Territórios agroecológicos estão sendo arrendados por grandes empresas de energia renovável à preço de banana.
Lívia Alcântara
O valor pago aos agricultores pelas grandes empresas de energia eólica pelo arrendamento de 1 hectare de terra para implantação dos parques eólicos é, na maioria dos casos, R$1,00 ao mês, explicou o advogado Claudionor Vital, durante a oficina que reuniu cerca de 40 agricultores e agricultoras durante o X Encontro da Articulação Semiárido Brasileiro (EnconASA) para tratar do impacto da implantação dos grandes parques eólicos e solares nos territórios agroecológicos do Semiárido.
Em uma comparação simples, para se ter uma ideia de o quanto esse valor é irrisório, se um agricultor criar uma galinha neste um mesmo hectare, a ave lhe dará de lucro, com a venda de ovos, R$45,00 ao mês. Esse foi o cálculo que os participantes fizeram ao tomarem conhecimento das letras miúdas dos contratos que muitos ali presentes já foram pressionados a assinar. Francisca Silva, da comunidade Baixa da Quixaba, em São Bento do Norte (RN), foi uma delas:
“Primeiro passou a linha de transmissão. Chegaram na minha casa com o papel já para eu assinar e com a conta feita de quanto eu deveria receber para deixar passar a linha de transmissão. Disseram que todos já tinham assinado e se eu não assinasse, passariam a linha igual”, contou indignada.
Os contratos anulam os direitos dos agricultores rurais
O advogado Claudionor é integrante do Grupo de Trabalho em Energias Renováveis da ASA Paraíba, e teve acesso a muitos contratos assinados pelos agricultores. Para ele, o que está acontecendo no Nordeste é um processo de expropriação dos territórios.
“O que é o contrato de arrendamento? O dono da terra cede o uso da terra para outra pessoa, o direito de tirar os rendimentos destas terras. A partir da assinatura do contrato, a empresa pode fazer o uso e a gestão da terra. A pessoa que assina o contrato transfere este direito para a empresa”.
Uma vez assinados os contratos, que tem data de validade de 35 anos, as e os agricultores perdem o direito a condição de segurado especial para se aposentar, pedir auxílio maternidade e auxílio doença. Perdem também o direito ao Cadastro de Agricultor Familiar (CAF), que lhes dá a possibilidade de conseguir crédito.
Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, ainda desinformados, já começaram a se deparar com reclamações de agricultores que tiveram suas aposentadorias canceladas, relata Simão Salgado, agricultor de Caetés, no agreste de Pernambuco.
Simão teve que sair de sua propriedade depois de ter a vida completamente afetada pela construção de dois parques eólicos e um solar no seu território. Hoje, ele, seu filho e sua filha já estão parcialmente surdos devido ao barulho da turbina eólica construída a 200 metros de sua casa.
“São ventos da morte“
Além do barulho, os parques eólicos modificam a rota dos pássaros e causam impactos em outros animais.
“As vacas caíram de produção, meu filho criava suínos, mas agora quando eles completam 35kg, começam a se comer de estresse. Nós criamos ovelha e agora temos que criar os filhotes na mamadeira, porque elas parem e não amamentam. As galinhas não estão conseguindo botar pintos, nasciam 18, hoje só 4 e ainda atrofiados, cegos”, relatou Simão para os colegas presentes.
Coberturas jornalísticas e pesquisas científicas tem apontado os impactos dos parques eólicos na saúde das comunidades e cunharam o termo “Síndrome da Turbina Eólica” para se referir ao aparecimento de doenças como depressão, ansiedade e muitos ouros sintomas. Câncer de pele e perda de audição também tem sido associados a chegada dos parques eólicos. Mas o impacto dos grandes empreendimentos é ainda maior, porque eles apartam as famílias agricultoras de seu modo de viver, de sua cultura:
“Minha melhor lembrança é a paz do nascer do sol com o cantar dos pássaros, o que eu não tenho mais. Acordo com barulho de uma turbina e só durmo dopada”, relatou Francisca Silva em lágrimas durante a Oficina de Energias Renováveis.
Francisca e outros agricultores e agricultoras afetados por estes mega empreendimentos organizaram a oficina de Energias Renováveis na intenção de alertar a rede da ASA para o que está por vir e construir alternativas para seus futuros.
“Precisamos mudar esta forma de implementar os parques eólicos!”, bradou Maria Ângela dos Santos, agricultora de Mata Grande (AL) e integrante do grupo Salvaguardas Socioambientais para Energias Renováveis, uma articulação da organização Nordeste Potência.
Quando a empresa Casa dos Ventos chegou em seu território para construir um parque eólico, Ângela soube o que fazer e começou a mobilizar sua rede, junto ao ministério público, para exigir participação popular neste processo.
No Polo da Borborema, um território agroecológico assediado pelas empresas eólicas, acontece anualmente a Marcha pela Vida das Mulheres e Agroecologia, que já há alguns anos vem denunciando estes empreendimentos como a maior ameaça à Convivência com o Semiárido. Em 2018, eles descobriram duas antenas que estavam medindo os ventos da região e começaram a se organizar para levar informações às famílias agricultoras.
“Fizemos muitos intercâmbios de agricultores, em lugares atingidos, com as mulheres e com as juventudes em defesa dos territórios. Decidimos que a Marcha que nós fazíamos tinha que pautar este tema. Estamos resistindo, os agricultores estão dizendo não. Mas as empresas continuam lá”, contou Maria do Céu, integrante do Movimento Sindical do Polo da Borborema.
Carta aos povos do Semiárido
Ainda durante o X Enconasa, agricultoras e agricultores do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Minas Gerais leram em plenária uma carta denunciando o atual modelo energético em curso no Semiárido e apontando este como a principal ameaça o projeto de Convivência com o Semiárido que vem sendo construído pela ASA.
“Se estávamos construindo um semiárido próspero e digno, o que já encontramos em muitos territórios são cisternas rachadas; mulheres violentadas e voltando a carregar água; produção de alimentos reduzida pelos efeitos ambientais dos grandes projetos; jovens sem opção ou oportunidades de produzir, perda de direitos, incluindo os previdenciários; famílias inteiras adoecidas; casas abandonadas; comunidades e o campo esvaziados; aumento da periferia das cidades com o deslocamento de famílias inteiras refugiadas da destruição ambiental; aumento da miséria e da fome, e a ameaça à soberania e segurança alimentar e nutricional dos povos do semiárido”, diz o documento.
O coletivo conclama toda a rede da ASA a a criar frentes de resistência a esse modelo. Como alternativa, defendem “agroecologia e a produção descentralizada, comunitária e popular de energia como caminhos possíveis para enfrentamento da crise climática”.
O X EnconASA acontece desde segunda-feira (18), nas cidades de Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE) com o tema “Semiárido vivo: por justiça socioambiental e democracia participativa”. O encontro tem o apoio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Prefeitura Municipal de Piranhas, da Cáritas Francesa e patrocínio da Fundação Banco do Brasil.
Fotos: Thaynara Policarpo