Eliane Brum: a jornalista que amplifica a voz dos invisíveis

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A repórter dos desacontecimentos | Foto: Lilo Clareto

Eliane Brum, jornalista e escritora premiada dentro e fora do Brasil, se define como uma “escutadeira” de histórias de pessoas. Justo por sua simplicidade, Eliane se revela grande. Como é da natureza do simples.

Quando ela se põe a falar do trabalho, da sua busca incessante pelas histórias que, a primeira vista, parecem banais, desinteressantes, repetidas, Eliane alcança o espectro de um grande Ser Humano – com as iniciais grifadas em letras maiúsculas mesmo.

Eliane é uma daquelas pessoas que vive no território do questionamento – de si, da vida, da ordem dominante, das relações de poder, das histórias invisíveis aos interesses da imprensa, definida por ela como “o discurso público dominante a partir do século 20”. A ela interessa a força oculta dos milhões de brasileiros e brasileiras que não são notícia nos meios de comunicação. Esse interesse é, sobretudo, uma escolha política, como ela mesma afirma.

É nessa escolha política que acontece uma das convergências entre o trabalho de Eliane e o da ASA. Cada qual do seu jeito, a seu modo, valoriza a vida de pessoas simples e grandes. Essa forma de olhar a vida do outro, motivou a Assessoria de Comunicação da ASA (Asacom) a trabalhar com alguns textos da jornalista, durante a última oficina realizada com os 26 comunicadores da rede, em junho deste ano.  Em visita ao Recife, por ocasião da Bienal do Livro de Pernambuco, Eliane conheceu um pouco do trabalho desenvolvido pela ASA.

Dias depois de sua volta à São Paulo, a jornalista Verônica Pragana, da Asacom, conversou por telefone com ela. Com generosidade nas palavras, Eliane falou sobre o seu interesse em dar voz aos invisibilizados pela mídia, valorizando o saber do outro. A conversa versou sobre o movimento que acontece a partir do reconhecimento da singularidade de cada um. Eliane comentou também sobre o seu empenho em apreender no texto toda a complexidade da vida, fugindo da cilada de reduzi-la. Confira o bate-papo que traz à tona outros assuntos do universo da comunicação, da vida, da individualidade de cada ser.

Asacom – Como surgiu seu interesse em escrever sobre pessoas comuns, que não são notícia nos meios de comunicação?
Eliane –
Pensando hoje, desde pequena foram essas as histórias que eu gostava de ouvir. Eu me lembro que bem pequeninha sempre fui muito mais uma olhadeira e uma escutadeira, do que faladeira. A família toda de meu pai é da zona rural de Ijuí, do interior do Rio Grande do Sul, de um lugar chamado Barreira. Quando a gente ia visitá-los no fim de semana, pegava um banquinho, ao invés de brincar, ficava sentada, ouvindo histórias dos adultos… minha avó contava muitas histórias das pessoas. E depois que aprendi a ler, a literatura me deu uma possibilidade de viver, uma possibilidade de habitar outros corpos, habitar outros mundos. E a matéria da literatura são as pessoas. As pessoas ditas comuns. Essa é a carne da literatura.

Na minha adolescência eu não gostava de ler jornal porque eu não enxergava as pessoas ali. Eu nunca entendi porque a matéria da literatura que eram as pessoas comuns não estavam no jornalismo que era justamente quem tinha a missão de contar, de registrar, de documentar a história cotidiana. Então, esse sempre foi naturalmente o meu interesse…

Eu terminei a faculdade achando que eu não servia pra ser jornalista primeiro porque eu não via as coisas que me interessavam nos jornais, então achava que eu não tinha espaço, nem era a minha, e também porque achava que eu era tímida demais pra ser jornalista, então fazia História na Federal do Rio Grande do Sul e Jornalismo na PUC e, só no final da faculdade, que eu encontrei um professor o Marques Leonam, que mudou a minha vida, que mostrava que jornalismo era o que acreditava que podia ser e que muita gente tinha escrito coisas maravilhosas. Ele me apresentou um outro jornalismo.

