O fortalecimento da agricultura familiar para o desenvolvimento do Brasil
Claudia Job Schmitt, professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), fala sobre modelos de desenvolvimento agrícola e as implicações para a sociedade e o meio ambiente.
Ela esclarece as principais diferenças entre o modelo rural do agronegócio e o da agricultura familiar. Explica o que é agroecologia e fala sobre uma necessária transição no modelo agrícola no Brasil. Para ela, é preciso pensar em um redesenho da economia brasileira, que implique outra organização dos processos de trabalho e também das formas de acesso e controle dos recursos naturais.
Mobilizadores COEP – Qual é o modelo de agricultura vigente no Brasil? Como ele funciona e a que mercados atende?
R.: O Brasil é um país onde a agricultura assume expressões muito diferenciadas, em função, inclusive, da própria diversidade de contextos sociais, econômicos, ecológicos e culturais em que a atividade agrícola se desenvolve. Em linhas gerais, podemos identificar dois grandes modelos de agricultura, que foram se configurando, ao longo do tempo, em nossa trajetória de desenvolvimento. Temos, de um lado, uma agricultura com características empresariais, baseada, fundamentalmente, no trabalho assalariado e praticada, principalmente, em grandes estabelecimentos agrícolas. Várias designações têm sido utilizadas para identificar esse tipo de agricultura: agronegócio, agricultura patronal ou agricultura empresarial. Estas unidades produtivas encontram-se fortemente integradas aos circuitos mercantis, muitas delas ao mercado de exportação. A mecanização, o uso intensivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos, bem como de variedades genéticas de alto rendimento (inclusive transgênicas) desenvolvidas pela pesquisa, são uma característica importante deste modelo de agricultura que contou, para sua consolidação, com um forte apoio das políticas públicas. A produção agrícola, praticada em grandes estabelecimentos, com base na aplicação do pacote tecnológico da Revolução Verde*1 tornou-se o modelo hegemônico no Brasil, sobretudo a partir da década de 60.
Vale a pena destacar, no entanto, que esta não é única forma de organização da produção agrícola existente em nosso país. Os dados do Censo Agropecuário de 2006 publicados pelo IBGE apontam para a existência, no Brasil, de 4,3 milhões de estabelecimentos de agricultores familiares, representando 84,4% do universo total de estabelecimentos agrícolas. Trata-se, aqui, de uma agricultura de base familiar, praticada por pessoas que fazem do meio rural seu espaço de trabalho e de vida, e que tiram seu sustento de diferentes atividades, em arranjos que podem incluir, também, atividades não agrícolas. Uma parcela importante dessa agricultura encontra-se integrada ao mercado, ainda que com estratégias muito diferenciadas. Parte dela incorporou, também, ainda que de forma fragmentada, o pacote tecnológico da Revolução Verde. Trata-se, no entanto, de forma geral, de uma agricultura fortemente diversificada e que desempenha um papel importante na produção de alimentos para o mercado interno. Muitos desses camponeses e agricultores familiares, que passaram por esse processo de “modernização” estão, hoje, incorporando práticas produtivas de base ecológica, como uma forma, inclusive, de reduzir sua dependência em relação ao mercado de insumos. O reconhecimento, a partir de meados da década de 90, das especificidades dessa agricultura, pelo Estado e pelas políticas públicas, é um acontecimento importante, e que foi resultado de um intenso processo de luta política, protagonizado pelos movimentos sociais. Os benefícios dessas políticas já começam a se tornar bastante visíveis para a sociedade brasileira.
Esses dois modelos de agricultura, o agronegócio e a agricultura familiar, não devem ser pensados, no entanto, como categorias estáticas, mas como ordenamentos que são produzidos, reproduzidos e transformados historicamente, superpondo-se, em alguns momentos, mas entrando, também, muito frequentemente, em contradição, e assumindo configurações diferenciadas nos distintos contextos regionais.
Mobilizadores COEP – Qual o impacto do modelo vigente sobre a sociedade, especialmente as pessoas em vulnerabilidade social, e o meio ambiente?
R.: O modelo do agronegócio baseado nas grandes monoculturas é altamente concentrador tanto em termos de renda como no que diz respeito ao acesso à terra, à água e à biodiversidade. Um de seus principais impactos, nas últimas décadas, tem sido a expropriação dos camponeses e agricultores familiares de seus territórios e meios de vida.
