O drama dos sem-água

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Ainda longe da universalização do abastecimento público de água, moradores do sertão pernambucano enfrentam as sequelas do consumo de água sem tratamento: o risco de doenças como diarreia é de 79% maior em casas sem cisterna.

No semiárido, onde vivem 20 milhões, a exclusão hídrica gera doenças e tira crianças da escola

SERTÂNIA (PE). Mãe de seis filhos e grávida do sétimo, Maria do Socorro Pereira, de 35 anos, abandonada pelo companheiro, chora quando fala das dificuldades para conseguir água na zona rural de Sertânia, no sertão pernambucano.

Sem água encanada em casa, ela só tem dois pequenos baldes, o que obriga os filhos a andar muitas vezes por dia para conseguir o que beber.

Cansados, quatro deles deixaram a escola, e Socorro perdeu o auxílio do Bolsa Família: Depois da falta de água, a fome reclama.

Na casa de chão de terra batida, tijolos artesanais, sem banheiro ou reboco, Socorro conta que as crianças bebem água sem filtrar, coada em pano, que vivem doentes e que, mesmo tendo ganhado um tambor (tonel de plástico), não teve dinheiro para forrar o fundo com cimento, já que estava furado.

Vizinha de Socorro, a lavradora Márcia Batista Siqueira, de 32 anos, conta que, durante anos, teve uma rotina cansativa.

Ela perdia três horas diárias em busca de água em barreiros (pequenos açudes) distantes. O caminho até eles era ruim, pelo meio da caatinga, pois temia ser atropelada com seu jumento na rodovia que corta o município, a 316 quilômetros de Recife.

Márcia recorda que os dois filhos Lucas, de 11 anos, e Pedro Márcio, de 7 anos viviam doentes, e diz que perdeu a conta de quantas vezes teve que leválos ao hospital: A qualidade da água não era boa. Os meninos viviam com diarreia. O menor, então, era um desastre conta ela, que agora conta com uma cisterna com capacidade para 16 mil litros de água, e ajuda os vizinhos que moram no Sítio Feliciano.

Universalização: sonho distante

A universalização da água ainda é um sonho distante para boa parte dos 20 milhões de nordestinos que residem no semiárido, dos quais 9 milhões nas áreas rurais. Em Pernambuco, a Companhia de Abastecimento de Pernambuco (Compesa) calcula em 94% a cobertura da população urbana. Mas na área rural os percentuais são tão insignificantes que nem sequer aparecem nas estatísticas.

A situação poderia ser ainda mais crítica nos vilarejos e distritos onde as adutoras estão distantes de chegar. Mas não é pior devido à maior mobilização da sociedade civil em defesa do fim da sede dos sertanejos. São 18 mil organizações populares que atuam na região e garantem o armazenamento de 5 bilhões de litros de água, através do Programa Um Milhão de Cisternas (PIMC). O programa, disseminado sob a coordenação da Articulação do Semiárido (Asa) nas regiões do agreste e sertão do Nordeste, garante água para um milhão 290 mil e 233 pessoas que antes dependiam do caminhão pipa ou do leito sujo de barreiros. Neles, durante as secas, os homens chegam a disputar o líquido dos reservatórios com os animais, sejam vacas, bodes, jegues, porcos ou cachorros.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, em 2008, 82,31% dos domicílios do país contavam com rede de abastecimento de água. Segundo um estudo ainda não publicado pelo Centro de Pesquisas Ageu Magalhães órgão da Fiocruz em Recife , o risco da ocorrência de diarreias em domicílios sem cisternas é 79% maior do que entre as famílias que as possuem. A investigação mostrou, também, que a prevalência da doença entre os que não têm o equipamento chega a 24,5% em adultos e crianças e cai para 7,7% entre os que contam com cisterna.

Para se ter uma ideia do problema, no mundo, cerca de 1,8 milhão de crianças morre todo os anos devido ao consumo de água suja, exatamente como a que o sertanejo sem reservatório consome.

Coordenadora da Rede das Águas, da SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro diz que a exclusão hídrica não é um problema que atinja somente o semiárido: Existe a falsa ideia de que só acontece no sertão, mas pessoas que vivem no Rio, em São Paulo e em outros centros urbanos enfrentam o mesmo problema. E vale lembrar que o Brasil detém a segunda maior reserva de água doce do planeta.

Também moradores de Sertânia, no sítio Barro Vermelho, Antônio Alexandre Goes, de 63 anos, e Maria Luiza Goes de Siqueira, de 55, sabem que não chegarão ao final do verão com a água acumulada pela chuva.

Os dois fornecem água para nove famílias vizinhas e para seis filhos e netos. Depois de passar a vida em lombo de jumento procurando água, o casal lembra sem saudade o período: Tinha vez que só achava água salgada. Os meninos viviam com disenteria lembra Maria Luiza, que já se prepara para recorrer a carros-pipa.

Perto dali, no sítio Salgadinho, o menino Luís Henrique Lins Roque, de 12 anos, não teve a mesma sorte e segue uma rotina cansativa: sai de casa às 5h, antes de ir à escola, para buscar água no jumento do pai, Luís Pedro Roque, de 62. Não muito distante da casa de Luís Henrique, Maria Elizabeth Tavares de Araújo, de 49 anos, sabe o que o estudante e sua família passam.

Para criar oito filhos, levou anos tendo que procurar água diariamente.

Quando achava, a água era ruim e contaminada. Meus meninos viviam no hospital com diarreia recorda.

Com cisterna em casa, Maria Elizabeth está mais sossegada: Uso a água só para beber e lavar prato. A cisterna mudou a minha vida, as diarreias diminuíram, eu me livrei de carregar água na cabeça, tenho mais tempo para me dedicar ao roçado comemora.

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