Um recorte da comunicação no Semiárido Brasileiro

“Na medida em que o Nordeste se constitua uma vontade política e que amadureça a consciência de que nossos problemas somente terão solução a partir da própria região, deixaremos de ser vistos com complacência, como dependentes incômodos ou como reserva de caça para aventureiros políticos. Então, recuperaremos o papel que já nos coube na condução dos destinos nacionais. E não será por falta de fé no futuro deste país que nós, nordestinos, deixaremos de cumprir a nossa missão na obra histórica de reconstrução que temos pela frente.”
Celso Furtado
A região semiárida brasileira é, historicamente, associada à imagem de miséria e seca. É nessa região onde o coronelismo deixou sua marca mais evidente, a partir da concentração do poder nas mãos das oligarquias locais. Associada a isto, a falta de políticas públicas que levem em consideração as especificidades da região, nos aspectos hídrico, social, cultural, econômico, fortaleceram a chamada “indústria da seca”, que por sua vez beneficiou os mesmos coronéis que dominavam (e, em muitas localidades, ainda dominam) a política local, num ciclo vicioso de concentração de terra, água e poder.
Nessa condição de cabresto, a população é alijada do direito de escolher livremente seus representantes. A concentração dos meios de produção, que nessa região significam terra e água, imputa à maioria da população uma condição de pobreza. Muitas famílias migram para os centros urbanos e as imagens de pessoas pelas estradas fugindo da “seca”, animais mortos e terra rachada ganham os meios de comunicação e formam o imaginário popular sobre a região, que atribui à falta de chuva todas as mazelas. Economicamente a região é considerada inviável, com a idéia de que, no lugar de contribuir para riqueza do País, o Semiárido “suga” os recursos públicos. A autoestima da população é abalada e tanto a região quanto os que dela se originam são considerados atrasados.
Nesse sentido, a mídia teve um papel fundamental de reprodução do estereótipo até hoje atribuído ao sertanejo, como retirante da seca. O sertanejo era apresentado ao Brasil pelas lentes da imprensa da capital, da imprensa do Sudeste, para onde os migrantes se dirigiam, com todas as distorções que o preconceito pode gerar. Mas, não foi apenas a imprensa que criou a imagem da miséria atribuída à região. Nas artes plásticas, Cândido Portinari pinta, em 1944, a série Os Retirantes, apresentando figuras esqueléticas que partem do sertão. Na literatura, Graciliano Ramos escreve, entre 1954 e 1955, o poema Morte e Vida Severina. Em 1965, o poema foi adaptado para o teatro, por Chico Buarque de Holanda, e em 1976 ganha roupagem para o cinema, sob a direção de Zelito Viana.
Do ponto de vista da produção artística, acontece com o sertanejo o mesmo que na imprensa: ele é retratado por outros, ele não produz uma imagem de si próprio e de sua realidade. O resultado disso para o Nordeste é devastador.
Na segunda metade do século XX surge, como uma “evolução” ou herança do coronelismo, o coronelismo eletrônico. É a manutenção do mesmo modo de fazer política, que combina favor e coerção aliados aos meios modernos de comunicação, cuja outorga é concedia pela União para que empresas privadas explorem os serviços públicos de radiodifusão. Acontece, segundo dados da pesquisa realizada em 2008 pelo professor Venício Lima, a articulação de emissoras de rádio e televisão com redes nacionais dominantes com alcance para criar consensos políticos que facilitam a eleição de representantes em nível federal, deputados e senadores, e estes permitem o coronelismo como sistema.
Complementar ao coronelismo eletrônico, surge o coronelismo eletrônico de novo tipo. Com a Constituição de 1988 e o advento do município como ente federativo, o município passa a receber verbas direto da União, há uma um redesenho na arquitetura do Estado brasileiro, sendo redefinidos papéis e atribuições para cada esfera federativa na perspectiva de transformar o aparato mais democrático, eficaz e capaz de resolver os problemas das desigualdades sociais e regionais, entre outras. Neste contexto, a descentralização das políticas públicas, dando autonomia aos municípios e fortalecendo-os e revigorando a política local. É nessa nova conjuntura que nasce o coronelismo eletrônico de novo tipo, que está relacionado às permissões RTVs, em especial as destinadas às prefeituras, rádios FM e comunitárias legalizadas.
