Riqueza genética, um patrimônio dos povos

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A cada dia ainda se fortalece a “ciência da negação”, é a negação dos saberes e conhecimentos dos povos – incluído os povos do Semiárido. De forma avassaladora, avança a erosão do patrimônio genético. Plantas e animais, adaptados ou endógenos, desaparecem como que por encanto. Vários estudos dão conta de que se não mudarmos a lógica de uso da natureza, a caatinga corre o risco de desaparecer. Embora importante, este não é o centro deste texto.

Conquanto seja um debate aparentemente em desuso em nosso meio, é preciso enfatizar que a “ciência da negação” é obra do capitalismo, cuja intenção é transformar tudo em mercadoria, tentar a todo custo, determinar o que é legítimo e válido, e, por conseguinte, o que não deve ser legítimo, e por tanto, não válido.

Contraditoriamente, mas não por acaso, “Tio San” (USA), tem hoje o maior banco de Germoplasma do mundo. “São unidades conservadoras de material genético de uso imediato ou com potencial de uso futuro”. São sementes que foram negadas e posteriormente subtraídas das comunidades tradicionais, expropriadas pelo grande capital. Este não é um movimento desprovido de sentido e interesses, e estamos no meio deste furacão.

Neste sentido, é importante localizar e reconhecer o importante papel que a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) pode e precisa desempenhar neste contexto. Os programas que a ASA desenvolve –  Um Milhão de Cisternas, P1MC, e Uma Terra e Duas Águas, P1+2 – precisam reforçar as dinâmicas e lutas dos povos do Semiárido pelo direito à terra como território de identidade; à água para a segurança hídrica: beber, produzir alimentos e demais usos; de forma especial, o direito ao patrimônio genético através da formação e fortalecimento de casas e bancos de sementes, além de um conjunto de outras estratégias e iniciativas de preservação, conservação e manutenção das sementes e culturas no Semiárido.

Quando tratamos de sementes, não podemos nos restringir às sementes vegetais, flanco que precisa cada vez mais de combatentes, porém, vale destacar outra frente também muito importante, que versa sobre os riscos que as sementes de animais, várias raças, correm de desaparecer, a exemplo das cabras, animal símbolo do Semiárido. O “canto da sereia” fala de melhoramento de raças. Que raças seriam melhores do que aquelas que vivem e vivem bem nas condições da região semiárida?

No rol dos desafios, vale lembrar que na execução do Projeto Demonstrativo do P1+2, dentro de nossa estratégia de constituir suportes aos sistemas de produção, chamados de “caráter produtivo”, nos deparamos com uma realidade mais que preocupante: nossa baixa capacidade de estocar sementes de hortaliças. Constatamos que apesar de todos os esforços na constituição de bancos e casas de sementes, estes estão centrados, quase na sua totalidade, no armazenamento de sementes de culturas anuais. Esta realidade parece nos propor outros diálogos e questões, dentre as quais, refletir qual o lugar das hortaliças na dieta nutricional e quais delas dialogam com as nossas muitas identidades alimentares e nutricionais. Como ampliar este reflexão?

Na centralidade do debate, reforçamos que para a convivência plena com o Semiárido, nossa estratégia de associar segurança, soberania e identidade alimentar e nutricional, ou seja, produção de alimentos em diversidade, quantidade e qualidade, precisa está diretamente relacionada à necessidade de manter e defender o patrimônio genético no Semiárido. Nossa agrobiodiversidade.

Oportunamente, na prática do cotidiano e na continuidade de nossa ação enquanto programa, estamos desafiando e sendo desafiados, a partir de uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, a fazer uma experiência dentro do P1+2 na valorização e visibilização do trabalho com plantas nativas ou adaptadas, cabras e galinhas caipiras, o que, para além do trabalho organizativo, possibilita a identificação do potencial genético existentes nos 26 territórios de atuação do P1+2, organizado em inúmeras microrregiões de atuação do P1MC. Podemos e devemos fazer esta ação de forma articulada.

Associado a esta parceria com o MDA, precisaremos tornar o debate sobre patrimônio genético algo constante na ação dos programas da ASA, trazendo-o para o centro de nossa estratégia de soberania e segurança alimentar e nutricional, de forma integrada à lógica de cada família. Por sua vez, poderemos influenciar positivamente na tarefa de guardiães e guardiões de nosso patrimônio genético.

Para além de nós mesmos, precisamos ecoar este debate nos muitos espaços de construção e reflexão das políticas públicas, de forma especial nos muitos conselhos nacionais, estaduais e municipais que ocupamos. Um bom exemplo dos efeitos positivos desta ação propositiva é o constante e imprescindível papel desempenhado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) nos muitos momentos de negociação e defesa pela continuidade e ampliação dos programas da ASA, P1MC e P1+2.

Finalizando, enquanto processo dialético há sempre a necessidade de expressar, registrar, refletir e relocalizar os rumos da caminhada. Estes passos precisam cada vez mais ser sistematizados e intercambiados, são carregados de sentido, construídos enquanto ação de partilha e construção de saberes.

 *Sociólogo e coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da ASA.

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