E eu fiz uma reportagem para esse professor que chamava “Esperando na fila”, que era sobre todas as filas que a gente entra desde que nasce até morrer. Que era um tema que, naquela época, era muito incomum. Eu peguei a época que a fórmula era a pirâmide invertida, aquele tipo de jornalismo mais amarrado impossível, de total distanciamento, aquele mito da isenção. Essa matéria foi inscrita por uma amiga no primeiro Set Universitário, um concurso das universidades da região Sul do país. E eu acabo ganhando e o prêmio era um estágio no jornal Zero Hora e acabei ficando 11 anos no Zero Hora e lá fui me encontrando… porque sempre que ia cobrir alguma coisa, eu acabava trazendo umas histórias dos personagens secundários, eu acabava trazendo não só as histórias que tinham me mandado buscar, mas também trazendo outras histórias que eu acabava achando mais interessantes e aí eu fui construindo o meu jeito de contar as histórias.

E aí em 1999 fica mais claro quando o Marcelo Rech, que era o diretor de redação da Zero Hora, por causa destas características que eu já tinha, ele me convida para fazer uma coluna de reportagem semanal, aos sábados, só com pessoas que não eram notícia, que era o que eu já fazia, mas não de uma forma sistematizada. Então nasce A Vida que ninguém vê, que eu passo um ano fazendo e que depois vira livro. E esta é uma escolha que é uma escolha política. Porque o jornalismo não tem natureza, como às vezes a gente ouve, pelo menos eu ouvi na faculdade. O que é notícia e quem é notícia são escolhas políticas, sociais, econômicas de determinados momentos históricos, tem todo um contexto.

E no meu trabalho eu tenho uma escolha política também que é a escolha de contar as histórias da maior parte dos homens e mulheres que efetivamente constroem a história cotidiana, constroem a história do país. Porque quando a imprensa tradicional diz que o que é notícia é aquilo que quebra a rotina, que a notícia são as celebridades, seja da política, do esporte, do mundo artístico, empresarial, seja o tipo de celebridade que for, você está dizendo que a vida da maior parte das pessoas não merece ser contada. Quando a morte de uns vale mais espaço do que a de outros, quer dizer que a vida de uns é mais importante que da maioria. Quando você diz para as pessoas que a sua vida não merece ser contada, você diz para a maioria das pessoas que a sua vida não é importante, isto tem um enorme impacto na vida das pessoas. Eu inverto isso como uma provocação. Eu falo que sou uma repórter de desacontecimentos. O que me interessa é o que se repete. E eu vou construindo o meu jeito de contar histórias a partir dessa convicção. Eu não inventei nada. Muita gente escreveu sobre estas pessoas ditas anônimas, mas eu inventei o meu jeito de contar estas histórias.

E o que tento mostrar é o que me interessa. Que é que me interessa como contadora de vidas reais? Me interessa, sou fascinada [pelo] o que dá sentido para a vida das pessoas, já que a rigor a vida não tem sentido, a vida é caos. Então me interessa muito como as pessoas criam sentido, dão sentido às suas vidas, como reinventam as suas vidas. Neste sentido, as histórias que eu conto acabam mostrando que não são vidas comuns, o que existem são olhos domesticados. A vida ordinária, se tu olhar direito, olhar direito, olhar pra enxergar, elas são extraordinárias. Aquelas pessoas que foram contadas e que conto até hoje elas têm uma vida muito interessante.

Asacom – Está acontecendo uma mudança no Semiárido a partir da valorização do conhecimento das famílias agricultoras. As pessoas estão com autoestima elevada, reafirmam sua identidade, gostam do lugar onde moram e não querem sair daí. Eu gostaria que você comentasse esse sentimento a partir de sua própria experiência enquanto contadora de histórias.
Eliane
– Eu acho que é isso que está acontecendo hoje é que é muito interessante no Brasil, é que as pessoas que estão vivendo nas periferias das grandes cidades. Eu falo na de São Paulo porque é a que eu conheço melhor. Elas não querem sair da periferia, como queriam antes, eles estão mudando a periferia e estão contando a história da periferia. Assim como você está me contando do que está acontecendo no Semiárido. As pessoas estão querendo permanecer no seu mundo a partir de um outro olhar sobre seu mundo. Assim como está acontecendo na Amazônia.

Essa grande reação que tem hoje dos povos das florestas com os grandes projetos do governo Lula e agora no governo Dilma, com o Belo Monte, é uma reação de gente que quer ficar no seu mundo. Isso é maravilhoso. Você tem toda razão quando fala da experiência que vocês têm aí na ASA, que é do contar-se, do reconhecimento da história. O que a gente é? O que nos torna humano é a nossa capacidade de nos narrar. A gente se torna humanos na palavra, na narrativa. O que a gente conta sobre a gente e o que é contado sobre a gente é muito importante, é o que determina, de certa maneira, o nosso estar no mundo. Então, quando as pessoas começam a se olhar por um olhar que valoriza as suas histórias, que seu conhecimento é valorizado, e passam a olhar a sua vida com generosidade, você passa a olhar a vida do outro com generosidade, isso talvez seja a maior mudança de mundo possível. Isso está acontecendo de diversas maneiras. E é a experiência que tenho no meu trabalho.