Mas as formas atuais de organização da produção, do processamento e do consumo dos alimentos, não apenas no Brasil, mas em nível global, têm consequências diretas sobre a dieta alimentar e a saúde da população. A alta dos preços dos alimentos em nível mundial, intensificada, sobretudo, entre 2006 e 2008, deixou um triste saldo de 1 bilhão de famintos em todo o mundo. Essa crise foi resultado de um conjunto muito complexo de fatores, indicativos da vulnerabilidade de um sistema alimentar baseado em um número reduzido de commodities*2 e controlado por grandes empresas transnacionais. Praticamos uma agricultura de alto risco, fortemente dependente de insumos externos e extremamente vulnerável a distúrbios climáticos e oscilações de mercados. A alta dos preços do petróleo, as dinâmicas especulativas envolvendo a comercialização de alimentos e os impactos das mudanças climáticas em determinadas regiões produtoras foram alguns dos ingredientes da recente crise alimentar, cujos efeitos foram fortemente sentidos pelas populações mais pobres.
A padronização de uma dieta, baseada em alimentos processados, rica em açúcares e gorduras, fenômeno que pode ser considerado como sendo um dos produtos desse modelo, tem contribuído, também, para uma elevação dos níveis de sobrepeso e obesidade, não apenas no Brasil, mas em diferentes países do mundo. Este fenômeno vem assumindo, segundo diversos especialistas, um comportamento claramente epidêmico.
Somam-se a isso os impactos ambientais de uma agricultura baseada em grandes monoculturas e altamente demandadora de energia e insumos externos sobre o ambiente. As monoculturas implicam, por exemplo, a concentração de uma mesma espécie cultivada em grandes extensões de terra, em um sistema produtivo que tende a simplificar as relações entre os sistemas vivos, gerando desequilíbrios como, por exemplo, a multiplicação de pragas e doenças, o que faz com que o uso dos agrotóxicos se torne cada vez mais intensivo. O Brasil posicionou-se, nos últimos anos, como o maior consumidor de agrotóxicos em todo o mundo. Segundo matéria recentemente publicada no jornal Valor Econômico (Valor Econômico, 06/05/2010) as indústrias de agrotóxicos comercializaram, em 2009, um volume equivalente a 1,06 milhões de toneladas destes produtos, o equivalente a 22,3 kg por hectare. Um dos resultados disso é o fato de que, em média, 29% das amostras de alimentos analisadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2009, através do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), foram consideradas insatisfatórias por conterem resíduos de agrotóxicos acima do limite legal estabelecido ou por conterem resíduos de produtos cuja utilização não é permitida no Brasil. A contaminação por agrotóxicos é apenas uma das conseqüências do modelo predominante de agricultura que vem sendo praticado no Brasil. Há ainda a degradação do solo, da qualidade da água e o avanço das área de monocultura sobre os ecossistemas naturais.
Mobilizadores COEP – Qual seria uma alternativa viável para produzir alimentos no Brasil sem a utilização em larga escala de agrotóxicos? Como funcionaria?
R.: Esta alternativa passa pela reconexão da atividade agrícola com os ecossistemas locais, através do fortalecimento da agricultura camponesa e familiar de base ecológica. A agroecologia, entendida aqui como uma abordagem sociotécnica fundamentada tanto no conhecimento científico como no saber popular, é uma ferramenta importante nesse processo de transição. Uma agricultura diversificada, baseada em sistemas de uso múltiplo e que busca internalizar fluxos de energia e nutrientes através da dinamização de diferentes processos ecológicos, torna-se menos dependente de insumos externos, inclusive no diz respeito ao controle de pragas e doenças. Existe, no meu entender, uma convergência entre o desenvolvimento de uma agricultura social, econômica e ambientalmente sustentável e o fortalecimento das estratégias de reprodução da agricultura camponesa e familiar, em seu permanente esforço por assegurar a reprodução de recursos produtivos que são essenciais para a sobrevivência de sua família ao longo das gerações, incluindo aí a fertilidade do solo, as sementes, os animais e os processos naturais que garantem o abastecimento das fontes de água. Os camponeses e agricultores familiares, mesmo quando submetidos à matriz tecnológica disseminada pela Revolução Verde, tem demonstrado sua capacidade de inovação e de produção de conhecimentos, elementos essenciais na transição para um novo modelo de agricultura.
Mobilizadores COEP – Quais as diferenças entre o modelo atual do grande agronegócio e o modelo de produção familiar? Quais as prioridades adotadas em cada um? Poderia fazer esta comparação?
