vez um dito nordestino: “O problema do Nordeste não é a SECA. É a CERCA!”.