Voltando pra A Vida que ninguém vê, quando naquela época, que eu era muito nova, começo a escrever sobre pessoas que jamais teriam espaço no jornal, pessoas que jamais seriam notícias, pessoas consideradas anôminas, comuns, desinteressantes, eu recebo um enorme retorno dessas pessoas que me escrevem dizendo: nossa, quando eu li que você escreveu sobre esta pessoa, eu percebi que a minha vida é importante, não é banal, é interessante, isso mudou a meu jeito de viver.
O olhar do outro é o espelho onde a gente se reconhece. Que espelho é este? A mídia, a imprensa, desde o século 20, é o discurso público dominante. Se tua história não está sendo contada lá, se é invisível neste discurso, neste registro histórico, é como se tu não existesse. Se não se ampliam as narrativas e você passa a se reconhecer nos discursos que passam a ser contados e que você passa também a contar, a ser também um contador de histórias, e essas narrativas todas se entrelaçam, aí tu realmente passa a existir, tu passa a ser sujeito e passa a ser principalmente autor. E a primeira história que a gente conta é a que a gente cria, da nossa própria vida. Essa é a grande transformação que a gente está testemunhando.

Asacom – Na sua escrita, você integra informações coletadas através das várias formas de percepção: sensorial (sentidos), intuitiva, emocional e racional. Como você desenvolveu esta habilidade tendo em vista que a nossa sociedade é muito racionalizada.
Eliane –
Primeiro, talvez a grande influência, [através da qual] eu tenho aprendido a apreender a realidade, é a leitura de histórias, especialmente literatura. A realidade é algo muito complexo. Não sei de onde alguém tirou que o que é falado é mais importante. O que é falado digo a palavra pronunciada. A gente vê no jornalismo que a palavra pronunciada, às vezes, é toda a informação que temos sobre um determinado acontecimento.

A realidade é feita de uma complexidade de coisas, que é a palavra pronunciada, a palavra que é dita, a palavra que foi dita pela metade, a hesitação, o silêncio, o que não foi dito, o cheiro, as cores, as texturas, os sons, as escolhas daqueles objetos que decoram a casa, aquela mesa de trabalho, aquilo que não esta lá, aquilo que foi tirado. No começo desse ano, eu publiquei uma matéria na Época, onde eu contava o que aconteceu com a família da periferia da Grande São Paulo durante o governo Lula.

E a forma mais interessante, mais importante, mais simbólica que encontrei pra contar foi pela mudança dos quadros na parede. Foi uma família que estava na classe D e E durante o governo de FHC e durante o primeiro mandato de Lula e ascendeu para a classe C, o que tem sido chamado de nova classe média, no segundo mandato de Lula. Eu conto isso pelas mudanças que vão ocorrendo com os três quadros na parede da sala. Quando eu chego lá, no final do governo de Fernando Henrique, os quadros eram Nossa Senhora de Fátima, o Corinthias e o Che Guevara – religião, ideologia e futebol. Hoje, o único que resiste na parede principal da sala é o Corinthias. Foram várias mudanças. Em que momento o Che Guevara sai da sala? Em que momento Nossa Senhora de Fátima vai para a parede lateral? Tudo isto vai contando uma história. Não tinha melhor jeito de contar essa história do que contando pela mudança de símbolos na parede principal da sala. Essas informações são mais relevantes nesta matéria do que a maioria das palavras ditas.

O bom jornalismo é isso. Por isso que fazer bom jornalismo dá um trabalho infernal, porque tu não precisa só conversar com a pessoa e anotar e transcrever aspas. Tu precisa apurar um monte de coisas de uma forma absolutamente precisa. Me lembro de uma informação que era um terço de uma frase, que fazia sol na cidade de Pompéia quando aconteceu tal coisa que eu estava falando. Para dizer isso com certeza, com precisão que fazia sol, entrevistei cinco pessoas da cidade, porque fui um mês depois, se era um céu com nuvens ou sem nuvens, se estava nublado ou se realmente era um dia ensolarado e depois, quando voltei pra São Paulo, pesquisei em três sites de meteorologia diferentes. Pra dizer apenas uma coisa simples como essa, eu tive todo este trabalho de apuração e de checagem. Porque se eu erro numa informação simples como essa, como o leitor vai acreditar na parte mais complexa da minha matéria?