R.: A grande diferença entre os dois modelos é que a agricultura familiar busca renda e subsistência da família enquanto que o grande agronegócio visa o lucro e o produtor é um investidor capitalista. A transformação da matriz produtiva do agronegócio está diretamente relacionada com a dinâmica dos mercados. A reprodução econômica e social dos camponeses e agricultores familiares não se encontra submetida, no entanto, meramente, a uma lógica mercantil. Em sua unidade produtiva, o camponês ou agricultor familiar procura, pelo menos em princípio, preservar seu pedaço de terra para continuar cultivando seu solo, produzindo alimentos e garantindo sua subsistência ao longo dos anos. O meio rural é, para ele, um espaço de vida. Isso não significa que, em muitos contextos, a agricultura camponesa e familiar, submetida a pressões de diferentes tipos, não tenha também incorporado práticas produtivas degradadoras do ambiente. Mas suas dinâmicas de funcionamento são completamente diferentes das dinâmicas do agronegócio. Os agricultores familiares e camponeses estão entre as principais vítimas de uma agricultura degradadora do meio ambiente e, potencialmente, os principais interessados na transição para uma nova matriz tecnológica. Os capitais investidos pelo agronegócio têm condições de se deslocar através de um amplo território, abandonando áreas já esgotadas por um modelo predatório de agricultura.
Mobilizadores COEP – Uma das justificativas para o incentivo ao agronegócio é a necessidade de o país ter competitividade para atuar no mercado externo. Seria possível obter escala de produção para atender o mercado interno e exportar com o modelo agroecológico? Justificar.
R.: O Brasil é um grande exportador de produtos agrícolas primários de baixo valor agregado. Esse modelo foi resultado de um processo histórico de integração do país aos circuitos internacionais de comércio. Importante considerar, no entanto, que embora sejamos um dos maiores produtores e exportadores de café no mundo, não controlamos as etapas de beneficiamento e distribuição do produto no mercado internacional. Temos que pensar se queremos fortalecer a competitividade brasileira no mercado externo apenas nesses termos, ou seja, exportando produtos de baixo valor agregado. Importante contabilizar, também, o preço que estamos pagando pela degradação dos nossos recursos naturais nos marcos do atual modelo agrícola. A estabilidade econômica não resulta, apenas, do saldo da balança comercial ou da balança de pagamentos, mas, também, da resiliência*3 da nossa economia, de sua capacidade de resistir, por exemplo, a choques externos, como, os picos dos preços do petróleo, a alta mundial dos preços dos alimentos ou a eventual indisponibilidade de produtos utilizados na fabricação de fertilizantes – considerando, por exemplo, que 91% do potássio hoje utilizado na agricultura é importado. Noções como competitividade, escala de produção, entre outras, precisam ser repensadas na perspectiva de uma economia ecológica, que vê a economia não como um sistema auto-referente, mas que toma em consideração os fluxos de energia e materiais que sustentam a economia, preocupando-se, acima de tudo, com a qualidade humana e ecológica do processo econômico.
Mobilizadores COEP – O que seria necessário para o país fazer a transição do agronegócio para o modelo agroecológico?
R.: Acho que não existe uma receita e não tenho a pretensão de ter uma resposta para essa pergunta. No que tange às políticas de Estado, a decisão de dar início, de uma forma mais contundente, a um processo de transição para outro modelo, pode vir como resposta emergencial a um aprofundamento da crise – em suas várias dimensões econômica, social e ambiental. Seria mais desejável, no entanto, se pudesse surgir como resultado de uma ação mais consistente de planejamento, de médio e longo prazo, implementada a partir de uma determinada leitura de realidade. A democratização do acesso à terra, à água e à biodiversidade é um componente fundamental nesse processo de transição. Essas transformações não vão ser protagonizadas pelos agentes de mercado, o que não significa que estes agentes estejam hoje totalmente alheios à problemática ambiental e aos novos valores ambientalistas que estão emergindo na sociedade. Estamos falando, no entanto, de bens coletivos, que são patrimônio da população brasileira e de toda a humanidade como a terra, a água e a diversidade biológica de uso agrícola e alimentar. Um componente importante nesse processo de transição é a construção de um marco regulatório adequado ao desenvolvimento sustentável da atividade agrícola. No campo das políticas públicas, muitos são os instrumentos a serem utilizados nessa transição: financiamento, assistência técnica, apoio à estruturação de novos circuitos de mercado, mecanismos de regulação da política ambiental, políticas de desenvolvimento territorial, entre outros.
Mobilizadores COEP – Atualmente, o governo federal destina linhas de crédito, através do Pronaf, para fortalecer a agricultura de pequena escala. O montante destinado aos pequenos produtores é suficiente? Por quê?
