Cisterneiras protagonizam enfrentamento de estiagem no Sertão

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Clique sobre a imagem para assistir ao vídeo Afogados da Ingazeira – Em 2004, quando a agricultora Lourdes da Silva Oliveira, 49 anos, decidiu construir a primeira cisterna em seu povoado, recebeu descrédito de toda a comunidade. Os homens, em particular, ficaram mais ressabiados. Um deles jurou: “eu visto uma saia se uma mulher construir uma cisterna”. Teve que pagar a língua, em um momento até hoje muito lembrado no pequeno vilarejo de Santo Antônio, na Zona Rural de Afogados da Ingazeira, no Sertão de Pernambuco. O local é um dos mais afetados pela seca, mas uma iniciativa local delega às mulheres o protagonismo de enfrentar a falta d'água na região.

Dona Lourdes foi a primeira mulher a ser capacitada no programa Um Milhão de Cisternas, da Articulação do Semi-Árido (ASA), que planeja construir cisternas de placas na região do semiárido. Tirou o primeiro lugar no curso. Apoiada próxima a uma de suas construções, ela lembra que enfrentou preconceito local e teve dificuldade em encontrar famílias interessadas em abrir espaço para a novidade. “Depois que aprendi, tive de ir a outros lugares para achar alguém que me desse a chance. Meu sogro na época achou uma casa, na boca da pista”, relembra. “Depois que todos conheceram a primeira, vieram à minha porta pedir”. Com um dos oito filhos no braço, Dona Lourdes nos leva a duas vizinhas para mostrar as cisternas feitas. “Dá muito gosto de ver. Me dá felicidade saber que sou capaz, né? Agora não quero mais parar”.

Um ano depois da capacitação, Dona Lourdes foi convidada para ministrar aulas para outras mulheres em Caruaru, no Agreste pernambucano, nos estados do Rio Grande do Norte, Sergipe e Ceará. Nesses lugares também construiu cisternas. “Perdi as contas de quantas já fiz”, diz, sorrindo orgulhosa. Por cada uma delas, ganha R$ 250. Já pelo curso, recebe R$ 600. Mas, ainda considera-se agricultora. “Desde pequena tive tino para trabalhar. Quando chegaram à minha porta perguntando se eu conseguiria aprender a ser pedreira, na hora eu disse que sim. Mas ainda vou continuar trabalhando na minha roça”. A cisterna de placas traz toda uma nova perspectiva à vida no semiárido.

A tecnologia não é nova, mas só agora começa a ser implementada sistematicamente em municípios nordestinos. Cada uma delas possui capacidade de armazenar até 16 mil litros de água, que é coletado da chuva através de calhas. “Uma ou duas chuvaradas 'boa' já dá para encher a cisterna”, afirma Dona Lourdes.

Se utilizada apenas para beber e preparar comida, a água acumulada é suficiente para suprir uma família de cinco pessoas por 12 meses. Quando serve a outras necessidades, como tomar banho e alimentar animais, o rendimento cai para cinco meses. Existe ainda uma outra cisterna, de produção, voltada para o trabalho na agricultura familiar.

No povoado próximo, em Itã, parte do município de Carnaíba, mora uma aluna de Dona Lourdes, a agricultora Creuza Lopes Ferreira, 52. Há três anos, ela também foi recrutada para aprender a construir cisternas. Ela lembra da dificuldade dos primeiros dias. Como não sabe ler, teve de memorizar todos os materiais, medidas e tamanhos. Além de sua vizinhança, fez cisternas em vilarejos vizinhos, como Bonsucesso, Cabelo e Góes, ambos em Carnaíba. “Os homens ficavam curiando (caçoando) enquanto as mulheres trabalhavam, mas liguei não. As famílias que nos recebiam, nos tratavam muito bem”, conta. “Alguns tinham receio, e outras os maridos simplesmente não deixavam”.

Em Itã, as marcas da seca estão explícitas na paisagem. Agricultores do vilarejo não conseguiram aproveitar nada do que foi plantado desde o início do ano. Para complicar, o Rio Pajeú, que corta o local, está totalmente seco. Para famílias sem cisternas, a situação é pior. “Todo dia eu tinha de acordar e matutar como eu iria fazer para pegar água. Tinha uma barragem, que hoje está seca, de onde a gente voltava com balde na cabeça”, lembra Creuza. “Tinha também uma represa, mas a água era contaminada”.

Nova frente contra a falta de água

A construção de uma cisterna demora cerca de quatro dias. A cisterneira conta com a ajuda de um ajudante e se hospeda na casa da família que vai receber o benefício. Contando material e mão de obra, cada uma sai por cerca de R$ 1.400. Com a situação da estiagem este ano, a demanda por cisternas aumentou ainda mais. A ONG Casa da Mulher do Nordeste, com sede em Afogados da Ingazeira, é a responsável pela capacitação das mulheres e pelo cadastro de famílias para receber a construção. A organização conta ainda com o apoio da ONG inglesa ActionAid. Até hoje, já foram capacitadas 30 mulheres.

A Articulação do Semi-Árido (ASA) fechou convênio com o Ministério de Desenvolvimento Social para a construção de novas cisternas no Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Serão 33.400 em 253 municípios, com previsão de ficarem prontos em sete meses. O total de investimento será de R$ 138,3 milhões. Em Afogados da Ingazeira, as cisterneiras irão construir 690. Para a coordenadora da Casa da Mulher, Célia Souza, as cisternas trazem mudanças sociais importantes na região. “As construções geram renda, movimentam a economia local e vão de encontro à indústria da seca, que objetiva apenas medidas paliativas, como carro-pipa”. Ela também acredita que as mulheres tem mais consciência sobre sustentabilidade no Sertão. “São elas que sofrem mais o impacto da seca, já que muitos homens saem de casa em busca de emprego. É a mulher que organiza o racionamento, a busca de água, que prepara a comida”.

As sertanejas quebraram um paradigma de uma atividade desempenhada 100% por homens. “Elas querem mostrar que fazem a diferença na luta contra a falta de água”, diz Célia.

Seca no Nordeste é a maior nos últimos 47 anos

A Secretaria Nacional de Defesa Civil reconheceu a situação de emergência em 813 dos 1.794 municípios do semiárido nordestino. Diversos reservatórios secaram e há racionamento de água potável em nove estados.

Pernambuco tem 93 dos 185 municípios em estado de emergência. Dos 100 reservatórios de água disponíveis, 20 entraram em colapso e outros 20 estão com 30% da capacidade.

Dois municípios em Pernambuco, Santa Cruz e Lagoa Grande, no Sertão, são recordistas na seca ao decretaram estado de emergência 16 e 15 vezes, respectivamente, nos últimos 10 anos. A população do local já bebe água salobra e não possui mais recursos para alimentar animais. Em cidades do semiárido, como Carnaíba, plantações inteiras foram perdidas e é possível ver animais à beira da estrada.

Mas, é a Bahia, a mais afetada. A Defesa Civil local afirmou que esta é a pior seca dos últimos 47 anos. Mais de 200 municípios estão em estado de emergência. O ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, prevê prejuízo superior a R$ 12 bilhões com as perdas agrícolas e pecuárias.

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