Perpassando pelos tempos da ditadura e os de democracia, a relação entre radiodifusão e política está arraigada na cultura e na prática da política brasileira. Pesquisa realizada por SANTOS e CAPARELLI, em 2005, mostra que 39,6% ou 40 das emissoras geradoras afiliadas à Rede Globo; 33,6% ou 128 de todas as emissoras de TV e 18,03% ou 1765 de todas as retransmissoras de televisão do país estavam controladas direta ou indiretamente por políticos em 2005. Levantamento feito pela agência Repórter Social, um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados federais eleitos para o quadriênio 2007-2010 controlam concessões de radiodifusão. E ainda, na pesquisa realizada por Venício Lima, considerando todas as 2205 rádios comunitárias que receberam portaria de autorização do Ministério das Comunicações entre 1999 e 2004, identifica-se que 50,2% delas têm vínculos políticos e/ou religiosos.
Sendo as rádios comunitárias, por sua natureza, de abrangência apenas municipal, os vínculos políticos privilegiariam apenas os interesses em nível municipal. Entretanto, a importância desses veículos se torna maior se percebemos que, ao ajudar na legalização das rádios comunitárias, políticos com atuação nacional contariam, de acordo com Lima, com uma base de apoio comunicacional de grande valia em diversos municípios integrantes de sua base eleitoral. Juntando esses dados, podemos perceber que, se a utilização política de emissoras de radiodifusão se dava por deputados federais, senadores e governadores – fenômeno chamado de coronelismo eletrônico -, agora, prefeitos e vereadores também têm domínio sobre a mídia eletrônica – coronelismo eletrônico de novo tipo.
Ao fazermos um recorte da pesquisa de Lima, olhando para os estados que compõem a região semiárida brasileira, chegamos aos seguintes resultados: 1177 rádios receberam outorga, dessas 586, ou 49,78%, possuem vínculos políticos e ou religiosos. Esse número pode ainda ser maior, pois na metodologia aplicada à pesquisa supracitada, em 188 dos casos do total de rádios estudadas, trabalhou-se apenas com o nome do representante legal da associação à qual a rádio está vinculada, pois não foi possível para os pesquisadores identificar os demais membros da diretoria. Assim, os coronéis da República Velha, donos das terras e dos recursos hídricos, são agora, também, “donos” de metade das rádios comunitárias da região.
Esse veículo de comunicação, que surgiu como instrumento de cidadania e fortalecimento comunitário, um dos meios democráticos pelo qual a população poderia exercer o direito à comunicação, passando de receptor passivo a produtor de conteúdo, torna-se, em muitos casos, um novo instrumento de poder para a velha e arcaica política coronelista do Nordeste. O domínio político dos meios de comunicação em seus diversos raios de alcance – redes nacionais de televisão e suas e afiliadas locais e rádios comunitárias – possibilita a hegemonia de grupos políticos na região.
Diante disso a sociedade civil atuante no Semiárido, organizada em ong´s, movimentos sociais, pastorais das igrejas, sindicatos e outras organizações têm buscado construir estratégias de comunicação que possibilitem uma identificação dessas populações com as produções feitas com elas e para elas, valorizando a identidade local e o surgimento de novas manifestações culturais e artísticas.
A ASA – A ASA é formada hoje por mil organizações da sociedade civil que atuam no desenvolvimento de políticas de convivência com a região semiárida, especialmente dois programas de grande envergadura: Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas. Esses programas fazem parte de um importante eixo de trabalho da ASA que é a Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido.
Nessa construção de um projeto popular que ganha corpo, escala e se torna política pública, a ASA atribui à comunicação um papel importante. Para a rede, a comunicação é um direito. A proposta de comunicação que vem sendo desenvolvida pela Articulação é implementada por uma rede, composta por profissionais que fazem a coordenação da assessoria de comunicação e articulada nos estados por comunicadores populares. Estes atuam em 26 territórios de nove estados.
Além desse grupo, outros profissionais integram a estratégia da ASA nessa área. Inúmeras organizações que compõem a rede têm em seus quadros assessores/as de comunicação e em suas linhas de ação programas específicos associando comunicação para visibilidade, educomunicação e comunicação para mobilização social.