Por isso que esse jornalismo que considera toda a complexidade do real como informação, o cheiro é uma informação tão relevante quanto a palavra dita, assim como o silêncio é tão relevante quanto o que foi dito, dá muito trabalho. E o que eu faço é trabalhar muito. E o jeito que eu tenho para tenho para tentar apreender o máximo possível de tudo o que eu vejo é anotar tudo no meu bloquinho. Não tem coisa que me dê mais aflição é jornalista que não anota ou não grava. Hoje, quando acontece de eu estar na posição inversa às vezes eu chego e digo “tu não vai anotar?” Eu fico desesperada porque ninguém tem direito de puxar tanto de sua própria da memória.

Ao mesmo tempo em que eu anoto o que a pessoa está me dizendo com as palavras dela, não com algo parecido com o que ela disse ou com o resumo do que ela disse, não, mas com as palavras que escolheu, porque as palavras escolhidas dizem muito, porque que ela escolheu uma palavra e não a outra. Então, além das palavras eu vou anotando, nessa hora em que ela estava falando, escorreu uma lágrima, ou quando estava contando esta história, hesitou, ou ele interrompeu o que estava falando, ou entrou um cheiro de bolo ou um cachorro começou a latir e tudo isto eu escrevo no meu bloquinho e escrevo também o que eu vou sentindo. Então quando eu releio o meu bloquinho eu posso reviver tudo aquilo o que eu vivi. Então este é o meu jeito que eu encontrei pra poder anotar tudo e depois eu vou atrás das coisas que eu preciso dissecar, mas anoto não só o que foi dito, mas tudo o que vou percebendo, e também os meus sentimentos.

Asacom – Esse seu jeito me remete muito ao jeito próprio dos agricultores, das pessoas que moram no Semiárido, que falam do coração, são muito espontâneos, fazem muita referência à natureza, aos sinais que estão ali ao redor deles. Não é nada é fragmentado. O jeito que eles se expressam é completamente integrado à natureza. Isso me chama muito atenção no teu estilo e no jeito deles…
Eliane –
Talvez, o que a gente tem em comum é a origem rural. Eu já cresci na cidade. A minha família tanto por parte de pai quanto de mãe, são famílias que tem origem rural, e eu passei parte da minha infância lá e ouvindo estas histórias e este jeito de contar. E eu percebo agora que eu escrevi, as pessoas me perguntam, agora que eu lancei meu livro de ficção, meu primeiro romance, das minhas influências, eu falo que tão importante quanto os livros de literatura que eu li, os autores do cânone literário, tão importante quanto eles foram as pessoas que eu ouvi, as pessoas que me deram a honra de contar as suas histórias pelo Brasil inteiro e, às vezes, fora do Brasil porque muitas vezes eu me vi diante de analfabetos por este Brasil inteiro que faziam literatura pela boca. E eu ficava pensando, meu Deus, essa pessoa está fazendo literatura pela boca! O brasileiro, especialmente as pessoas do interior, tem uma linguagem extremamente sofisticada, com grandes achados de linguagem, invenções de palavra. Guimarães Rosa, sem dúvida nenhuma, é um gênio. Mas com certeza ele bebeu na genialidade oral do sertão que ele conta.

Essas pessoas que vivem junto à natureza que dependem da terra, que a terra faz parte da sua vida, elas têm uma noção que a gente na cidade perdeu que eu acho que faz uma enorme diferença na vida que é a noção dos ciclos, do ciclo da vida e da morte. Quando está no interior tu vê as coisas crescerem, tu vê elas nascerem e vê elas morrerem , tu mata o bicho, tu não encontra ele morto na prateleira do supermercado. Tem todo um ciclo que a gente perde e eu acho que essa é uma grande perda que a gente tem na cidade. Essa apreensão do ciclo da vida, essa compreensão da morte que está cotidianamente da vida de todo mundo, mas que a gente da cidade não percebe, acho que dá uma densidade pras palavras, dá uma densidade na vida, dá uma densidade pras histórias que é muito rico.