R.: A quantidade de recursos disponibilizados para o crédito atualmente não é, talvez, o maior problema. Seria importante pensar em um melhor direcionamento desses recursos, de forma a impulsionar processos de transição agroecológica. É necessário pensar em uma reconfiguração, tanto dos mercados como das práticas produtivas utilizadas pelos agricultores, estimulando o abastecimento de mercados locais e regionais, através de circuitos curtos de comercialização*4, sem cair, no entanto, no que alguns autores chamam de localismo defensivo, pois a ampliação da autonomia dos agricultores em sua relação com os mercados precisa ser pensada como um fenômeno multidimensional. Isso não exclui, inclusive, em determinadas circunstâncias, a inserção em circuitos mais longos, o que não significa, necessariamente, uma subordinação a esses circuitos. O acesso à assistência técnica é, sem dúvida, uma questão chave. Não estamos falando, aqui, de qualquer assistência técnica, mas de uma assistência técnica orientada por uma perspectiva agroecológica e verdadeiramente renovada, em seus objetivos, metodologias e arranjos institucionais.
Mobilizadores COEP – Além de financiamento, que outras políticas públicas seriam fundamentais aprimorar ou implantar para impulsionar o modelo agroecológico?
R.: Na verdade é um conjunto de políticas. É preciso não só estimular a agricultura camponesa e familiar, mas, também, construir um marco regulatório capaz de estabelecer um novo enquadramento para as atividades econômicas desenvolvidas pela agricultura empresarial, com base em princípios de sustentabilidade social e ambiental. A recente pressão para a mudança no Código Florestal Brasileiro representa uma ameaça aos avanços que foram conquistados pela sociedade brasileira no que se refere à questão ambiental. Acredito também que deveria haver uma maior integração entre a política ambiental e a política agrícola, pois elas caminham juntas.
Mobilizadores COEP – Você acredita na ampliação do mercado mundial para produtos que não agridam ao meio ambiente? Por quê?
R.: A ampliação de um mercado diferenciado de produtos ecologicamente corretos, consumidos por pessoas de alto poder aquisitivo, não aponta, necessariamente, para uma redefinição das relações entre a economia e o meio ambiente. A consolidação desse segmento de mercado pode sinalizar, ou não, uma transformação mais abrangente dos padrões de consumo. É preciso verificar melhor, caso a caso. Destaco, aqui, como uma ação inovadora, a corajosa decisão do Congresso Nacional de aprovar a Lei da Alimentação Escolar que assegura que pelo menos 30% dos produtos a serem consumidos através do Programa Nacional de Alimentação Escolar deverão ser provenientes da agricultura familiar, com prioridade, segundo a regulamentação da lei, para produtos agroecologicamente cultivados. Trata-se, aqui, de uma inovação importante, que busca propiciar o acesso universal dos estudantes a uma alimentação de qualidade, incentivando práticas agrícolas preservadoras do ambiente, incidindo, diretamente, sobre os hábitos alimentares de crianças e adolescentes. Importante destacar aqui o importante papel desempenhado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, em todo esse processo. Nosso desafio, agora, é garantir, na prática, o cumprimento dessa legislação.
Mobilizadores COEP – O que uma rede como o COEP que atua em todo o Brasil em comunidades de baixa renda pode fazer para estimular a consolidação da produção familiar sustentável?
R.: Veicular a informação de forma séria, levantando questões importantes como a que estamos abordando nesta entrevista já é um passo importante de informar a sociedade e possibilitar escolhas mais conscientes.
*1 – Revolução Verde: Revolução verde refere-se à invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas que permitiram um vasto aumento na produção agrícola em países menos desenvolvidos durante as décadas de 60 e 70. O modelo baseia-se na intensiva utilização de sementes modificadas (particularmente sementes híbridas), insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos), mecanização e diminuição do custo de manejo.
*2 – Commodities: Pode ser definido como mercadorias, principalmente minérios e gêneros agrícolas, que são produzidos em larga escala e comercializados em nível mundial. As commodities são negociadas em bolsas mercadorias, portanto seus preços são definidos em nível global, pelo mercado internacional. São produzidas por diferentes produtores e possuem características uniformes. Geralmente, são produtos que podem ser estocados por um determinado período de tempo sem que haja perda de qualidade. As commodities também se caracterizam por não ter passado por processo industrial, ou seja, são geralmente matérias-primas.
*3 – Resiliência – capacidade de se recuperar ou de se adaptar a mudanças. Quando a resiliência de um ecossistema é rompida, isso quer dizer que ele perdeu essa capacidade e desaparecerá.
*4 – Circuitos curtos de comercialização – Os circuitos “curtos” de comercialização permitem diminuir o número de intermediários entre o produtor e o consumidor. O circuito mais curto é aquele em que o produtor entrega diretamente o seu produto ao consumidor (venda direta). Estes circuitos constituem oportunidades para criar valor acrescentado no território e reforçar a especificidade dos produtos. Estas formas de venda, através da ligação estreita que estabelecem entre o território, o cliente e o produto.