Vencer a aridez é desafio para as comunidades rurais
“O nosso Ceará passa por uma crise tão medonha, que está ficando despovoado. Morre-se de pura fome. Parece não ter mais um terço da população. É um horror, a cada dia aumenta mais. Cada cearense deve ser uma trombeta, gritando com toda força, pedindo socorro para um grande naufrágio do Ceará”. O relato dramático foi feito pelo Padre Cícero Romão Batista, no dia 6 de dezembro de 1900, sobre a primeira seca do século passado.
Hoje, decorridos 110 anos, o quadro é outro. Já não se morre mais de fome como antigamente. Os programas sociais do governo e das organizações privadas estão presentes na maioria dos municípios do Cariri. Os agricultores com mais de 65 anos de idade estão aposentados. No entanto, apesar dos sucessivos anos de seca, a maioria das comunidades rurais ainda não aprenderam a conviver de forma sustentável com a aridez do sertão. A falta de água para beber, a mais elementar das necessidades humanas, é reclamada no Cariri, uma região cercada de fontes perenes e coberta de açudes e barragens.
“As lideranças sindicais estão conscientes de que a seca é um fenômeno ecológico que se manifesta na redução da produção agropecuária, provoca uma crise social e se transforma em um problema político”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Crato, Francisco Alves da Gama. Ele avalia que os problemas decorrentes da seca resultam de falhas no processo de ocupação e de utilização dos solos, e da manutenção de uma estrutura social concentradora e injusta.
Muitas famílias no Cariri ainda ficam na dependência de ações públicas assistencialistas, que nem sempre funcionam. E quando funcionam, não geram condições para um desenvolvimento sustentável da região. As cisternas, lançadas para dar autonomia aos moradores da zona rural na demanda por água potável, ainda esperam pelo carro-pipa do governo.
Ainda está na ordem do dia o desafio para o homem conviver no campo e conseguir armazenar água para o período de estiagem, no segundo semestre do ano. Com a escassez hídrica, torna-se difícil o desenvolvimento da agricultura e a criação de animais. Há quebra de safra e crise econômica.
Muitas vezes, as pessoas precisam andar durante horas, sob sol e calor forte, para pegar água. É o caso Damião Jacinto de Lima, residente na ladeira de Jamacaru, em Missão Velha. O abastecimento de água para casa é feito em um jumento. Três vezes por dia, homem e animal sobem a ladeira íngreme, conduzindo duas ancoretas com 40 litros de água. Do contrário, só resta comprar um tambor com mil litros de água por R$ 5,00.
Esta é a alternativa encontrada pela dona de casa Hildevânia Sousa Domingos, vizinha de Damião. Na sua casa tem uma cisterna que, este ano, em consequência da falta de chuvas, não encheu. Ela está abastecendo o reservatório com água comprada aos motoristas de transportes alternativos que passam em frente à casa. Mais complicada é a vida de Cícero Lima, obrigado a empurrar uma bicicleta de ladeira acima para a Serra do Araripe.
Já o agricultor João Bosco Lima, que mora no alto da Serra do Araripe, depende do carro-pipa que vem de Brejo Santo para encher sua cisterna.
No município de Jardim, há 35 fontes perenes, com uma vazão total de 307,33 metros cúbicos de água por hora. Porém estão nas mãos de particulares, mesmo estando previsto na Constituição que pertencem à União. Alguns até cercaram nascentes, antes públicas.
Os depósitos para receber água são colocados na frente das casas ao longo da estrada entre Jardim e Jati. A Vila Corrente, por exemplo, também depende do carro-pipa. Os moradores dizem que a água dos açudes particulares da região é poluída. A água das cacimbas e dos poços profundos é salgada.
E quando não falta água, falta pasto. O agricultor Carlito Guilhermino, do Alto Bonito, em Penaforte, diz que já vendeu a metade do gado para não morrer de fome. “Por aqui não tem mais pasto nem para vender”, afirma. O agricultor José Luiz Moreira, em Porteiras, diz que nunca viu seca igual a esta.
SAFRA PERDIDA
Agricultores desistem do replantio
Em municípios do Centro-Sul, as consequências da seca começam na agricultura, com a perda da safra. Neste segundo semestre, os pequenos açudes começam a secar. Vem a crise de desabastecimento que atinge milhares de famílias. O quadro agrava-se com a dificuldade de alimentar os animais. Esse é o cenário atual na grande maioria das localidades.