Asacom – No seu texto “Olhar insubordinado”, você fala da necessidade de vermos diferente o que está ao nosso lado para não perdermos a capacidade de nos espantar com a vida. Como podemos fazer esse exercício diário?
Eliane –
Esse é o grande desafio da gente, não só como contador de história, como repórter, jornalista, como gente mesmo. É um ato de resistência cotidiano que não é fácil, porque tudo leva pra olhar sem ver, e tudo nos leva a repetir automaticamente uma rotina, a gente repete até as nossas falas, a gente repete os nossos vícios, a gente repete as nossas reclamações, a gente vai vivendo e repetindo coisas e isso vai levando a gente a não enxergar mais não só o que está fora da gente como o que tá dentro da gente.

A gente deixa de perceber o extraordinário da nossa própria vida. Eu não tenho uma fórmula de como fazer isso, acho que cada um tem que inventar a sua. Sem dúvida, é algo que vem de dentro. Tu não consegue olhar pro extraordinário contido na vida do outro e contido nas coisas do mundo, se tu não conseguir olhar pra ti mesmo percebendo o extraordinário que tu é. O extraordinário no sentido do que é inegável. Cada um de nós, independentemente daquilo que tu acredita, seja um acidente ou uma obra divina, cada um tem a sua crença e não cabe entrar no que cada um acredita, mas seja lá o que a gente for, a gente é algo irrepetível, algo único no universo, nunca mais vai existir ninguém igual a gente, igual a mim, igual a ti, igual ao mendigo que está na rua, igual ao cara que é milionário.

Isso eu acho uma coisa incrível. Isso é algo para começar a se espantar sempre. E a gente tem algo que é a possibilidade que é inventar uma vida pra nós. Por esse Brasil que eu venho contando histórias há 20 e poucos anos, é isso o que me espanta. Eu acordo de manhã e a primeira coisa que faço é abrir a janela da sala que eu tenho sempre a mesma vista, eu tento ver que parece a mesma vista, mas que nunca é a mesma vista. Eu respiro o ar poluído de São Paulo e mesmo assim ele é diferente, tento dar àquele momento que eu acordo que é meu momento de perceber o mundo, depois a segunda coisa que faço é botar a chaleira no fogo pra fazer meu chimarrão, isso quando tenho rotina. O que me garante, eu acho, poder se espantar com a minha vida, e poder inventar, reinventar e principalmente desinventar a minha vida é buscar isso nas outras pessoas.

Eu fui aprendendo com as pessoas que eu entrevistei a me olhar de um jeito diferente, elas me ensinaram a me olhar, no momento em que me dispus a enxergá-las. Tem uma história que está em A Vida que ninguém vê e que é uma das minhas preferidas que é a história do Vanderlei. Às vezes, a gente fala, fala, fala, mas as histórias contam mais do que a gente possa teorizar sobre as coisas que a gente pensa. Por isso que as histórias são fantásticas.

Vanderlei é aquele cara da fronteira do Brasil com a Argentina, um gaúcho, que todo ano ele vai para a maior feira agropecuária do Rio Grande do Sul que é a Expointer com um cabo de vassoura. Ele vai misturado aos bichos e diz que aquele cabo de vassoura é o cavalo dele e ele chega lá e passa por todos os trâmites burocráticos, passa pela Vigilância Sanitária, faz tudo o que precisa fazer com o cavalo dele. E ele garante que o cabo de vassoura é o seu cavalo e passa toda a exposição cavalgando no cabo de vassoura, o seu cavalo.

E qual o olhar mais óbvio? E o que todo mundo falava é que ele é o louquinho da Expointer, o louquinho. A gente sempre precisa encaixotar as pessoas, especialmente, aquilo que a gente não entende. Mais fácil era chamar o Vanderlei de louquinho, e como louco, todo mundo está satisfeito. E o jornalista, especialmente, tem uma mania que eu acho bem criminosa que é transformar as pessoas em personagens folclóricos, que é um olhar simpático, engraçado e por outro lado ele encobre o nosso crime de não olhar direito, que encaixota. “Esse é o louquinho”. Quando você encaixota alguém como personagem folclórico, você jamais vai enxergar esta pessoa.

