Perigo no campo e na mesa
Banidas em mais de 30 países, três substâncias químicas altamente tóxicas ainda estão presentes em pequenas lavouras pernambucanas. Endosulfan, acefato e metamidofós são defensivos agrícolas da pior espécie, sinônimos de perigo mundo afora. O consumo ou exposição prolongada a estes produtos trazem sérios problemas de saúde: desregulação hormonal, disfunções no sistema nervoso, depressão, aumento nas chances de desenvolver cânceres e má formação embrionária.
O uso deles está em reavaliação no Brasil desde 2008. Permitidos por enquanto, são encontrados com facilidade, aplicados sem orientação técnica e utilizados sem nenhuma proteção por agricultores familiares do Estado. O resultado dessa combinação é um grave caso de saúde pública, dano ambiental e entrave para o desenvolvimento econômico da agricultura.
Os últimos dados consolidados da Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa), referentes a 2009, constataram a presença acima do permitido dos três agrotóxicos em pepino, pimentão, beterraba, repolho, alface, tomate e couve-flor comercializados diretamente aos consumidores. Os produtos vieram das cidades de Vitória de Santo Antão, Gravatá, Agrestina, Sairé, São Joaquim do Monte, Petrolândia, Salgueiro, Iguaraci e Camocim de São Félix. E também de fora do Estado – da Paraíba, Espírito Santo, Bahia e Santa Catarina. Ao todo, 34% dos hortifrútis examinados estavam com quantidades de resíduos de agrotóxicos acima do normal (ver arte nesta página).
Todos os meses, a Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária (Adagro) promove a coleta de até 18 artigos diferentes, de uva à cebola. As mercadorias são obtidas no Centro de Abastecimento Alimentar de Pernambuco (Ceasa-PE), supermercados, distribuidoras e produtores. São examinadas no Labtox, laboratório do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep).
Uma informação importante aos consumidores: a fiscalização é rígida nos supermercados, em virtude de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2002 entre o Ministério Público de Pernambuco e as principais redes que atuam no Estado. Junto com as feiras orgânicas são os locais mais seguros. Também vale a ressalva que, como o volume de produtos vendidos na Ceasa-PE é enorme, os resultados negativos não condenam todas as mercadorias vendidas lá.
O chefe de Inspeção Vegetal da Adagro, Silvio Valença, explica que o problema tem origem nos pequenos agricultores. Por falta de conhecimento e assistência técnica, eles perpetuam a cultura do erro há anos. Geração após geração trabalham sem proteção, aplicam de maneira errada os venenos e não guardam devidamente as embalagens vazias. Outro foco de irregularidades são “sobras” de médios e grandes cultivadores. São mercadorias rejeitadas em testes de qualidade para serem vendidas no mercado externo ou a compradores de maior porte. Terminam desovadas no comércio informal, em feiras livres, barracas e carroças de rua e sinais de trânsito.
O endosulfan está com data para ser extinto no Brasil. Em 31 de julho de 2013 não poderá mais ser aplicado em solo brasileiro, segundo decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicada na última segunda-feira. Restam, portanto, três longos anos de convivência. Nesse tempo, a previsão é que as vendas desse produto disparem, uma forma dos fabricantes multinacionais zerarem seus estoques no Brasil, maior consumidor mundial de agrotóxicos. “Somos os maiores consumidores destas substâncias, mas não somos o maior cultivador de produtos agrícolas. Essa é a maior contradição, que derruba as afirmações de que os agrotóxicos são imprescindíveis para o aumento da produção”, argumenta a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora da Universidade de Pernambuco (UPE), Lia Giraldo.
As estatísticas de intoxicação são imprecisas, em virtude da subnotificação nas unidades de saúde. No interior, o agricultor muitas vezes chega se queixando de dor de cabeça, cansaço, fraqueza nas pernas. São os primeiros sinais de que o veneno está provocando estragos no corpo. Mas, por conta de um diagnóstico desleixado, toma um analgésico e volta para casa. No dia seguinte está aplicando novamente o agrotóxico sem proteção. Os casos de intoxicação aguda – que permitem identificar logo terem sido provocados pelos defensivos agrícolas – são de tentativas de suicídio.