O agricultor aposentado Francisco Martins dos Santos há meio século mora no Sítio Várzea Redonda, zona rural de Acopiara. “Planto todos os anos, desde criança, quando ajudava meu pai, mas neste ano acabou-se tudo”, conta em tom de tristeza, contendo as lágrimas nos olhos. “Faz tempo que não vejo uma seca deste tamanho”. Em um canto do alpendre da casa, ele guardou algumas espigas de milho seco, que conseguiu apanhar na lavoura de sequeiro que se acabou com a seca. “Por aqui choveu pouco e de maio para cá não caiu mais água”.
“O que consegui apanhar na lavoura está aí, no chão”. As espigas são pequenas e quase sem sementes, para tristeza do velho agricultor, cansado. “Plantei milho, arroz e feijão e ficou tudo perdido”.
Francisco Santos está desanimado e disse que não vai plantar mais. “Não adianta, desisti. Vou viver só da aposentadoria”. Os quatro filhos do casal Francisco dos Santos e Berenice Souza não ficaram presos à terra seca e árida da caatinga cearense, e partiram para São Paulo há quase 20 anos em busca de melhoria de vida. Os rebentos deixaram para trás o torrão natal e nunca mais voltaram. “Tenho poucas notícias deles”, disse o pai. “Por aqui não tem trabalho e a vida é muito difícil”.
Porém a gravidade da seca fica contida no campo, ao contrário do passado, quando agricultores fugiam para as cidades, em bandos, em busca de alimento e trabalho. Provocava morte de gente e de bicho e, principalmente, de crianças.
Nas últimas duas décadas muitas coisas mudaram. As crianças quase não morrem mais de diarreia e fome. Os programas sociais, como Bolsa Família e Garantia Safra, seguram os produtores no campo e aliviam a situação, apesar do reduzido valor recebido. “A seca deste ano é grande, mas ninguém invade mais a cidade como há 15 anos”, observa o padre Crisares Couto, pároco da Igreja Matriz de Acopiara. “As dificuldades são muitas, é preciso educar o povo, construir grandes açudes e distribuir água tratada, mas muita coisa mudou”.
Em muitas localidades, o problema é a distribuição de água. Na localidade de Chapada, zona rural de Quixelô, 80 famílias vivenciam essa realidade. Muitas moradias ficam em área alta e do alpendre das casas os moradores veem a água do Açude Orós, a menos de dois mil metros. Falta sistema de coleta e de distribuição. “Aqui não temos água, mas o açude Orós está bem aí na frente”, disse o agricultor Reginaldo Raimundo da Silva. “A água da chuva foi pouca e só ficou uns 40 cm na cisterna”. Os moradores ainda retiram água de um poço enlameado para serviços de limpeza da casa. Um total de 20 famílias espera ser beneficiada por construção de cisternas.
DRAMA
Depois da cheia, a dor da estiagem
Na Zona Norte do Estado, comunidades que no ano passado sofreram com as cheias hoje amargam a estiagem. Localidades inteiras ao redor do distrito de Taperuaba, em Sobral, já sofrem com a falta d´água. Com o pouco alimento que tem, temem passar fome. Os animais também estão sem pasto e as fontes de água estão cada vez mais distantes. A diretora da Associação dos Trabalhadores Rurais de Taperuaba, Francisca Vanderlânia de Araújo, conhecida como Vandinha, afirma que os programas do governo como Garantia Safra e Bolsa Família amenizam a situação.
Mesmo assim, para a agricultora Francisca Alves Sena, a dona Anízia, deveria haver frentes de serviço para manter os trabalhadores no campo. “Aqui já tem gente brigando por água. Quando chega um carro-pipa por aqui, coisa muito difícil, todos correm para ver quem pega mais água”, conta ela.
A agricultora também testemunha que os animais estão morrendo de fome e de sede. “Quem ainda tem um gadinho para criar vai ter que dar comida na mão. Se não for assim, eles vão morrer”.
Mãos calejadas
Em Santa Quitéria, um dos municípios que mais amarga perdas, o agricultor Antonio Mozart Magalhães, do Assentamento de Três Maria, compara a situação atual com a seca ocorrida em 1958. “Naquele ano, as plantações ainda enrramaram, este ano não”.
Com uma roçadeira e um martelo nas mãos calejadas e com a pele enrugada pelo tempo, Antonio Mozart tenta recuperar o que restou da última plantação, fazendo nova broca. Assim, o terreno já fica pronto para outro cultivo, se houver condição. “Espero um melhor inverno”, disse o agricultor, enquanto fixa o olhar em direção ao nascente.
Na localidade de Lameiro, em Pires Ferreira, o agricultor Luiz Gonzaga Lima disse que não plantou porque a chuva não foi suficiente. Para o sustento da família, usa o dinheiro do Bolsa Família. A sua situação é idêntica a das outras famílias da localidade. Algumas casas abandonadas revelam que a região poderá viver mais um período de êxodo rural.
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