Presidenta do Consea analisa avanços e desafios para garantia da soberania e segurança alimentar no Brasil

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Maria Emília esteve no Recife para participar de conversa sobre segurança alimentar| Foto: Catarina de Angola 

No último dia 08, Maria Emília Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) esteve no Recife para participar das comemorações dos 20 anos da organização Centro Sabiá. Na conversa, Maria Emília refletiu, junto com os presentes, sobre o contexto brasileiro na busca da garantia da soberania e segurança alimentar. Ela destacou avanços e dificuldades dessa luta, no contexto urbano e rural, e que perspectivas são colocadas para as populações tradicionais, que segundo ela estão “cada vez mais encurraladas pelo agronegócio”. Na entrevista abaixo, ela fala sobre os temas abordados no evento e destaca a importância do Consea.

ASACom – Maria Emília, você destacou que, de certa forma, o Brasil vem passando por uma transformação no contexto alimentar. Percebemos que nos últimos 11 anos, o governo tem investido em políticas e ações que visam acabar com a fome e garantir a segurança alimentar da população. No entanto, o sistema alimentar brasileiro ainda está concentrado nas mãos de algumas empresas que controlam as sementes e reforçam agrotóxicos e transgênicos. Por que é tão difícil mudarmos esse contexto?

Maria Emília Pacheco – Esse é um caminho escolhido pelo Brasil. Eu diria até que é uma expressão de lutas de classe. Existem forças hegemônicas que conduzem essa história e esse modelo, que reflete hoje as mudanças históricas pelas quais o País foi passando. Nós também não podemos perder de vista que o impulso a esse modelo agrícola vem de décadas. Ele foi se aprofundando e existem hoje novas formas de valorização do capital, de apropriação da natureza que tornaram mais agudos os conflitos. Nós vimos aqui que há um tempo não existia sobre os povos tradicionais a pressão sobre os territórios da maneira que existe hoje. O Brasil foi incorporando cada vez mais esse padrão, que é dito desenvolvimento. Isso não significa que historicamente não tenha havido forças de embate, que se contrapõem a isso. A existência no Brasil hoje de inúmeras experiências agroecológicas, a existência no Semiárido de uma proposta que é da convivência são expressões da resistência.  No Semiárido, estávamos poucos anos atrás falando na indústria da seca, no combate à seca. Diria até que essa mudança da perspectiva de convivência com o Semiárido dialoga com a construção da proposta agroecológica na região e isso é uma manifestação de resistência. O campesinato continua resistindo, criando e recriando formas de resistência, inovando nas suas práticas e isso é extremamente importante e estimulador dos processos. A gente não pode perder de vista a leitura dessas dinâmicas que se contrapõem e que ao mesmo tempo em que negam o modelo dominante, afirmam outras propostas.

ASACom – O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi reimplantado em 2003, e hoje você está na presidência. Que avaliação você faz desses 10 anos do Consea?

Maria Emília – A recriação do Consea foi muito importante e tem sido cada vez mais um lugar de concertação entre a sociedade e o governo. O lugar da expressão crítica também. Quando necessário denunciamos. Mas também valorizamos iniciativas importantes, fazemos sugestões de novas políticas. É o lugar da combinação desses vários papéis. É um espaço democrático e esses espaços são fundamentais na construção de uma sociedade que quer, no final das contas, ter o direito à alimentação garantido, uma alimentação de qualidade. E algumas conquistas a gente podia mencionar. Nesse espaço de 10 anos, nós temos uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Temos as conferências que definiram diretrizes, que hoje estão consubstanciadas na política de segurança alimentar que é bem ampla e tem várias diretrizes. Temos alguns exemplos muito concretos de programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que nasceu no Consea, em 2003. E o Consea tem sido sistematicamente o lugar de monitoramento desse programa. A Lei de Alimentação Escolar foi discutida também no conselho. Os aspectos que tornam a lei universal, incluindo a valorização do produto regional no cardápio, além da compra dos 30% da agricultura familiar são aspectos que dão para essa lei um sentido mais amplo, porque a alimentação escolar já existia, mas ganha outro sentido a partir da lei. Também finalizamos e, já foi encaminhado ao governo, uma proposta de política de abastecimento alimentar. Isso vem sendo debatido desde 2005, e finalmente no ano passado formulamos uma proposta de Projeto de Lei que está no Executivo.