Em um armário do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Hospital da Restauração ficam guardadas várias garrafas de agrotóxicos, identificadas com o nome dos pacientes que os ingeriram. No primeiro semestre de 2010 foram registrados 370 casos, com sete mortes. Homens de 18, 20, 30, 41 anos. Beberam endosulfan ou metamidofós durante crises de depressão. “Acontece que um dos malefícios desses agrotóxicos para a saúde é justamente a depressão. Após o uso contínuo, os pacientes podem ter desenvolvido o quadro e ingerido os venenos para se matar. E mesmo que não tenham sido os causadores, se fossem proibidos no Brasil, não estariam ao alcance das pessoas”, comenta a chefe do Ceatox, Lucineide Porto.
Manter agrotóxicos banidos mundialmente gera custos enormes para o País. O Sistema Único de Saúde (SUS) precisa bancar internações que chegam a até um mês em UTIs. “São pacientes caríssimos”, resume Lucineide Porto. Alguns precisam passar por hemodiálise. Há ainda os gastos previdenciários, para trabalhadores rurais aposentados precocemente com problemas de saúde. Por fim, as perdas econômicas. O professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ricardo Chaves, afirma que o primeiro entrave é a fuga de compradores externos, exigentes quanto à sanidade dos produtos. “Os pequenos agricultores de nações desenvolvidas recebem muito apoio dos governos. São, inclusive, defendidos em rodadas de comércio internacional. Os nossos não têm sequer assistência técnica”, complementa.
Entre a ignorância e o veneno
Uma atendente do posto de saúde municipal da comunidade de pequenos agricultores de Natuba, em Vitória de Santo Antão, confirma: “Aqui se usa muito veneno. Muito mesmo”. Nas margens da BR-232, pequenas terras, de um a dois hectares, abrigam hortas de cebolinha, alface, alecrim, coentro, arruda. Uma vez por semana, os agricultores aplicam agrotóxicos, conforme recomendou um agrônomo que passou por lá “antes da Copa”, informa um deles.
O processo é feito até a terceira semana de cultivo. Nascido e criado na comunidade, Wilson Pereira da Silva, de 27 anos, não suporta o cheiro do defensivo. Sente logo dor de cabeça. “Peço para um dos meninos que me ajuda colocar”, diz. A 300 metros da sua plantação, Joselito de Souza guarda uma garrafa de metamidofós no alto de uma prateleira. “Se a gente não passar o veneno a gente vai passar fome”, justifica. Tem medo? “Todo mundo tem”. Já passou mal alguma vez? “Nunca”. Perto dali, um rapaz aplica o agrotóxico sem nenhuma proteção.
Os produtores são cientes dos problemas. Não os de saúde, mas os provocados no bolso. Há dois anos, a fiscalização apertou o cerco à comunidade. Após identificar grau elevado de resíduos nos artigos oriundos de lá, ameaçou proibir a entrada de produtos de Natuba na Ceasa-PE. Os agricultores lembram do episódio como uma se fosse uma catástrofe, uma cheia. Receberam uma orientação-relâmpago e resolveram os problemas mais gritantes. Abandonaram, por exemplo, o uso do Tamaron. À base de metamidofós, o agrotóxico é uma “assombração” na região. “A gente abria a garrafa lá longe (apontando para uma distância de seis metros) e sentia o cheiro daqui. Era pior do que carniça”, conta Sílvio Inácio da Silva, de 55 anos, da comunidade de Figueira. Há dois anos ele e o irmão se renderam ao cultivo orgânico. De forma geral, o cenário no Estado é de descumprimento das regras. “Muitos fazem o ‘coquetel’, misturando mais de um veneno. Para combater os malefícios à saúde, tomam leite ou chá de erva-cidreira. Acham que é o suficiente. A maioria é analfabeto”, resume o gerente-geral da Apevisa, Jaime Brito.
É fácil chegar em uma loja de ferragens no interior e adquirir agrotóxicos. Sem receituário, sem nota fiscal. O balconista é o agrônomo. O produtor aplica sem proteção e mais que o permitido. Após anos de absorção, o solo da região já está sacrificado. É gritante a maneira como é feito o descarte das embalagens vazias. O certo seria lavá-las três vezes e encaminhá-las ao vendedor – que as entregam nas centrais de recolhimento (em Petrolina e Carpina). Só que após o uso, os tubos ainda sujos são jogados em uma pequena casinha, junto com a bomba que é colocada nas costas para aplicação, também suja. São dos piores. De metamidofós e endosulfan. Ficam lá, misturados a garrafas térmicas, roupas e um rádio. Bem do lado de um tanque de água represada, onde duas mulheres lavam as alfaces que acabaram de ser retiradas da terra para seguirem direto para a venda.