Para além das terras do litoral
Osertão surge como um contraste em relação às terras “apartadas do litoral”, para depois ganhar forma tanto física quanto no imaginário das pessoas, por suas histórias e personagens. Construído entre veredas de mandacarus e juazeiros, o sertão consegue se firmar como a terra que serviu de cenário para a “civilização do couro”, como chamou o historiador Djacir Menezes. A expansão da pecuária e a fazenda de gado com os vaqueiros foram os principais elementos do século sertanejo
Um dos símbolos do Nordeste rural, o vaqueiro continua fazendo parte da paisagem do sertão por onde se embrenharam os criadores de gado da região. Eles não entraram pelas matas e alagados, preferindo desbravar as vastas extensões de terras distantes do fértil litoral, como revela a historiadora Mary Del Priore. Das veredas criadas às custas de ferimentos no próprio corpo desses homens, o sertão foi sendo desenhado. Hoje, não desbravam mais cada palmo de terra, nem tampouco arriscam a vida para pegar uma rês desgarrada, mas povoam o imaginário de um lugar que ficou conhecido por abrigar homens considerados, antes de tudo, “fortes”.
Os criadores de gado, a partir da instalação do governo-geral, em 1549, iniciaram a “lenta expansão da pecuária no Nordeste”. Naquela época, o sertão significava “as terras apartadas do litoral”. A mata nativa do litoral fora substituída pela cana-de-açúcar, dando origem à aristocracia em torno de um dos mais prósperos ciclos econômicos do País, o da cana-de-açúcar. Mas, aos poucos, a peleja entre as terras férteis do litoral e as veredas inóspitas dos juazeiros e mandacarus – aos quais apenas o couro dos gibões dos vaqueiros resistia – iam dando forma ao sertão e aos seus personagens.
Começou com a cana
A devastação da paisagem do Nordeste, marcada pelo caráter exploratório do português, não é de hoje. Começa ainda no período colonial quando a mata nativa é substituída pela cana-de-açúcar, consolidando a prática agrícola da monocultura, cujos efeitos são sentidos até hoje. “Sabe-se o que era a mata do Nordeste, antes da monocultura da cana: um arvoredo tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que não podia o homem dar conta”, relata o sociólogo pernambucano, Gilberto Freyre, no ensaio “Nordeste: aspecto da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil”.
Destaca que o canavial destruiu as matas “pelo modo mais cru: a queimada”, denunciando o seu caráter “civilizador” e ao mesmo tempo devastador. E denuncia uma das faces mais cruéis da devastação das matas nordestinas: “às vezes, esbanja-se madeira de lei fazendo-se e cercas enormes dividindo um engenho de outro. Vaidade de senhor de engenho patriarcal”.
O sociólogo considera como um dos mais violentos o início do que ele chama “o drama da monocultura no Nordeste do País”. O impacto dessa destruição foi sentido também em alterações do clima, da temperatura e no regime de águas. Cerca de quatro ou cinco séculos depois, a situação agrava-se com as mudanças climáticas, cujas projeções são implacáveis com o semiárido brasileiro.
“Como se faz um deserto”
O engenheiro Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, publicado em 1902 sobre a Campanha de Canudos, ocorrida cinco anos antes, dá a receita de “como se faz um deserto”, enfatizando que “esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável – o homem” e continua: “este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos”.
Informa que “começou isto por um desastroso legado indígena” e descreve como, após cortar as árvores, se ateava fogo às coivaras, até transformar em cinzas a mata exuberante. Segue detalhando que a terra era cultivada, processo repetido na estação seguinte, “até que, de todo exaurida aquela mancha de terra fosse, imprestável, abandonada e caapueira – mato extinto” e “o aborígene prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo de estragos em novas caapueiras, agravando, à medida que se ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava”.
“Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder”: “abria-os de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, soltos nas lufadas violentas do nordeste. Aliou-se ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro.”
Conta que, em meados do século XIX, conforme velhos habitantes das povoações ribeirinhas do São Francisco, “os exploradores, que em 1830 avançavam, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.”
Conclui dizendo que, ao fim da seca lendária de 1791-1792, “que sacrificou todo o norte, da Bahia ao Ceará”, o governo da metrópole estabeleceu, como corretivo único, severa proibição ao corte de florestas”.