O Consea produziu um sistema de análise com indicadores sobre segurança alimentar muito importante, com a participação ativa de universidades, em diálogo também com o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], e isso nos dá uma indicação de como nos pautar no monitoramento de políticas. O debate, por exemplo, sobre a convivência com o Semiárido permitiu que a gente aprofundasse o sentido das propostas que uma articulação tão importante como a ASA [Articulação no Semiárido Brasileiro] vem construindo historicamente com as populações. O último debate foi duro, porque fomos bem incisivos na crítica às cisternas de polietileno. Também insistimos nesse debate com o governo sobre a importância que é uma articulação como a ASA ter o reconhecimento do governo e desenvolver esse trabalho, que não tem o sentido de implantar uma tecnologia, mas é um trabalho sociopolítico, educativo, baseado no fortalecimento do tecido associativo nessas comunidades. E cada vez mais a ASA vem dialogando com a proposta agroecológica, cimentando essa visão com o Programa Uma Terra e Duas Águas [P1+2] e mais recentemente com o debate das sementes.

ASACom -Você citou as sementes e elas também remetem a populações tradicionais. E os índices de subnutrição permanecem ruins entre essas populações. O que o governo deve fazer para mudar essa realidade? 

Maria Emília – Primeiro precisa assegurar o direito ao território dessas populações. Existe um decreto de número 6040, que eu nunca esqueço o número de tão importante que é, porque ele reconhece e dá visibilidade a essas populações. Mas é preciso serem asseguradas políticas específicas. Os indígenas continuam lutando lá no Consea, e nós temos apoiado, para que haja renovação de um programa que se chama Carteira Indígena, em que os recursos eram repassados diretamente para os povos indígenas e aplicados em projetos específicos nos seus locais de vida. Eles precisam ter a garantia do território, as políticas têm que ter esse olhar pluriétnico. Não podemos em um Brasil tão diverso, e com essas populações com suas particularidades, ter política universal achando que vai chegar da mesma maneira em todos os biomas, para todas as populações. É necessário assegurar essa diferença. Por exemplo, as cestas de alimentos que os indígenas e quilombolas ainda recebem muitas vezes contêm alimentos de forma totalmente inapropriada aos seus costumes, aos seus hábitos alimentares. Dizemos no Consea que as políticas precisam ser olhadas da visão do etnodesenvolvimento. Então é preciso mergulhar um pouco mais nessas realidades, dialogar com os saberes dessas populações, com suas práticas. Nós temos uma dificuldade a meu ver, no Brasil, de lidar com essas diferenças, de entender que precisamos tirar partido dessa sociobiodiversidade que é construída pelas populações. E as políticas têm que levar em conta isso. Lamentavelmente nem sempre isso é considerado e a luta continua.

ASACom – A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em um relatório no final de 2010, que a agroecologia é uma estratégia importante para combater a fome no mundo. No seu ponto de vista por que a agroecologia é apontada como modelo adequado para o desenvolvimento da agricultura do País?

Maria Emília – Em primeiro lugar porque a história da agroecologia é baseada na própria leitura dos sistemas tradicionais. Ela não faz uma recusa, vai se construindo nesse diálogo com os sistemas tradicionais e vai criando e definindo princípios, que eu diria que são princípios que buscam harmonizar e equilibrar a relação com a natureza e não produzir contra a natureza. Porque a agricultura dominante no Brasil hoje nega a natureza. Depois, a agroecologia ao respeitar essas várias formas de saber, permite que o princípio da diversidade tenha uma base de realidade, porque estamos falando da policultura. Os sistemas camponeses são policultores na sua história. Você vai a qualquer canto no Brasil em todos os biomas e vai observar sempre que o camponês tem em volta da casa frutíferas, flores, verduras, ervas medicinais… A agroecologia no Brasil tem a característica de movimento social, ciência e prática social, acho que isso é bem peculiar, porque não é igual em todos os países. E ao se caracterizar como movimento, sua construção se baseia nesse diálogo e também na capacidade de fazer a leitura dessas resistências, como elas se manifestam nos territórios e entender que ela não se baseia nem se resume a uma dimensão tecnológica, como muita gente acha. Ela articula também o aspecto econômico e social. E há indicações claras do ponto de vista econômico de que a produção de base agroecológica tem um rendimento, mas não é uma produção cujo princípio organizador seja o mercado. Essa produção vai ao mercado, evidentemente, mas é pensada do ponto de vista do autoconsumo, da qualidade, da segurança alimentar. Por isso é mais complexa, pode atender mais as necessidades alimentares do mundo, porque não agride o meio ambiente e está voltada para atender os princípios da segurança e da soberania alimentar.

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