Reviravoltas no grande sertão

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Mudança de paradigma é um termo vistoso para uma idéia de, pelo menos, dois mil anos: segundo o esquecido Jesus de Nazaré, não adianta querer melhorar um pano velho com um retalho novo porque o cerzido rói o novo e, portanto, é melhor trocar logo por um pano inteiro novo.

Não é de outra coisa que se trata, na última década, no sertão da caatinga senão da confecção sorrateira e festiva de uma roupagem inteira nova para os homens e mulheres que desejam viver onde moram.

Há dez anos a alvissareira 3ª Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação – COP3 da ONU, em Recife, não provocou tanto efeito quanto o encontro paralelo da nascente Articulação do Semiárido Brasileiro – logo batizada com o gracioso apelido de ASA-Brasil – que congregava grupos interessados em subverter a postura de exílio miserável imposta aos povos do semiárido para beneficiar meia dúzia de coronéis barrigudos. No dia 26 de novembro de 1999, contrariando as expectativas do mundo piedoso com os pobres coitados sem água, gente aliada aos supostos pobres-coitados-sem-água anunciava a festiva e profética Declaração do Semiárido Brasileiro, sinal convincente de que a roupa velha já não nos servia. Os povos do semiárido e aqueles que se apaixonaram pela caatinga proclamaram a firme disposição de não só morar aqui, como quem está prestes a ir embora, mas de viver aqui; a verdade de que o nosso sonho não é se escafeder para terras alheias, que nosso destino não é migrar ou morrer de sede, que é possível viver na caatinga, resgatando e melhorando tecnologias adequadas para o calor intenso, assim como vivem os esquimós no gelo seco do Ártico, assim como vivem os indígenas nas alturas de ar rarefeito dos Andes, assim como vivem os cosmopolitas em meio ao barulho e à multidão da Grande Cidade – não se com-bate o mundo onde nos foi dado existir, se con-vive!

Silenciosamente, mas obstinadamente, abandonamos o delírio televisivo de que aqui chovesse como chove no sudeste: a gente da terra árida foi despertando para o fato de que não é exatamente água que falta, mesmo sendo inegável que a chuva não é abundante – é a ela que devemos recorrer e com ela que nos é dado viver; fomos descobrindo que a melhor forma de agradecer pela chuva é guardando o presente que ela nos dá; fomos inventando formas adequadas e eficientes de segurar a rápida água, aprendendo a utilizá-la da melhor maneira e tratando de não profaná-la – como se fosse mercadoria – mas de cuidar dela como se fosse sagrada. Pela organização e acúmulo de forças, os povos do semiárido conseguiram até o impensável projeto de fazer o governo – naturalmente a serviço de projetos poderosos, para os quais a autonomia é o pior dos princípios – destinar parte do seu dinheiro para esse projeto tão grande quanto modesto: grande pelo valor ético de possibilitar que homens e mulheres assumam em plenitude e liberdade a vida em seu lugar, e modesto porque não quer se imiscuir ao modo de vida capeta-lista (como dizia o profeta Gentileza), cujos projetos vitoriosos são feios como a competição selvagem, a destruição da natureza, a alienação e o empobrecimento de milhões de pessoas.

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