O que eu fiz como contadora de histórias que tem a obrigação, não é uma escolha, de olhar direito, eu fiz uma coisa muito simples. Eu emparelhei o meu cavalo com o do Vanderlei e perguntei: “Vanderlei você é louco?” E o Vanderlei olhou pra mim como se eu fosse a louca e disse pra mim: “tu acha que eu não sei que o meu cavalo é um cabo de vassoura?” No momento em que ele diz isso, ele não se torna mais um personagem risível, mas uma pessoa inquietante. E ele continua falando, diz que nunca vai ter dinheiro pra ter um cavalo de verdade, num é melhor então acreditar que o cavalo dele é um cabo de vassoura? Esse é um louco. Pata, focinho, sangue é um cabo de vassoura. 

Ao transformar o cabo de vassoura num cavalo, ele passa a questionar toda a hierarquia do pampa gaúcho. Então o olhar sobre ele se alarga, o que ele simboliza se alarga. Ele alarga, a partir desta invenção, o olhar sobre si mesmo e reinventa a sua vida da forma que é possível, com o pouco que ele tem. Eu acho o Vanderlei uma pessoa fascinante. Essa história é fascinante porque ela mostra, revela de uma maneira radical o que é o desafio de todos nós. Embora ele [Vanderlei] tenha que ter uma invenção mais radical por todas as carências da vida concreta dele, na verdade, todos nós somos Vanderlei. Na medida em que todos nós temos de fato um cabo de vassoura e todos nós precisamos transformar esse cabo de vassoura num cavalo.

Asacom – Como você se prepara para entrevistar alguém, fazer uma reportagem?
Eliane –
O que eu faço sempre, primeiro: tento ler tudo o que saiu sobre esse tema, essa pessoa que vou contar. Não pra eu repetir, mas pra não me deixar cegar por falsas luzes, pra entender melhor aquilo que vejo. Eu estudo muito exatamente pra poder me perder. A grande história da reportagem é tu te perder. Se tu vai pra rua procurando alguma coisa e acha aquela coisa, é porque aquilo já foi contado ou já contado daquela mesma maneira. Porque pra tu encontrar algo mais, pra tu enxergar além, precisa te espantar. As histórias vêm do espanto. Tu não sabia que aquilo existia. Tu tinha uma pista.

E eu acho que a melhor coisa que pode acontecer com o repórter é ir pra rua e dar tudo errado. É porque tu tem a possibilidade de encontrar alguma coisa nova. A maioria das minhas reportagens elas começaram num pauta que deu errado, numa ideia que era o avesso do que encontrei. Eu antes faço o exercício interno que é de me esvaziar. O que é que é se esvaziar? Eu me esvazio dos meus preconceitos, da minha visão de mundo, do meu julgamento. Vale a pena lembrar que jornalista não é juiz. Então eu me esvazio pra fazer esse movimento em direção ao mundo do outro o mais vazia possível. Então, eu sou preenchida pela história que é do outro. É uma espécie de possessão. Eu fico aberta pra me espantar com aquela história, mas não me espantar por causa dos meus preconceitos, mas para me espantar pelo o que ela me traz de novo, de possibilidade de alargamento do mundo, de possibilidade de ver o mundo de forma diferente.

O jornalista, o pacto que ele faz com a pessoa que ele entrevista, é de que ele vai escutar a história daquela pessoa, é que ele vai se tornar um escutador. Eu sempre digo que sou uma escutadeira. Isso significa que vou escutar com o mesmo respeito tanto um cara que é o Nobel da Paz, o Dalai Lama, como o serial killer, que matou, degolou, queimou e esquartejou pessoas, porque naquele momento o meu papel é de escuta. É neste sentido que tenho que ir o mais vazia possível.

É claro que este vazio é um movimento ideal, porque ao mesmo tempo em que vou mais vazia possível pra me colocar nesse lugar de escuta, eu também tenho que ter a consciência plena de que eu não estou pairando em cima do mundo, em cima das pessoas. Que eu sou um ser inscrito na cultura em determinado momento histórico. O fato de eu de eu decidir contar aquela história já está alterando aquela história. Então é pela qualidade da nossa escuta que a gente alcança mais profundamente o que é a história do outro e não a história que a gente pensa que é a história do outro. É um encontro, um pacto. Eu vou escutar tua história com todo respeito e tu vai me contar com todo respeito. O que passa por ser nos dois o mais verdadeiros possível e o que faz ser mais verdadeiro possível é saber que as verdades são várias. As verdades são muitas. Não existe uma verdade absoluta. A verdade é sempre inalcançável. A verdade está exatamente no contraditório, nas nuances, que é o território onde o jornalismo, do cinza, do contraditório.

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