Dívida no campo: só a Viúva salva
Na falta de instrumentos mais eficientes, renegociação das dívidas para os agricultores volta à pauta
O endividamento dos agricultores voltou à pauta. No dia 29, o Conselho Monetário Nacional (CMN) cedeu à pressão dos ruralistas e autorizou os bancos a prolongar, por mais seis meses, o prazo para o pagamento de parcelas atrasadas da dívida referente às linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
As sucessivas prorrogações concedidas aos produtores nos últimos anos expõem uma questão crônica: a falta de políticas capazes de compensar os riscos da agricultura. Por mais que tenha incorporado ganhos formidáveis com os saltos de produtividade, o resultado do setor ainda depende de fatores como o clima, o câmbio e os preços externos – variáveis sobre as quais o produtor tem pouco ou nenhum controle.
Até os anos 1980, o governo procurava garantir a renda dos produtores por meio de aquisições diretas para os estoques públicos e da garantia de preços mínimos. Os recursos eram virtualmente ilimitados, e praticamente todo o financiamento concedido aos agricultores era de risco do Tesouro Nacional. Com as reformas liberais, na década seguinte, o Brasil praticamente aboliu a garantia à renda e transferiu o risco do crédito ao sistema financeiro. O discurso era de que os produtores deveriam buscar instrumentos de mercado para mitigar seus riscos. “O País liberalizou a tomada de crédito, mas não criou os mecanismos capazes de proteger os produtores dos riscos do mercado”, afirma Luís Carlos Guedes Pinto, vice-presidente de Agronegócios do Banco do Brasil.
Em 1996, o governo Fernando Henrique promoveu uma ampla renegociação das dívidas agrícolas acumuladas nos anos 80, resultado do descasamento entre a correção do passivo e dos preços mínimos em um período de inflação galopante e planos econômicos fracassados. Com as dívidas equalizadas e o impulso de um cenário que combinava aumento na oferta de crédito, preços atraentes no mercado externo e forte desvalorização cambial, os produtores colocaram o pé no acelerador e deram início a um dos mais expressivos ciclos de expansão da agricultura no País. Entre 2000 e 2004, a área plantada com soja no Centro–Oeste praticamente dobrou – de 5,5 milhões para 10,8 milhões de hectares.
O movimento foi amplamente estimulado pelo governo, que lançou o Programa de Modernização da Frota de Máquinas e Equipamentos Agrícolas (Moderfrota), com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e juros subsidiados pelo Tesouro. Naquele quadriênio, mais de 51 mil operações foram aprovada-s e -injetaram mais de 10 bilhões de reais para a aquisição de tratores e colheitadeiras. A produção de máquinas disparou 137% no período, e quase um terço da frota foi renovado. Eram tempos de euforia.
O período de vacas gordas durou pouco. Já na safra 2003/2004 o cenário começou a mudar e escancarou as deficiências estruturais do programa. Mato Grosso e Rio Grande do Sul sofreram com quebras de safra, o dólar – cuja cotação havia se aproximado dos 4 reais, em 2002 – convergia para níveis mais civilizados, e os preços internacionais, com o aumento da produção, recuavam. O resultado foi uma quebradeira geral. “Essa situação revelou a deficiência estrutural do Moderfrota: a ausência de limites ao endividamento do produtor. O governo ofereceu condições para que os agricultores ampliassem muito rapidamente a produção, incorporando áreas onde a produtividade inicial era ruim. Quando os ventos mudaram, o produtor estava descoberto”, afirma Fernando Pimentel, presidente da consultoria Agrosecurity.
Começava então a pressão dos produtores por uma ampla renegociação da dívida – no que nunca foram plenamente atendidos. De modo geral, o governo Lula adotou a estratégia de empurrar o problema com a barriga. Hoje, o estoque da dívida rural no Sistema Financeiro é de aproximadamente 117 bilhões de reais. Desse total, 5,8 bilhões, ou 4,9%, são considerados créditos podres. Apenas no Banco do Brasil, que responde por 60% das operações de crédito rural, os ativos problemáticos correspondem a 15% da carteira agrícola. Trata-se de um índice elevado, se comparado a outras carteiras – apenas o crédito para pessoa física, com juros estratosféricos, possui um rating pior.
Depois da Nova Zelândia, o Brasil é o país que menos subsidia sua agricultura (ao lado da Austrália). Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), as subvenções governamentais correspondem a apenas 5% da renda produzida no campo. Essa proporção é de aproximadamente 50% no Japão, 30% nos países da União Europeia e 20% no Canadá. Nos Estados Unidos, país que detém a maior produção agrícola e os mecanismos mais desenvolvidos de comercialização, a ajuda oscila em torno de 15%.
Além disso, o subsídio agrícola no Brasil é de má qualidade, já que é praticamente todo direcionado para o crédito. “Subsidiamos os juros, mas, se não houver garantia de renda, o produtor não paga suas dívidas. Vamos conviver com as renegociações enquanto o sistema não mudar”, afirma Rui Daher, consultor da Biocampo Desenvolvimento Agrícola.
Outros gastos também são questionáveis. Todo o ano, o governo libera aproximadamente 1 bilhão de reais para subsidiar o escoamento da produção de milho no Cerrado, região onde a cultura é considerada insustentável. O subsídio desestimula a produção de milho no Paraná, região onde a cultura é tradicional. Os próprios provisionamentos para o alongamento da dívida são considerados uma forma de subsídio pouco inteligente, já que não resolvem o problema e beneficiam produtores que poderiam pagar seus vencimentos. “É o tipo de medida que premia os maus pagadores e contamina todo um setor”, afirma Ademiro Vian, diretor–adjunto de produtos e financiamentos da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
O Congresso discute propostas para assegurar a renda do produtor – algumas, absurdas. O Projeto de Lei 5424/09, do deputado mineiro Carlos Melles (DEM), cria o Fundo Brasil de Orientação e de Garantia Financeira à Atividade Agrícola, transferindo ao produtor 500 reais anuais por hectare explorado. O fundo exigiria um montante anual de 25 bilhões de reais dos cofres da União. Se aprovada, a medida vai agravar ainda mais a brutal desigualdade no campo, beneficiando especialmente os grandes produtores.
Segundo especialistas, faz mais sentido ampliar o seguro rural e aperfeiçoar os instrumentos de crédito e apoio à comercialização. “Como os recursos são limitados, é preciso, antes de qualquer coisa, melhorar a estrutura do gasto com agricultura no Brasil”, afirma Guedes, do Banco do Brasil. Os investimentos em logística, que reduzam os elevados custos com o transporte da safra no Mato Grosso, também seriam bem-vindos, aumentando a competitividade dos produtores. Mas que não haja dúvidas: “O Brasil apenas sai desse ciclo perverso se garantir a sustentação dos preços agrícolas. E, para isso, não há solução de mercado”, afirma Ademiro Vian, da Febraban.