Socializar os resultados e metodologias dessas ações e integrá-las de maneira que, juntas, possam fortalecer a bandeira de luta da ASA pela convivência com o Semiárido é um desafio. A rede coloca esse desafio no centro da discussão do Encontro Nacional de Comunicação da ASA, que se realiza em Camaragibe, Pernambuco, de 1 a 3 de dezembro deste ano, com o tema Comunicação por uma Vida Digna no Semiárido.
Para ajudar a refletir sobre a dimensão da ação de comunicação da ASA, os números apresentados pela Articulação nessa área podem ser reveladores: os produtos e ações comunicacionais já chegaram a 300 mil famílias da região, isso significa 1,5 milhão de pessoas residentes em 1076 municípios. Cabe aqui um destaque a cobertura geográfica das ações da ASA, que abarca quase 100% de todo o território do Semiárido, que é composto por 1133 municípios .
No âmbito da assessoria de comunicação da ASA, também chamada ASACom, já foram produzidos 10 documentários e uma série de desenhos animados com oito episódios. Esse material é exibido para as famílias beneficiadas pelos programas da ASA durantes os cursos de capacitação e também para as comunidades onde os programas são desenvolvidos como instrumento de mobilização social, configurando um “circuito alternativo” de exibição com público total que supera a bilheteria de muitos filmes nacionais.
No caso específico da série de animações, além do “circuito alternativo”, os episódios são exibidos pelo Canal Futura, desde maio de 2010, e devem permanecer na grade da emissora ao longo do ano, assim como compõe as Maletas Futura. Também ganhará quase mil escolas municipais da região, a partir de novembro próximo, como conteúdo pedagógico de formação para crianças e professore do Projeto Cisterna nas Escolas, e integrará, em 2011, o Projeto Baú de Leitura.
As animações foram produzidas a partir de desenhos criados por alunos de uma escola do Semiárido baiano, durante oficinas desenvolvidas especialmente para essa finalidade, dentro da metodologia da educação contextualizada. Os roteiros e linguagem também foram discutidos com as crianças. Só depois de validadas por elas, as animações foram finalizadas e distribuídas.
Integrando sua estratégia de comunicação, a ASA atua com rádios em três frentes: capacitação e sensibilização de radialistas comunitários para os temas relacionados à convivência com o Semiárido e comunicação contra-hegemônica; produção de um programa semanal chamado Riquezas da Caatinga, distribuído para 230 rádios comunitárias e comerciais de todos os estados da região, para 84 organizações da sociedade civil, entre elas, ONGs e sindicatos de trabalhadores rurais e disponíveis para download no sítio da ASA; incentivo à articulação entre radialistas e organizações da ASA atuantes em 58 microrregiões e 26 territórios.
Além das ações de radiodifusão, a ASA desenvolve um conjunto de materiais impressos de cunho pedagógico e informativo, sendo o primeiro grupo destinado às famílias que conquistaram as cisternas do Programa Um Milhão de Cisternas e as que tiveram acesso aos reservatórios de água para a produção de alimentos, viabilizados pelo Programa Uma Terra e Duas Águas, e o segundo conjunto de materiais voltado para as organizações integrantes da ASA nos estados, nos municípios e nas comunidades. Se forem considerados apenas os três produtos (duas cartilhas e um cartaz) destinados às famílias ligadas ao Um Milhão de Cisternas, a ASA já produziu 1 milhão e oitenta mil exemplares desses materiais, de cunho formativo, com linguagem acessível e identidade gráfica que valoriza elementos da cultura local.
Os impressos produzidos pela ASA têm também o objetivo de valorizar as experiências dos agricultores e agricultoras familiares, por meio da sistematização das experiências/práticas que eles desenvolvem e a publicação dessas histórias em boletins, chamados “Boletins de Sistematização de Experiências”. Já foram registradas e publicadas 600 histórias, cada uma com tiragem de mil exemplares. Esse processo permite uma reflexão sobre a prática, estimulando a mudança de realidade.
Muito outros elementos podem ser utilizados para refletir sobre a comunicação desenvolvida pela sociedade civil no Semiárido, como também para analisar de que forma as ações das organizações dialogam com as políticas públicas de comunicação implementadas na região. O Encontro Nacional de Comunicação da ASA pode ser um espaço fecundo para iniciar esse debate, que, certamente, será aprofundado nos estados do Semiárido, num processo democrático de comunicação.
* Viviane Brochardt é jornalista e coordenadora de comunicação da ASA